Existe um outro homem que também vive sob a minha pele. Há muito não ouvia falar dele. Hoje lembrei-me bem das suas feições e modos, já que estivemos a limar nossos pontos de vista, outrora tão próximos.
Mora ainda em Inglaterra, ao que parece. Conserva, magicamente, uns lindos olhos cinzentos, um peito aceso de amor incondicional e muitíssima força vital. É um touro, um burro desses que arrastam muitas vezes o próprio peso... e sorri, sorri com confiança. Quem corre por gosto não cansa. Mas é tão bruto, Santo Cristo, tão bruto é esse homem! Come com o garfo à mão direita e a faca à esquerda, tem olhares ora leves, ora pendulares, ora incrivelmente possessivos! Como é engraçado!
Nessa tão longa tarde de verão, participei a ele alguma poesia e acho que ele percebeu, sem concordar, o quão breve será sua vida (quase tanto quanto a minha) e que nesse atmo que dura pouco demais para lembranças torpes, confidenciou seu grande, grande amor, não na forma de uma declaração ou de um nome de mulher... mas na forma de seus actos, actos verdadeiramente grandiosos. Pudessem todos os homens perceber a grandeza na face desse homem, quanta dignidade a sua, acho que se envergonhariam todos da vida que levam e dos deuses que elegeram para si.
É um encanto o seu sorriso. Traz em si tanta firmeza e actitude que o pragmatismo que sempre me fez orgulhoso pode aprender hoje uma bela lição. Contou-me das suas tarefas quotidianas, das coisas simples de onde consegue retirar alguma beleza, das sutilezas de ser esquecido por todos e mesmo assim suportar o não poder esquecer e eu lhe perguntei insistentemente como. Mas como? Diz-lá, como?
"Porque também nisso há sentido. Porque foi o que passou e me deixou os olhos marejados, primeiro de uma forma, depois de outra, que me fez esse um no mundo, independentemente dos outros que ignoram os meus propósitos e fazem pouco dos meus ideais. Lembro-me de tudo sim, de tudo que me fez melhor, de tudo com que serviu de lição, pois se não sou choramingas, menos ainda sou burro." Com a mão a segurar o queixo, olhei malandramente os seus lábios a oscilar, mas reconheci-lhe o modo muito particular de ver as coisas.
Comentou ainda sobre o tempo, a temperatura da água do mar no norte, o governo do PS (sem muito entusiasmo), e despediu-se assim que esvaziou seu copo.
Era cedo para ir, pensei em dizer-lhe. Mas homens assim não são comandados pelas sugestões dos outros, seguem rectos, como as setas lançadas, o seu destino e cumprem-no.
terça-feira, agosto 18, 2009
O outro eu
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