Quando isso acontece mesmo muitas vezes a ponto de termos alguma experiência da vida e aprendermos como essa dinâmica de coisas serve para nós próprios acontece uma coisa curiosa: acaba-se a juventude.
Não quer isso dizer que ficamos imediatamente decrépitos, como velhos à beira da morte. Não, claro que não. Preserva-se o rosto leve e fresco, os músculos rígidos, a beleza quase intocada. Mas já não somos jovens, passamos à categoria dos simplesmente adultos.
Segue-se agora o faro, o instinto, de alcançar um sentido maior que nós mesmos: fazer fortuna, fazer carreira, pagar a renda, casar com a moça bonita, comprar uma casa, dar de comer aos filhos, fazer eleger o nosso deputado, arrancar umas verbas para o concelho, fazer-se vereador e autarca, comprar umas herdades, publicar uns trabalhos, inventar um prato típico, fazer Portugal suspirar de amor, encher os corações de esperança, lidar com amargura, rebater a inveja, espalhar a compaixão, sufocar a discórdia, construir os templos da virtude e as masmorras dos vícios, viver plenamente, como homem pleno de forças, direitos e obrigações, senhor do seu destino e dos destinos dos outros e do seu país.
Corremos as avenidas da nossa vida, como o nosso sangue pelos nossos braços: buscam depressa o seu destino imediato, com força e propósito, mas é-lhes difícil antever o grande giro que se repete constantemente até a derradeira e principal avenida: a do sentido de tanto esforço.
Ao nosso sangue pulsante, faz todo sentido levar e trazer o que leva e traz: vida e que já deu vida. Para nós, trata-se de levar esperança e colher por vezes frustrações e amarguras, o que antes de sê-los, também foi vida.
Como um grande titã a mirar-me do alto do seu Olimpo de glória, vejo o destino a conduzir-me por avenidas de delícias, que as são simplesmente porque não me foram impostas: são as que de livre-vontade pude escolher seguir e sigo com fé. Se além da montanha desses caminhos há traiçoeiras emboscadas ou maldosos vilões, não duvido: esperam-lhes o meu punhal sob a capa, atento e desembainhado, pronto para a defesa. Hei de vencer, mesmo que seja numa aparente derrota onde possa colher a lição do vitorioso amanhã que chegará a mim.
De tudo isso, vigoroso e longo caminho da vida, saltam-me os vislumbres da beleza que enlaçam-me o coração com tal poder, que giro como um menino encantado, iludido com a fantasia, com o coração preso ao seu propósito.
E talvez por isso, por esse pouquinho menino que não se deve nunca renunciar, o homem forte a levantar a espada saiba que não há amargura e nem frustração, não há derrota ou prostração, a vergar-lhe o espírito: dentro dele queima um fogo ancestral. Arde em si o mistério da poesia que ele não há nunca de negar, custe o que custar.
Por mais que custe acreditar, essa é a verdade, meus bons amigos: a este homem-menino-poeta, nenhuma porta do mundo pode se fechar. Ele tem as chaves todas, todos os corações do mundo amam a ele com devoção, ninguém lhe negará entrada.
Todavia, talvez seja possível dizer que nessa sua glória, nesse seu encanto, nesse seu deslumbramento tão atento à realidade e às condições brutas da vida (uma improvável associação de mundos) também existe uma réstia de gosto amargo em tanta sabedoria.
Sabe-se só, sabe-se insuficiente, sabe-se herdeiro e legatário de um mundo imperfeito, sabe-se frágil e por vezes impotente ante à rudeza das coisas. Mas também sabe-se rijo e determinado.
Todas as avenidas do mundo abrem-se a ele. Que passe, que faça edificar, que ponha abaixo, que mande consolidar. Nenhuma juventude o poderá deter.