domingo, janeiro 12, 2020

I said you, Liberty, you pick it up


The man who shot Liberty Valence, 1962, John Ford
Do que é feito o estado de criação artística? Dirás, caro leitor, "inspiração". Pois, mas esta é apenas uma resposta parcial, já que a inspiração em si mesma não é substância, mas antes um efeito. Tenho perseguido a resposta há muito tempo... talvez desde que me foi dado a decorar o primeiro poema, e da insistência em memorizar os versos surgiu a contemplação da beleza das imagens associadas às ideias.
No encalço da origem, em que se interpõem muitas coisas falsas ou apenas verdadeiras em aspectos secundários, fui fazendo o caminho com cuidado, e absorvendo a beleza do mundo e das obras que tentavam refleti-la. A "beleza" como mero entretenimento, o que para mim são formas degeneradas de arte, entretanto nunca me enganou. 
Repara, não estou aqui já a apreciar a estética, falo de algo que lhe antecede, que é a identificação com a beleza. O "artista" que não quer oferecer algo às pessoas, mas, ao invés disso (e como muitas vezes se dá), pretende tirar algo aos outros, produz uma criação que perverte a ideia de obra artística, ainda que insista (ele e seus sequazes) em chamá-la "arte", "obra prima", "produto de uma sensibilidade particular", ou o que o valha - o rótulo não faz o produto, assim como a pretensão de arte não faz a arte.
Daqui aponto o primeiro critério que me parece essencial: a arte está fundada na caridade. Tomo a caridade como o sentimento que nos une a todas as outras pessoas, aos animais, às plantas, e mesmo à natureza num sentido mais amplo: os rios, as florestas, as montanhas e tudo mais quanto existe. É um amor feito de dar, de integrar-se, de ser consciente desta composição ampla do universo, ou seja, é uma renúncia ao egoísmo. Produzir arte é querer oferecer algo belo aos outros.
Mas o mundo não é feito de intenções, e sim de atitudes. Só contam as pretensões efetivamente exteriorizadas em atos. A arte como exercício de um sentimento de caridade deve então encontrar uma expressão concreta específica. Pode-se imaginar expressões desse sentir que não são propriamente produto da arte. Oferecer um pedaço de pão a um mendigo é sem dúvida um ato de caridade, mas não me parece que seja propriamente artístico.
Talvez seja aqui que a "inspiração" jogue na equação dos elementos. Deve haver uma relação íntima entre o mundo exterior e o artista para que, dessa combinação, única nos seus sujeitos, tempo e espaço, se produza afinal uma peça artística como reprodução daqueles sentimentos, também informada pela caridade. E então chegamos ao ponto central de todo o percurso para responder à pergunta que inicialmente te coloquei, leitor: do que é feito este estado de criação da arte?
Penso que a quase totalidade das pessoas que se dizem incapazes de produzir arte são, a bem da verdade, inconscientes relativamente ao absoluto do seu espírito. Explico-me: a vida não é a perseguição de objetivos externos, como a acumulação de dinheiro, a escalada social em direção a um estatuto, ou a identificação com a aparência física... Embora essas possam ser formas com as quais nos ocupamos eventualmente, não são substância da vida. O auto-engano impede que se investigue o tesouro inestimável que há no fundo de si mesmos: a consciência de integração com tudo quanto existe, o espírito imortal que habita o seu corpo e que levanta-se de forma muito superior à mente que cria as formas, e que quando estamos presentes é uma fonte inesgotável de alegria, paz e completude.
Pode parecer um conceito difícil de alcançar, havendo naturalmente uma desconfiança de que se trata de algo místico... mas é muito simples de perceber. Vou dar um exemplo. Imagina uma ambição material muito importante para ti, como comprar uma boa casa. Trabalhas com afinco, por anos a fio pões dinheiro de lado. Deixas de ir viajar com a família, compras as roupas nos saldos e das marcas medianas, até mesmo trabalhos extras aceitas para pores lá para dentro mais uns recursos. Por fim, ao cabo de uma parte substancial do teu tempo de vida, muitas vezes, a casa é tua. Parabéns! Tens um bem material estimado por muitos. No entanto, tudo o que sacrificaste para alcançá-lo fez com que renunciaste ao teu eu mais profundo em muitos momentos: deixaste de acompanhar um jogo de futebol importante do teu filho para ficares a trabalhar mais umas horas no escritório, disseste que não ao convite do namorado para jantarem fora a fim de revisares o artigo e mandares no dia seguinte para a revista, ignoraste as flores de maio no jardim botânico porque estavas demasiado apressado para chegar à reunião ali perto. 
Estiveste ausente quando deverias ter estado presente, e portanto, não viveste verdadeiramente. Mas pronto, tens a tua casa! O facto verdadeiramente triste, e que evidencia o nosso discurso sobre o fundamento da arte, é que esse objetivo alcançado não te fará feliz por muito tempo: passada a euforia inicial, instala-se novamente o sentimento de vazio, de incompletude, de niilismo. Mas como achas que dentro de ti não há nada, colocas-te outro objetivo exterior, e o ciclo de busca no futuro recomeça... Toda a "arte" para ti não é mais que entretenimento para aquelas pausas em que precisas de desanuviar, ou, ainda pior (embora muitas vezes seja assim mesmo), fazer boa figura aos outros como instruído no que é alta cultura, ou artístico. Não admira que sejas incapaz de produzir arte: tu rejeitas a ideia fundamental do que é arte.
Quando as estrelas altas no céu brilham o seu mistério, e o vento frio da noite gela a tua cara de contemplação respeitosa, aí está a participação da beleza que proporciona o momento de criação artística. O artista passa a produzi-la e oferecê-la aos outros, sobretudo através de alguma associação com as emoções humanas: alegria, harmonia, paz, ou mesmo desassossego. Quando faz essa combinação, constrói uma ponte entre o absoluto e o material que convida a todos a participarem desse instante de glória, agora transladado para a eternidade.
Se formos como o artista, ou seja, se tivermos a coragem necessária de viver quem somos, todos podemos produzir arte. E não apenas isso: produzir obras verdadeiramente únicas que trarão beleza e recordarão significados profundos às vidas dos outros. 
Esta é afinal, a verdadeira e mais importante escolha que temos: encarar a oportunidade de criação como expressão de quem realmente somos e do que queremos dar ao mundo.