Enquanto o seu irmão, Epitemeu, criou os seres da terra, dando-lhes diferentes habilidades de defesa, coube a Prometeu criar o homem. Mas sendo a última das criaturas a ser concebida, já não lhe sobravam meios com que se proteger. Prometeu quis então lhe dar o fogo para que assim o usasse.
O pedido foi negado por Júpiter, que pretendia o fogo como reservado apenas aos deuses. Inconformado, e usando de ardil, Prometeu resolve cometer um crime grave: furta o fogo do Olimpo e oferece-o ao homem.
Por ter traído a sua confiança, Prometeu recebe de Júpiter uma pena mais cruel que a própria morte: foi amarrado num rochedo do mar para ser atormentado pelas suas ondas, como as da culpa. Como se esse não fosse sofrimento bastante, tinha ainda o fígado exposto para que fosse devorado por uma águia durante o dia, voltando a crescer durante a noite, para que na manhã seguinte todo o suplício recomeçasse.
A vingança de Júpiter contra os homens foi muito mais sutil, mas não menos dramática.
Sob suas ordens, Pandora foi criada por Vulcano e Minerva, com o auxílio de todos os deuses. Fizeram-na à imagem de Vénus: era bela e graciosa, emulando a bondade, a generosidade e a sabedoria do máximo arquétipo feminino. Foi, por fim, oferecida a Epitemeu como sua esposa. Embora tivesse sido alertado pelo irmão a não aceitar presentes dos deuses, Epitemeu toma-a de imediato como sua mulher, seduzido pelos seus muitos dons.
Como presente de casamento, Júpiter oferece-lhes uma rica arca como ornamento. Sem dizer o que dentro dela havia, refere apenas que o casal deveria ser o seu guardião, sem nunca a abrir.
No imaginário de Pandora, no entanto, fazia-se uma infinita confabulação do que estaria dentro da arca. Seu pensamento distendia-se como que por todo o cosmos celeste com hipóteses mais ou menos prováveis do misterioso conteúdo: seriam joias, ouro e outros tesouros terrestres, ou constituir-se-iam em bens reservados aos deuses, como a imortalidade? A crescente curiosidade, toma-lhe a vontade, e na ausência do marido, abre a arca. Surpreendida, vê lá presos e agora incontidos todos os males do mundo: a discórdia, a ganância, a dor, a pobreza, a fome, a inveja, as doenças do corpo, e as fraquezas do espírito.
Ao ver que todos aqueles males escapavam-se para se espalhar pelo mundo, rapidamente tenta fechar de novo a arca, mas já não vai a tempo, e a arca fica vazia, lá restando unicamente um último mal que ainda ficou preso: a esperança.
A humanidade nasce imersa nesses males, agora dispersos pelo mundo: já ninguém os pode mais juntar. A esperança, no entanto, está guardada ainda na arca de Pandora.
Friedrich Nietzsche, um eloquente e infeliz sofista do século XIX, foi supostamente o primeiro a apontar que a esperança guardada não era um consolo, mas antes um dos males, talvez o pior deles, pois era a sua função fazer prolongar o sofrimento com a perceção de que tudo iria um dia melhorar.
Mas assim como acontece muitas vezes entre os chamados "filósofos modernos", como mais um fruto apodrecido do seu pomar de paralaxes cognitivas, essa também é uma especulação com arrogância de pioneirismo, tomada em detrimento da grandeza do pensamento grego.
O oferta da arca a Pandora talvez tenha sido o maior ato de vingança alguma vez cometido. Assim me parece não apenas pelas suas vastas e incomensuráveis consequências, pela sua sua contundente sutileza na forma de perpetração: Júpiter sabia que Pandora não seria capaz de cumprir a promessa, colocando-a na posição de culpada involuntária. Mas além de ter desgraçado o seu destino e o de toda a humanidade, Pandora ainda guardou a esperança. O significado desse pormenor não pode ser tomado de ânimo leve.
Os males que nos acometem surgem-nos desde a dispersão em que se encontram no mundo: a fome, a guerra, a doença, o infortúnio são exteriores a nós mesmos, e temos de saber como suportá-los. Mas há um mal que está ainda sob o nosso controlo: ninguém é obrigado a sujeitar-se a viver em função de um futuro ilusório.
A completar a ilusão do tempo que dá de comer aos sofrimentos do espírito, eu teria a ousadia de dizer que esquecida no fundo da arca, junto da esperança, igualmente travestida de virtude, também ficou a saudade.
Assim como a esperança encaminha o pensamento e a ação para um tempo projetado à frente e que, obviamente, não existe na realidade, cumprindo assim uma função danosa à ação presente, a saudade igualmente alimenta uma perceção do que já passou e, a despeito da ilusão de repetir ou mesmo das culpas pelo que aconteceu, não é possível voltar a ser.
Os arrependimentos e as nostalgias nascem da mesma fonte que, se visitada muitas vezes, embriaga o espírito com pensamentos falsos. Iria ainda um pouco mais longe (para voltar um pouco atrás): essa fonte, possivelmente, seria a mesma que abstrai o pensamento para o futuro, pois, em essência, convence-nos de uma ilusão para privar-nos do presente, que é quando a vida acontece. Se assim for, e numa possível redenção do mito, a esperança serve aos dois momentos: ao futuro, mas também ao passado.
No entanto, esperança e saudade existem em nós, obviamente. Não vale a pena negá-los. A questão, verdadeiramente, é resistir à tentação de abrir a arca desses males para que também eles se espalhem: eis a sabedoria por detrás do mito, que os pretende manter reservados.
A vida real só se dá no presente. Os únicos sentimentos que existem são os que são partilhados agora. Amanhã poderá ser tarde demais, e o ontem já passou e não volta. A esperança e a saudade têm o seu lugar precisamente nesta perspetiva: servem à grandeza do presente, e nada mais que isso.
Por fim, quanto às culpas de Pandora, que se lhe reconheça ao menos este consolo verdadeiro de ter sabido guardar a esperança, pois é só no domínio dos arrependimentos e das ansiedades que nos tornamos dignos da vida.