quarta-feira, janeiro 19, 2011

Vem viver a vida, amor




São frias essas manhãs do início do ano, mas na friagem não há maldade e nem bondade, é como é. Segue-se o caminho de todos os dias, que também não prende e nem liberta, é simplesmente nosso e acho bem que se tire proveito da sua beleza simples, onde houver.


Dar de si, meu amigo, requer muito amor. O amor decidido e desinteressado, não como o amor dos gatos e nem como a conveniência das estações da vida, quando o amor é uma brincadeira tola e infantil.


Mas como dar, como amar, se as pessoas nem se conhecem a si próprias? É um absurdo o que anda por aí de gente a ignorar o comando socrático de conhecer a si mesmo. Por vezes, são os mesmos que desprezam a filosofia e riem dos que discutem com seriedade, essa raça da qual pertencem orgulhosamente os políticos de carreira e os magistrados que não se importam com o ideal da Justiça e, uns e outros, a contribuir para a ruína de Portugal e dos portugueses. Falta muito amor, falta muito conhecimento, falta reflexão e falta também uma metáfora para ilustrar a ideia. Então, vamos a isso.


Noutro dia, vi um guia turístico de Nova Iorque a explicar que a cidade não deveria ter como alcunha "big apple" (grande maçã), mas sim "big onion" (grande cebola), já que tinha várias camadas e não poderia ser concebida na superficialidade do Central Park ou dos arranha-céus de Manhattan. É a verdade.


Eu adoro maçãs, e cruas são muito melhores que as cebolas, mas é capaz que a comparação valha também para as pessoas, ao menos as que são interessantes, porque as outras não são nem uma coisa e nem outra, seriam qualquer coisa que desilude quando vê o que tem dentro, como um maracujá com pouca polpa.


Camada por camada, ano a ano, sobrepõem-se ideias e pensamentos de outrora enquanto novos florescem e passam a estabelecer a nova ordem. E assim, na distância do tempo, torna-se algo artificial estender a mão a quem ficou do outro lado da ponte, como que intransponível agora, que liga o aqui e o lá no tempo.


É como andar à beira do rio a imaginar a vida de Miguel Torga. Ainda ontem comemorava-se algum aniversário relativo a ele, não sei dizer se o de nascimento ou do dia que veio morar para Coimbra... Facto é que gosto muito do Miguel Torga e da forma como ele via a vida.


Poeta sereno, de expressões serenas... e que amava o sereno Mondego, que via do seu consultório no Largo da Portagem.


Acho que essas manhãs frias de Janeiro não chateavam o Miguel Torga. É capaz que ele fosse um homem prático para essas fadigas involuntárias da vida e soubesse que elas são também parte dessas camadas novas que vamos ganhando no decorrer da vida, uma vida vivida "sem angústia e sem pressa".