sábado, dezembro 24, 2005

Em transe

Contaram-me hoje de manhã o caso e assim, só hoje, por honestidade e dever cívico, comunico em crônica a incrível aventura que me foi relatada.
Disseram-me que dois homens entraram bastante determinados e com um talão de dívidas numa velha casa com fachada do início do século passado, paredes caiadas já de um tom mais acinzentado, cheiro usual de lugar habitado por dezenas de anos seguidos. Procuravam por uma moradora famosa do prédio chamada Eleonora Ricarda. De sua fama, sabe-se que conhece feitiços e domina o míster de fazê-los e disfazê-los através de invervenções bizarras. Para uns, motivo de riso, para outros uma mulher estranhamente convicta de seu trabalho e cuja fama era devida de fato.
Sentaram e esperaram. O mais novo era gerente, tinha 32 anos e era tão magro que a cara suada e puxada para junto dos ossos fazia lembrar o famoso poeta mineiro já na velhice, Carlos Drummond. O outro era mais alto e mais velho, tinha porte de urso e uma calvice declarada mas ainda não vencedora: apenas a frente estava pelada, fazendo-o parecer ter uma grande testa: era o dono da empresa e quem enfim, devia mesmo ter o pescoço junto à faca dos agiotas.
Após vinte minutos, já habituados ao cheiro de insenso e à constante brisa fria que vinha de um pátio interior, surgiu uma mulher madura e com olhar de víbora a mirá-los com a mão na cintura: "Sim, senhores, desejam algo?", ao que coube ao empresário responder "Tenho dívidas e não tenho como pagar, preciso de uma solução". Talvez fosse melhor ter tentado renegociar as dívidas, talvez fosse melhor ter conversado pessoalmente com cada credor, ou ainda ter tentado substituir todas por uma dívida única junto a algum banco, entretanto, pensava o homem grande, era melhor procurar um fim definitivo para seus credores.
A mulher escutou o relato sobre os problemas econômicos, dos juros injustos, das ofensas pessoais. Foi ouvindo e concordando com a cabeça, mas sem evitar que as pontas da boca ensaiassem um sorriso de deboche, nada que os aflitos senhores percebessem.
Fê-los entrar na sua sala de esforços sobrenaturais. Sentaram-se ambos num grande sofá de veludo vermelho, de um tom próximo à cor do vinho.
Caberiam confortavelmente sentados 5 distintos senhores naquele sofá, mas aqueles seus então ocupantes não notaram seu tamanho avantajado, os seus olhares eram da decoração algo exageradamente mística e exotérica, algo estranha aos místeres burgueses. No fim conformaram-se e voltaram a atenção à voz que lhes dirigia Eleonora Ricarda: concluiram que quem procura uma ocultista tem mesmo de se deparar com coisas que se ocultam!
A senhora pediu-lhes que fechassem os olhos e deu-lhes um forte incenso para que cheirassem. Deveriam tomar uma profunda aspiração da fumaça, vezes seguidas e assim, no fim do processo, estavam inebriados, a revirar os olhos e a sorrir compulsivamente, a ser exageradamente francos, muito menos do que gostariam.
Contaram seus pecados, vergonhas, detalharam planos maus de exploração e depravação sexual, debocharam de alguns devotados amigos e reconheceram suas dívidas como justas. Ainda em transe ela perguntou se se arrependiam de alguma coisa, mas eles pareciam felizes em contar aquelas coisas, como se a ausência dos freios sociais lhes possibilitassem a relalização do antigo sonho de se gabar do mau que fizeram.
Quando dispertaram do sonho, Eleonora disse-lhes que na manhã seguinte não teriam mais que se preocupar com dívidas, que estaria tudo resolvido em relação àqueles credores.
Na manhã seguinte ambos os distintos senhores amanheceram mortos: o coração de ambos estourou de madrugada.