sábado, outubro 07, 2023

Vou devagar porque tenho pressa


Miano ainda novo, mas já a ocultar a calvice prematura, em 1925

Casado aos 19 anos de idade com a adolescente Maria José, depois conhecida como dona Sinhá, Miano põe-se logo a construir a sua casa na aceção mais ampla do termo: mais que paredes, portas e janelas onde ir morar, é claro no seu horizonte de vontades o projeto de formar uma numerosa família e dar a ela tudo o que pudesse.
Começa essa empresa desde o sítio na Fazenda Santa Cruz que lhe foi oferecido pelo tio José Belisário. Dedica-se inicalmente às culturas comuns da terra: milho, feijão, café e a criação de animais. Não sei dizer se já à partida também produzia rapaduras, mas é capaz que também as fizesse. Era trabalhador e inventivo e o fogo da juventude o impulsionava com muita força.
O sítio na Santa Cruz torna-se assim o lar que constitui com Sinhá e onde nasce já em 1913 o filho primogénito do casal, José Gomes de Paiva. 
Não sei dizer quem foi o padrinho do tio Zezé. Se fosse arriscar, dizia que foi o tio José Belisário, como agradecimento pelo grande presente de casamento, além de reconhecimento pela estima e identificação que tio-avó e sobrinho-neto sentiam um pelo outro. Mas também poderia ter sido o Papai Costa, José da Costa Lima, avô da vovó Sinhá e padrinho de casamento do casal, ou ainda o tio José Natálio, irmão da vovó Sinhá... A julgar pela forma determinante como a vovó Sinhá escolheu os nomes dos filhos (já vamos ver essa preponderância bem demonstrada), a última opção de homenagem teria mais força. Uma visita à igreja da nossa terra e uma verificação ao livro de batismos poderia matar essa charada!
Seja como for, a chegada do tio Zezé foi sem dúvida motivo de grande felicidade para seus pais e avós. O tio Zezé conheceu e conviveu com todos os seus avós: tanto com o vovô Antônio Gomes e vovó Augusta, pelo lado paterno, quanto com o vovô Pedro Theodoro e a vovó Nenê (Maria Galdina) pelo lado materno. Quando falece o vovô Pedro, o tio Zezé tinha 10 anos de idade, e no falecimento do vovô Antônio Gomes tinha ele 12 anos. Já as avós faleceram muito mais tarde: vovó Augusta em 1954 e vovó Nenê em 1961.
Esse filho mais velho, pelo convívio privilegiado que teve com os antigos da geração anterior à dos seus pais (também conheceu e conviveu com tio Zé Belisário e tia Chiquinha, falecidos em 1924 e 1925, respetivamente), assim como pela grande carga de responsabilidade que muito cedo lhe foi depositada, será sem dúvidas uma pessoa determinante na vida dos seus pais, sendo um filho especialmente dedicado ao seu pai.
Em novembro de 1914 nasce a primeira filha, Maria Gomes Martins, a nossa querida tia Manzica. Com o mesmo nome de sua mãe e suas avós (a vovó Augusta chamava-se Maria Augusta), Manzica será muito próxima de sua mãe, constituindo-se assim em uma moça muito dedicada à família e temente a Deus. Esta força de caráter e de espírito lhe será fundamental na vida, em que muitas e difíceis provações lhe serão dadas.
Em 1916, uma supresa: duas filhinhas gêmeas idênticas: Efigênia e Helena. Até onde sei, não temos antepassados com esses nomes, do que o mais provável é que sejam homenagens à Santa Efigênia e à Santa Helena, duas santas que defenderam e propagaram a fé cristã contra os pagãos.
Já com uma prole de quatro filhos, tendo tido as gêmeas como uma surpresa, poder-se-ia pensar que Miano e Sinhá iriam arrefecer o ritmo, mas não foi isso que aconteceu! Em 1918 nasce Pedro Gomes de Paiva. Tio Pedrinho teve seu nome em homenagem ao vovô Pedro Theodoro, com quem conviveu até o falecimento do avô em 1923, como já referido. Presumo que o avô tenha sido também o seu padrinho de batismo.
Dois anos depois, nasce a tia Hilda, com temperamento doce e meigo. Uma filha que irá sempre guardar as melhores lembranças dos seus pais, mesmo em face das dificuldades e do muito trabalho que lhe cabia já na infância. Não havendo Hildas na família, a homenagem do nome caberia à Santa Hilda, uma das responsáveis pela conversão da Inglaterra, sendo uma religiosa muito sábia, a quem mesmo os reis procuravam para obter conselhos!
Não percam as contas: estamos em 1920 e Miano e Sinhá já têm seis filhos! Vou então adiantar um pouco essa contagem, referindo-me depois a cada um conforme a circunstância de vida exigir.
Nasce em 1922 o tio Lico, Manoel Gomes de Paiva. O nome do tio Lico talvez tenha sido uma homenagem a um bisavô dele: Manoel Martins da Silva Braga, pai do vovô Pedro Theodoro e avô da vovó Sinhá. Se sim, se não... não sei dizer, mas fica a hipótese.

À esq.: Zezé, Manzica e Pedrinho; à dir.: Helena, Efigênia e Hilda; ao centro: Lico
1924 é o ano de nascimento do meu querido avô Antônio Gomes Martins. Dos filhos homens, é o único que não vai ter Paiva como sobrenome, o que ainda hoje repercute com muita curiosidade na família. A razão disso é que o seu nome coincidiria com o do vovô Antônio Gomes (Antônio Gomes de Paiva), e com o do seu tio Tonico (Antônio Gomes de Paiva Júnior). Para evitar essas confusões, o meu avô Toninho ficou com os mesmos sobrenomes da sua amada irmã Manzica: Gomes Martins. Por fim, vale notar que os padrinhos do meu avô Toninho foram o seu tio Saninho (Luciano Gomes de Paiva), e sua tia Maria Dorcelina. Meu avô conheceu o seu avô António Gomes (que tinha a alcunha de Taioba) ainda bebê apenas, pois ele faleceria em 1925, como já mencionei.

Toninho
Estou tentando acelerar, mas não está a ser fácil! Vamos lá!
Joana nasce em 1926 e João em 1928. Só posso presumir que os nomes de batismo desse casal de filhos sejam por honra de São João Batista, santo a quem o vovô Miano tinha devoção, haja vista o seu apreço pela sua festa popular, mantendo um grupo de quadrilha muito bem ensaiado. Além disso, o vovô Miano tinha também um tio chamado João Gomes de Paiva, irmão de seu pai, que tinha ficado em Guiricema.
Nasce o tio Luciano em 1930, que teve o nome provavelmente como uma dupla homenagem: ao tio Saninho e ao seu tio-avô Luciano Alves Pereira, irmão da vovó Augusta. 
Em 1932 nasce a tia Carolina, batizada em homenagem à sua tia-avó Carolina da Costa Lima, irmã da vovó Nenê.
Carolina e vovó Augusta
Tio Paulo nasce em 1934. Dos irmãos do meu avô, foi aquele com quem mais convivi e conversei, pois morei em sua casa em Juiz de Fora durante quase um ano. De temperamento brando e fala lenta, mas firme, sempre sorria quando dizia o nome do meu avô. O tio Paulo também deve ter tido o nome em homenagem ao santo homónimo. Curiosamente, todos os que receberam nomes de santo, foram de santos que assim se fizeram pela expansão e defesa da fé católica!
Depois do nascimento do tio Paulo, nasceram mais dois rapazes: Luiz Gonzaga em 1936 e Nelson em 1938. Estes dois meninos morreram na infância. A prima Cely, filha da tia Hilda, lembra-se do enterro do tio Nelson. Quando morreu Luiz Gonzaga, aí pela idade de 10 anos, mais ou menos, o vovô Miano fez-lhe uma foto no caixão branco. A foto foi guardada e ficou para a coleção do tio Zezé, que não gostava nada que os mais novos vissem a tal foto, pois dali viriam as perguntas e a lembrança da dor que foi a perda daquele irmãozinho. Vale notar que a memória de Luiz Gonzaga foi enaltecida pelo tio Paulo (que era pouco mais velho que ele), pois um de seus filhos recebeu esse nome.
Não se sabe do que morreram esses dois tios, mas é óbvio que o seu desaparecimento foi um duro golpe na família de Miano e Sinhá.
Após uma inédita pausa de quatro anos sem ter filhos, nasce em 1942 a tia Marta, que assim encerra a longa prole de 16 filhos.

Paulo, Luciano e João; Marta e Joana
Neste período da vida, Miano está mais empenhado do que nunca para arranjar recursos para sustentar a sua família.
Com a 2ª Guerra Mundial em curso, há uma grande escassez de açúcar no mercado internacional, o que torna o negócio da produção de rapaduras muito rentável. 
Miano então converte todos os seus recursos para produzir a rapadura Santa Cruz, vendida com um rótulo com uma santa a venerar uma cruz. O negócio corre muito bem ao meu bisavô, a ponto de começar a comprar terras em toda a redondeza, enriquecendo assim muito rapidamente.
Vendo o seu vertiginoso crescimento, os vizinhos de Miano começam a fazer o mesmo e brevemente há diversos produtores de rapadura na região. Ainda assim, a rapadura Santa Cruz continua a dominar o mercado e render um bom dinheiro. Essa predominância, julgo eu, devia-se à sua qualidade superior. 
Em tudo o que fazia, Miano colocava o máximo das suas qualidades para fazer bem feito. Era caprichoso, detalhista e muito persistente. Esse gênio perfeccionista por vezes o levava a ser excêntrico e teimoso, armando-se em dono da razão. Embora ela fosse mesmo dele na maior parte das vezes, o temperamento combativo acabava por lhe retirar alguma adesão às suas ideias. Mesmo assim, não era nunca injusto, nem gostava de abusos e falsidades. Afinal, um temperamento forte não é sinônimo de um temperamento perfeito!
Com o fim da guerra e a regularização do mercado do açúcar no mundo, a procura pelas rapaduras começou a abrandar e o preço então passou a cair muito.
Teimoso e excessivamente confiante nas qualidades do seu produto, Miano recusava-se a baixar o preço para poder escoar a produção. A teimosia não resultou e ele viu-se com um imenso estoque de rapaduras a degradar-se.
Para além da decadência do negócio das rapaduras, a saúde do vovô Miano já dava mostras de estar a piorar rapidamente. Nesta época, tinha apens 53 anos de idade.
A perda dos filhinhos Nelson e Luiz Gonzaga, as excessivas preocupações de manter uma família numerosa, além da pressão que colocava em cima de si mesmo para fazer valer as grandes ambições que criou à volta das suas capacidades, tornaram-no em um homem um bocado instável já na fase da meia idade. O mal que o afligia desde aquele tempo e que o acompanharia para o fim da vida poderia ter sido uma esquizofrenia leve, que tinha momentos piores, e períodos em que não o atacava.
Mesmo que acometido pela doença, e ainda que fosse turrão sobre a sua forma de conduzir o negócio das rapaduras, Miano não era estúpido. Ele sabia que uma alternativa devia de ser encontrada. Havia uma casa cheia de crianças para sustentar e todos dependiam dele.
Por difícil que fosse a situação, Miano não iria desanimar. Lembrava-se talvez das convicções de sua mãe sobre as nossas origens heróicas, como quando disse ao tio Afonso: "Tens nas veias sangue nobre/ Bravo sangue altaneiro."
A prima Maria Helena, filha da tia Helena, recordou uma divisa do vovô Miano que mostra bem a sua frieza de cálculo, mesmo em face à dificuldade: "Vou devagar porque tenho pressa!"
Uma solução teria de ser encontrada!