domingo, dezembro 22, 2024

Meditações sobre os poemas que precisam de ser escritos

Desde o meu primeiro encontro com a poesia, visto óculos de ver o mundo segundo as suas lentes. Meu pensamento de menino ficou para sempre impactado com a possibilidade de se condensar significados complexos em rimas aparentemente inocentes. Pela sua melodia simples, repetiam-se no pensamento sem muito esforço, deixando sedimentar as profundas convicções de "colheita poética" na alma do leitor.
O príncipe dos poetas abriu em mim esse salão das possibilidades ilustradas de se ver a vida. Bilac chegou-me pela minha professora primária, e pelo meu farmacêutico. A dona Rosa declamava "a última flor do Lácio", e o Dr. Gélio "Ora, direis ouvir estrelas...", e o meu pensamento viajava da península itálica para a antiga Lusitânia, para as nossas Minas e subia por fim ao infinito imaginável da própria Via Láctea.
De Bilac, restou em mim o respeito inegociável à poesia. A sua dignidade sagrada, a sua expressão medida, e a indizível e delicada formação de versos (a um só tempo singelos e complexos), elevam-na à posição de insumo da própria ordem natural do homem, colaborando para a sua dimensão transcendental. A sua elevada dimensão entre as artes está portanto justificada na sua incomparável potência para o leitor.
Mais tarde na minha vida, atacado pelas paixões de rapazito, fui buscar no Poetinha a compreensão dos meus próprios sentimentos. Embora a paixão não seja boa conselheira para o entendimento, a intensidade brutal das suas fixações convida a própria imaginação a dar saltos novos de compreensão do mundo. Por isso, o diminutivo na alcunha só tem mesmo o sentido do carinho que Vinicius de Moraes merece, e nunca qualquer pequenez. 
Muitos outros poetas conversaram comigo. Sou bom amigo de Luís de Camões, Bocage, Florbela, Drummond, Bandeira, Quintana, Pessoa... e tantos outros que, não merecendo menção por não ombrear no estatuto, foram suficientemente honestos para ajudar a talhar o meu "reino das palavras", como o chamava Drummond. Sem este reino, nenhum poeta pode ser acamado rei de sua poesia. Será um rimador, um redator de ideias metafóricas organizadas em poema, eventualmente um letrista de música, mas não um verdadeiro poeta.
Talvez o critério mais importante para se abrir a porta de entrada nesse reino (em alusão à pergunta de Drummond: "Trouxeste a chave?"), seja a seriedade das meditações sobre os poemas que precisam de ser escritos.
As angústias e obrigações da vida, a brutalidade dos interesses materiais, a maldade calcada nesses mesmos interesses e na ignorância da grandeza do espírito, vão deitando terra para cima das considerações poéticas. Sujas, as lentes dos óculos poéticos pouco ou nada vêem, e a muitas injustiças poéticas são cometidas, em prejuízo do poeta e do resto do mundo. Vou explicar melhor essas considerações.
Sendo mais direto, e em resposta a um pedido reverso, as minhas meditações sobre os poemas que precisam de ser escritos são das orações mais sentidas da minha alma, rezadas no silêncio e no escuro do meu quarto, enquanto o sono me aguarda. Falo a Deus de toda a beleza e toda a tragédia que vi nas coisas banais do mundo, e que será esquecida no sono daquela noite. Eventualmente, no entanto, há significados demasiado grandes para serem ignorados, e quanto a esses, Deus não me concede o perdão na forma do esquecimento.
Os poemas que precisam de ser escritos são a brutalidade da verdade da vida ilustrada nas nossas experiências, as que marcam profundamente os nossos sentimentos e convicções morais. Visto na dimensão da sua seriedade, apenas os poemas que precisam de ser escritos é que deveriam mesmo sê-lo. Mas, curiosamente, não escrevê-los fá-los crescer em nós, em um amontoar de pressão poética que se vai tornando progressivamente mais dramático: ignorá-los é o pior que se pode fazer.
Assim, constrangido de todas as formas, pressionado pelas suas convicções profundas, complacente com o poema que de dentro lhe sorri sincero, o poeta resolve materializar aquilo em verso, com medo de que o resultado final seja feinho e desajeitado.
No entanto, esse receio jamais se converte em realidade. O poema que precisa de ser escrito é sempre bonito, pois ele é expressão de poesia vivida, a única fonte de poesia legítima que pode haver.
Desprendido do poeta, o poema ganha uma vida própria. Vai ser lido por outros que vão encontrar nele uma mistura de identificação com os sentimentos e convicções do poeta e identificação com os próprios, em uma espécie de matrimónio poético que irá modificar o leitor muito mais do que ele pode imaginar.
Esse efeito transformador, (adivinhem só), está reservado aos poemas que precisavam de ser escritos. Ele possuiu (e destruiu) Verlaine, salvou Camões do inferno, elevou Dante ao céu, deu a Vinicius a coragem que não tinha, e me projetou grandemente para fora de mim mesmo, extrovertendo o que seria de outra forma ignorado e reprimido.
Ainda em mim habitam muitos poemas que precisam de ser escritos. São meus amigos, esses poemas. Obviamente que eu não os ignoro, pelo contrário: conversamos em trovas filosóficas. Olham-me nos olhos com um amor e uma paciência que me deixam completamente à vontade. Eles sabem quem eu sou, e o lugar deles em mim é o das convicções mais sérias e reservadas. Talvez chegue o dia em que a pressão poética me fará escrever esses poemas. Até lá, entretanto, vou tentando compor melhor em mim a expressão de cada um deles, para que a sua derradeira forma seja tão significativa para outros, como já é para mim mesmo.

sexta-feira, março 22, 2024

Há 100 anos Toninho Miano veio ao mundo


No dia 18 de Março de 1924, na fazenda Santa Cruz, Sinhá deu à luz ao seu oitavo filho. O menino levou o nome do avô paterno, mas nos sobrenomes Miano resolveu repetir a combinação que recebeu a tia Manzica, pois com Gomes de Paiva já havia o seu pai e o seu irmão. Assim, o menino que viria a ser o meu avô foi batizado Antônio Gomes Martins.
Acho que esta combinação com os sobrenomes do pai e da mãe foi muito feliz, em que pese eu ter ficado sem o Paiva. Isso porque vejo nele os traços da família de um e outro lado, em que pode unir o muito do que era bom, e evitar o algum que era mau.
Antes de fazer a reconstituição da genealogia do meu avô, louvando os nossos antepassados, ou mesmo contar histórias da sua infância, vou falar do Toninho Miano que eu conheci, muito pequeno ainda, e do que me foi dado a conhecer por toda a gente que conviveu mais com ele.
Meu avô morreu muito cedo. Tinha apenas 62 anos. Pior, morreu de repente, sem que fosse esperado, e em uma terra que, embora não fosse estrangeira, não era mineira. Acho que muitos de nós na família nunca aceitamos a morte dele. E foi (e é) assim não porque nos falte fé em Deus, ou confiança na Sua divina composição dos assuntos do mundo. Antes, a saudade que permanece é muito fruto de corações eternamente cativados pela sua indizível bondade e carisma.
Dotado de uma invulgar prudência, aliada a um caráter brando e extrovertido, mas muito firme no sentido do que era certo, fez uma vida de trabalho e de amor com raríssimo sucesso.
Digo mesmo, sem qualquer sombra de exagero, que meu avô foi o homem mais bem sucedido que alguma vez conheci. Isso porque ele venceu em todos os campos relevantes da vida. Foi capaz de prover aos seus e encaminhar muito bem todos os filhos, esteve presente para os seus irmãos e para os seus pais, ajudou mesmo aqueles que mal conhecia, por vezes oferendo a quem lhe tinha mostrado ingratidão uma redentora misericórdia. 
Na origem de tanto êxito, ouso dizer, estava uma fé inquebrantável em Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando esteve em vias de embarcar para a Guerra, a vovó Agusta lhe dirigiu uma carta em que rogava para que Nossa Senhora continuasse a protegê-lo. E quando, já mais tarde na vida, o seu jipe virou de ponta cabeça em uma ponte precária na estrada de Santa Bárbara, ele chamou pela intervenção de Santa Rita e teve a vida poupada.
Não só nesses momentos críticos, mas sobretudo nas longas tribulações que viveu ao lado da minha avó, seu grande amor, Deus orientou sempre a suas ações. E é justamente por isso que o Toninho sentia uma necessidade tão grande em ser caridoso: o amor de Deus deve ser emulado no amor que temos pelo próximo. Assim como sempre viu fazer a sua mãe Sinhá, Toninho fazia os possíveis para ajudar quem precisava.
Entre as várias histórias que demonstram esse comprometimento com a bondade, sem necessidade de fazer alarde, está uma história que chegou por uma pessoa anônima para mim, e por isso mesmo carrega muito da verdade. Contou-me essa senhora, hoje com mais de 50 anos de idade, que menina ainda, com a idade de 10 anos, trabalhava colhendo café para o meu avô. Com os bracinhos pequenos, não conseguia ir aos ramos mais altos do pé de café, e nem tinha disposição física para fazer a jornada de trabalho com os adultos, daí o valor da sua diária era de metade da de um adulto. No entanto, Toninho sabia que ela tinha uma mãe doente em casa e mais dois irmãozinhos menores, por isso um dia lhe fez uma oferta: "A partir de agora vou lhe pagar o mesmo que pago a um adulto, mas não pode contar para ninguém".
Ainda consigo ouvir a sua risada. Mesmo tendo se passado tantos anos do seu desaparecimento e sendo eu tão pequeno quando ele se foi. Na verdade, a morte pode nos privar da presença física, mas não é capaz de tirar de nós a presença do exemplo.
Muitas vezes na minha vida, ressentido por alguma dificuldade, ou chateado por não ter recebido o mesmo tratamento que dediquei aos outros, não me veio como um raio caído do céu o semblante sério do meu avô recordando a obrigação de ter gratidão pelo que me foi concedido? Quantas vezes as histórias de rebeldia do meu pai com ele, em que rapou o cabelo depois do meu avô ter dito que não tinha cortado o suficiente, ou sair de casa a bater com a porta quando o meu avô lhe negava um dinheirinho para sair à noite não serviram para me ensinar prudência e comedimento?
A sanha de enriquecer que nos corre nas veias desde os Alves Pereira, no Toninho teve um propósito muito elevado, também graças à rara inteligência da Ziza, sua amada mulher. Minha avó tinha o tino para os negócios dos Bicalho, muito astutos e pacientes. Esse planejamento, somado à inteligência e à energia que o Toninho recebeu do vovô Miano, fez com que a sua tropa de burros de carga a serviço do Juquinha do Vale se transformassem em muitas terras, muito café, muitas casas e lojas.
O exemplo de vida santa de Sinhá sempre pesou para que as atitudes com os outros (e com ele mesmo) fossem as mais corretas. Daí o dinheiro nunca foi idolatrado. O propósito da sua vida frugal e muito poupada (não posso aqui negar que o Toninho não gostava de gastar dinheiro!) era ajuntar o suficiente para nada faltasse aos seus amados filhinhos e netos.
Assim também aprendi com ele: com correção nos negócios, ir na direção certa, mesmo que não fosse tão rápido quanto gostaria. Até hoje, tem dado muito certo para mim!
É importante lembrar desse seu lado porque embora Toninho fosse muito alegre e brincalhão com os netinhos, também era disciplinador e gostava de dar tarefas para todos, pois não gostava de ver ninguém desocupado.
Eis mais uma lição que procuro aplicar à minha vida: aproveitar ao máximo o tempo e envolver as pessoas em atividades em que possam também tirar proveito. Essa é aliás uma forma muito simples para se fazer amizades boas e ajudar as pessoas, embora haja os que acham que estamos apenas a lhes dar serviço!
Nestes 100 anos do nascimento do Toninho, termino destacando uma das suas feições mais bonitas: o seu imenso amor pela minha avó. Quantas vezes vi nos olhos dela e no seu sorriso comedido a lembrança do meu avô como uma saudade cheia de dor, pelo vazio monumental que alguém tão grande como ele deixa, mas também cheia de orgulho pela sua herança de amor, força e misericórdia.
Um amor que mesmo lá no São Carlos, sem luz e água corrente, ajudaram-se um ao outro a cuidar dos filhinhos que chegavam, principalmente naquele início de vida juntos, em que entre o nascimento do tio Max e o tio Domingos tinha decorrido pouco mais de um ano!
Minha linda avô levou sempre consigo a memória do meu avô. A sua própria nobreza de alma sempre serviu para elevá-lo ainda mais aos nossos olhos.
Hoje no céu, abraçados e a sorrir, esse lindo casal olha por nós, celebrando os 100 anos de nascimento do Toninho, que deixou o mundo tão melhor do que encontrou, e será sempre merecedor das nossas mais profundas saudades.


quarta-feira, fevereiro 07, 2024

O enigma de Mariana

Brasão dos Paiva

Há um nome que ressoa de forma muito contundente na minha ancestralidade: Mariana Luísa de Paiva.
Mariana foi a esposa de Belisário Alves Pereira, o célebre desbravador e tropeiro da Zona da Mata na segunda metade do século XIX. A contrastar com a vida rude e agreste de seu marido, Mariana teria tido uma educação esmerada, gostava de poesia, e sabia ler e escrever corretamente. Era uma mulher um pouco diferente das que fizeram a transição da região das minas para a mata.
Desde a sua aura lívida e feminina, há um mistério a perdurar: qual é a ascendência de Mariana?
Essa pergunta pode parecer tola, uma vez que a tradição familiar dos Alves Pereira estabeleceu que ela é uma das filhas mais jovens de Manoel Silvério Vieira de Andrade e de Maria do Carmo Fonseca e Silva, tendo nascido a 10 de Março de 1832.
Essas informações me foram dadas a conhecer pela prima Nina Campos e, penso eu, ela pelos registros do Museu do Tic Tac em Belisário (então formado pelo tio Luciano Alves Pereira). O tio Luciano, por sua vez, valeu-se (suponho eu) dos registros do seu tio Luciano Dias de Andrade, um importante proprietário rural de Ubá.
A prima Nina Campos, no seu História de Belisário, ainda acrescenta mais informações sobre Mariana: seria descendente do bandeirante Fernão Dias Paes, surpeendendo-se do seu sobrenome não ser Dias.
Somadas essas referências da ascendência de Mariana pelo lado dos Alves Pereira, há uma referência familiar direta que nos chegou pela vovó Augusta: o Paiva de Mariana (sua avó paterna) era o mesmo Paiva do seu marido Antônio Gomes de Paiva.
Está então armada a confusão: de onde veio a nossa antepassada? É Paiva? É Dias Paes? É Vieira de Andrade?
Diante dessas dúvidas, virei-me para os poucos documentos que nos chegaram sobre Mariana.
O documento mais importante é sem dúvida o processo de inventário dos bens deixados pelo seu marido Belisário. Pela relação dos herdeiros, é possível colher o ano de nascimento exato dos filhos mais novos e estimar a dos filhos mais velhos. Assim sendo, temos o seguinte:

José Belisário Alves Pereira - 1841
Ana Luísa de Paiva- 1845
Germano Alves Pereira - 1847
Maria Theodora de Jesus -1849
Maximiano Alves Pereira - 1851
Antônio Alves Pereira - 1853
Rita Cypriana de Jesus - 1855
Manoel Alves Pereira - 1858
Joaquina Izidora de Jesus - 1862

A idade do primeiro filho também é certa. O tio José Belisário deixou um inventário com muitas e preciosas informações. Lá está declarado que faleceu em 1924 com a idade de 83 anos. Assim, era do ano de 1841.
Aqui já se desfaz a informação do Museu do Tic Tac sobre o ano de nascimento, pois se Mariana fosse mesmo do ano de 1832, teria tido o primeiro filho com 9 anos de idade... o que não faz qualquer sentido.
Aliás, através das evidências que chegaram reforça a ideia de que muito provavelmente Mariana não seja filha de Manoel Silvério e Maria do Carmo. Veja-se que as anotações sobre a genealogia do tio Luciano Dias de Andrade, irmão da vovó Heduviges, informa-se que os supostos pais de Mariana tiveram os seguintes filhos:

Ana Angélica - 1815
Manuel - 1817
Inácio - 1820
Francisca - 1822
Vicente e Maria Vicência - 1824
Rosa - 1825
Joaquim - 1827
Lino - 1829
Mariana - 1832
Cândida 1834
Maria Jacinta - 1837
Raimundo - 1839

Ocorre que a Lista de habitantes da Freguesia de São João Baptista do Presídio no ano de 1819 traz claramente a família de Manuel Silvério e Maria do Carmo (inclusivamente confirmando a informação das anotações genealógicas sobre a filha ilegítima de Manuel, Rita), mas as idades declaradas naquela época não coincidem com as das anotações. Manuel Silvério seria do ano de 1764, e não de 1766; Maria do Carmo seria de 1795, e não de 1797. Mas as discrepâncias de idade aumentam relativamente à lista de filhos. Inicalmente as diferenças eram de 2 anos, mas Francisca, supostamente nascida em 1822, na verdade era do ano de 1818 na Lista.
Ora, aplicando-se a mesma proporção de tempo desde Francisca (a filha  mais nova ao tempo da Lista), que é de um filho a cada dois anos, se esse ritmo se mantivesse, respeitada a ordem de nascimento informada nas anotações, Mariana teria nascido em 1828. Ora, sabemos que o seu primeiro filho, tio José Belisário, era do ano de 1841, assim, Mariana teria tido esse primeiro filho com a idade de 13 anos, o que é muitíssimo improvável. A idade mais normal para casamento de moças em famílias bem estruturadas, como era o caso, era a partir dos 16 ou 17 anos, até pelos 20 anos. Tendo em conta o nascimento do nosso tio, Mariana deveria ser do ano de 1824 ou mais provavelmente 1825.
Assim, reforça-se a ideia de que Mariana não era filha de Manuel Silvério e Maria do Carmo.
Mas então o que explicaria o facto de três filhos de Luciano Dias Paes e Ana Angélica de Andrade terem se casado com três filhos de Belisário Alves Pereira e Mariana Luísa de Paiva? Esta intensa ligação estaria justificada pelo facto das duas mulheres serem irmãs, ou seja, Mariana seria mesmo filha de Manuel Silvério e Maria do Carmo.
A verdade é que José Belisário casou-se com a tia Chiquinha, Maximiano casou-se com Heduviges, e Rita casou-se com Raimundo. Mas Ana Luíza casou-se com Sebastião Dias Paes, neto de Vicente Dias Paes, assim como Luciano Dias Paes, pai de Heduviges, Chiquinha e Raimundo. E Sebastião não tinha laço de parentesco direto com Ana Angélica, para além de ser sua prima.
Recorde-se que a forma habitual de arranjar casamentos na zona da mata a ser desbravada era mesmo a de arranjos familiares, já que as famílias viviam isoladas em suas fazendas em uma região ainda selvagem e fechada. Isso se fazia dentro da mesma família, ou então entre famílias amigas. Pode ser que a forte ligação que motivou os casamentos de três filhos de Luciano e Ana Angélica com os três filhos de Belisário e Mariana fosse de amizade apenas, o facto de terem sido três casamentos entre filhos desses dois casais reforça minimamente uma forte amizade ao longo de muitos anos.
Outra informação, esta também do inventário de Belisário, é que Mariana não sabia ler e escrever, tanto assim que a sua declaração de inventariante tem que ser assinada a rogo, ou seja, pelo escrivão em seu nome.
Essas evidências já colocam em causa algumas das informações que o testemunho familiar fez chegar. Devemos, no entanto, ter em consideração que a provável origem dessas informações é o tio Luciano Dias de Andrade, filho de Luciano Dias Paes e Ana Angélica de Andrade, a filha mais velha dos supostos pais de Mariana: Manuel Silvério Vieira de Andrade e Maria do Carmo.
Pode-se presumir que o tio Luciano quis juntar aos Alves Pereira a ancestralidade dos Vieira de Andrade, mas não se pode perder de vista que o tio Luciano foi contemporâneo da própria Mariana!
Ele nasceu em 1841, faleceu apenas em 1921, e Mariana, sendo mais velha que o tio Luciano, provavelmente de 1824, por exemplo, faleceu certamente em 1891. Com 50 anos de idade ao tempo do falecimento da sua suposta tia Mariana, o tio Luciano Dias de Andrade não poderia andar a inventar o que não tivesse conhecimento direto, assim como a restante família, certamente conhecedora das origens de Mariana, iria aturar uma tramoia deste tamanho, ou seja, a de inventar que Mariana era irmã de sua mãe Ana Angélica enquanto, na verdade, seria de uma família com sobrenome Paiva, provavelmente, da região de Piranga. 
A possibilidade mais verossímil é que esta atribuição errada tenha sido avançada mais à frente, provavelmente, pelo tio Luciano Alves Pereira, promotor do Museu do Tic Tac, em Belisário. Ao verificar a ancestralidade de sua mãe Heduviges, o tio Luciano está mais distante do tempo dos acontecimentos, mas ainda contemporâneo de Mariana (o tio Luciano era do ano de 1877, ou seja, tinha 14 anos ao tempo do falecimento de sua avó por parte de pai, sendo que moravam ambos em Belisário ao tempo do desaparecimento de Mariana).
Facto é que sua irmã mais velha, Maria Augusta, dizia à tia Lila que o Paiva de Mariana era o mesmo de seu marido Antônio Gomes... Entre esses dois irmãos, algum estava enganado. Poder-se-ia imaginar que o Paiva de Mariana teria sido uma homenagem à outra mulher com o mesmo nome, supostamente, sua madrinha, por exemplo. Mas se assim fosse, por quê repetir o sobrenome ao batizar sua própria filha, Ana Luísa?
Tendo em conta a questão fundamental, a de saber qual é a ascendência de Mariana, eu sinceramente acredito mais que seja mesmo de uma família com sobrenome Paiva que da ascendência que lhe é atribuída.
A primeira evidência em favor da ascendência como Paiva está também no inventário de Belisário: o nome completo de sua primeira filha é Ana Luísa de Paiva. Mais uma vez é usado o sobrenome Paiva. Seria mesmo de supor que este não é o sobrenome da família de Mariana, mesmo ela o tendo usado expressamente para batizar a sua filha mais velha?
Mas não ficamos por aqui: Germano, o segundo filho mais velho, casou-se com Rita Umbelina de Paiva. Ora, a tia Rita era uma irmã mais velha do vovô Antônio Gomes de Paiva.
Aqui já ficamos mais próximos do testemunho da vovó Augusta: se o casamento de Germano e Rita foi um arranjo familiar, então é evidente que Mariana era parente do pai do vovô Antônio Gomes: o velho Gomes José de Paiva.
Há por fim um indício curioso: uma das filhas de Manoel Martins de Paiva, rico português dono de minas de ouro em Vila Rica, era justamente Mariana Luísa de Paiva, o nome de uma irmã sua que havia ficado no Porto.
Sendo esse indício verdadeiro, Mariana e o velho Gomes eram descendentes de Manoel Martins de Paiva radicados em Piranga, onde o velho Gomes declarou ser natural. É mesmo capaz que o velho Gomes e Mariana tenham sido primos a partilhar a infância familiar, já que o velho Gomes era de 1829 e o ano de nascimento de Mariana é estimado em 1825.
Resta compreender porquê foi atribuída a Mariana a ascendência de Manuel Vieira de Andrade e Maria do Carmo Fonseca e Silva.
Pelo sim, pelo não, fica este enigma para ser desvendado!