quarta-feira, fevereiro 07, 2024

O enigma de Mariana

Brasão dos Paiva

Há um nome que ressoa de forma muito contundente na minha ancestralidade: Mariana Luísa de Paiva.
Mariana foi a esposa de Belisário Alves Pereira, o célebre desbravador e tropeiro da Zona da Mata na segunda metade do século XIX. A contrastar com a vida rude e agreste de seu marido, Mariana teria tido uma educação esmerada, gostava de poesia, e sabia ler e escrever corretamente. Era uma mulher um pouco diferente das que fizeram a transição da região das minas para a mata.
Desde a sua aura lívida e feminina, há um mistério a perdurar: qual é a ascendência de Mariana?
Essa pergunta pode parecer tola, uma vez que a tradição familiar dos Alves Pereira estabeleceu que ela é uma das filhas mais jovens de Manoel Silvério Vieira de Andrade e de Maria do Carmo Fonseca e Silva, tendo nascido a 10 de Março de 1832.
Essas informações me foram dadas a conhecer pela prima Nina Campos e, penso eu, ela pelos registros do Museu do Tic Tac em Belisário (então formado pelo tio Luciano Alves Pereira). O tio Luciano, por sua vez, valeu-se (suponho eu) dos registros do seu tio Luciano Dias de Andrade, um importante proprietário rural de Ubá.
A prima Nina Campos, no seu História de Belisário, ainda acrescenta mais informações sobre Mariana: seria descendente do bandeirante Fernão Dias Paes, surpeendendo-se do seu sobrenome não ser Dias.
Somadas essas referências da ascendência de Mariana pelo lado dos Alves Pereira, há uma referência familiar direta que nos chegou pela vovó Augusta: o Paiva de Mariana (sua avó paterna) era o mesmo Paiva do seu marido Antônio Gomes de Paiva.
Está então armada a confusão: de onde veio a nossa antepassada? É Paiva? É Dias Paes? É Vieira de Andrade?
Diante dessas dúvidas, virei-me para os poucos documentos que nos chegaram sobre Mariana.
O documento mais importante é sem dúvida o processo de inventário dos bens deixados pelo seu marido Belisário. Pela relação dos herdeiros, é possível colher o ano de nascimento exato dos filhos mais novos e estimar a dos filhos mais velhos. Assim sendo, temos o seguinte:

José Belisário Alves Pereira - 1841
Ana Luísa de Paiva- 1845
Germano Alves Pereira - 1847
Maria Theodora de Jesus -1849
Maximiano Alves Pereira - 1851
Antônio Alves Pereira - 1853
Rita Cypriana de Jesus - 1855
Manoel Alves Pereira - 1858
Joaquina Izidora de Jesus - 1862

A idade do primeiro filho também é certa. O tio José Belisário deixou um inventário com muitas e preciosas informações. Lá está declarado que faleceu em 1924 com a idade de 83 anos. Assim, era do ano de 1841.
Aqui já se desfaz a informação do Museu do Tic Tac sobre o ano de nascimento, pois se Mariana fosse mesmo do ano de 1832, teria tido o primeiro filho com 9 anos de idade... o que não faz qualquer sentido.
Aliás, através das evidências que chegaram reforça a ideia de que muito provavelmente Mariana não seja filha de Manoel Silvério e Maria do Carmo. Veja-se que as anotações sobre a genealogia do tio Luciano Dias de Andrade, irmão da vovó Heduviges, informa-se que os supostos pais de Mariana tiveram os seguintes filhos:

Ana Angélica - 1815
Manuel - 1817
Inácio - 1820
Francisca - 1822
Vicente e Maria Vicência - 1824
Rosa - 1825
Joaquim - 1827
Lino - 1829
Mariana - 1832
Cândida 1834
Maria Jacinta - 1837
Raimundo - 1839

Ocorre que a Lista de habitantes da Freguesia de São João Baptista do Presídio no ano de 1819 traz claramente a família de Manuel Silvério e Maria do Carmo (inclusivamente confirmando a informação das anotações genealógicas sobre a filha ilegítima de Manuel, Rita), mas as idades declaradas naquela época não coincidem com as das anotações. Manuel Silvério seria do ano de 1764, e não de 1766; Maria do Carmo seria de 1795, e não de 1797. Mas as discrepâncias de idade aumentam relativamente à lista de filhos. Inicalmente as diferenças eram de 2 anos, mas Francisca, supostamente nascida em 1822, na verdade era do ano de 1818 na Lista.
Ora, aplicando-se a mesma proporção de tempo desde Francisca (a filha  mais nova ao tempo da Lista), que é de um filho a cada dois anos, se esse ritmo se mantivesse, respeitada a ordem de nascimento informada nas anotações, Mariana teria nascido em 1828. Ora, sabemos que o seu primeiro filho, tio José Belisário, era do ano de 1841, assim, Mariana teria tido esse primeiro filho com a idade de 13 anos, o que é muitíssimo improvável. A idade mais normal para casamento de moças em famílias bem estruturadas, como era o caso, era a partir dos 16 ou 17 anos, até pelos 20 anos. Tendo em conta o nascimento do nosso tio, Mariana deveria ser do ano de 1824 ou mais provavelmente 1825.
Assim, reforça-se a ideia de que Mariana não era filha de Manuel Silvério e Maria do Carmo.
Mas então o que explicaria o facto de três filhos de Luciano Dias Paes e Ana Angélica de Andrade terem se casado com três filhos de Belisário Alves Pereira e Mariana Luísa de Paiva? Esta intensa ligação estaria justificada pelo facto das duas mulheres serem irmãs, ou seja, Mariana seria mesmo filha de Manuel Silvério e Maria do Carmo.
A verdade é que José Belisário casou-se com a tia Chiquinha, Maximiano casou-se com Heduviges, e Rita casou-se com Raimundo. Mas Ana Luíza casou-se com Sebastião Dias Paes, neto de Vicente Dias Paes, assim como Luciano Dias Paes, pai de Heduviges, Chiquinha e Raimundo. E Sebastião não tinha laço de parentesco direto com Ana Angélica, para além de ser sua prima.
Recorde-se que a forma habitual de arranjar casamentos na zona da mata a ser desbravada era mesmo a de arranjos familiares, já que as famílias viviam isoladas em suas fazendas em uma região ainda selvagem e fechada. Isso se fazia dentro da mesma família, ou então entre famílias amigas. Pode ser que a forte ligação que motivou os casamentos de três filhos de Luciano e Ana Angélica com os três filhos de Belisário e Mariana fosse de amizade apenas, o facto de terem sido três casamentos entre filhos desses dois casais reforça minimamente uma forte amizade ao longo de muitos anos.
Outra informação, esta também do inventário de Belisário, é que Mariana não sabia ler e escrever, tanto assim que a sua declaração de inventariante tem que ser assinada a rogo, ou seja, pelo escrivão em seu nome.
Essas evidências já colocam em causa algumas das informações que o testemunho familiar fez chegar. Devemos, no entanto, ter em consideração que a provável origem dessas informações é o tio Luciano Dias de Andrade, filho de Luciano Dias Paes e Ana Angélica de Andrade, a filha mais velha dos supostos pais de Mariana: Manuel Silvério Vieira de Andrade e Maria do Carmo.
Pode-se presumir que o tio Luciano quis juntar aos Alves Pereira a ancestralidade dos Vieira de Andrade, mas não se pode perder de vista que o tio Luciano foi contemporâneo da própria Mariana!
Ele nasceu em 1841, faleceu apenas em 1921, e Mariana, sendo mais velha que o tio Luciano, provavelmente de 1824, por exemplo, faleceu certamente em 1891. Com 50 anos de idade ao tempo do falecimento da sua suposta tia Mariana, o tio Luciano Dias de Andrade não poderia andar a inventar o que não tivesse conhecimento direto, assim como a restante família, certamente conhecedora das origens de Mariana, iria aturar uma tramoia deste tamanho, ou seja, a de inventar que Mariana era irmã de sua mãe Ana Angélica enquanto, na verdade, seria de uma família com sobrenome Paiva, provavelmente, da região de Piranga. 
A possibilidade mais verossímil é que esta atribuição errada tenha sido avançada mais à frente, provavelmente, pelo tio Luciano Alves Pereira, promotor do Museu do Tic Tac, em Belisário. Ao verificar a ancestralidade de sua mãe Heduviges, o tio Luciano está mais distante do tempo dos acontecimentos, mas ainda contemporâneo de Mariana (o tio Luciano era do ano de 1877, ou seja, tinha 14 anos ao tempo do falecimento de sua avó por parte de pai, sendo que moravam ambos em Belisário ao tempo do desaparecimento de Mariana).
Facto é que sua irmã mais velha, Maria Augusta, dizia à tia Lila que o Paiva de Mariana era o mesmo de seu marido Antônio Gomes... Entre esses dois irmãos, algum estava enganado. Poder-se-ia imaginar que o Paiva de Mariana teria sido uma homenagem à outra mulher com o mesmo nome, supostamente, sua madrinha, por exemplo. Mas se assim fosse, por quê repetir o sobrenome ao batizar sua própria filha, Ana Luísa?
Tendo em conta a questão fundamental, a de saber qual é a ascendência de Mariana, eu sinceramente acredito mais que seja mesmo de uma família com sobrenome Paiva que da ascendência que lhe é atribuída.
A primeira evidência em favor da ascendência como Paiva está também no inventário de Belisário: o nome completo de sua primeira filha é Ana Luísa de Paiva. Mais uma vez é usado o sobrenome Paiva. Seria mesmo de supor que este não é o sobrenome da família de Mariana, mesmo ela o tendo usado expressamente para batizar a sua filha mais velha?
Mas não ficamos por aqui: Germano, o segundo filho mais velho, casou-se com Rita Umbelina de Paiva. Ora, a tia Rita era uma irmã mais velha do vovô Antônio Gomes de Paiva.
Aqui já ficamos mais próximos do testemunho da vovó Augusta: se o casamento de Germano e Rita foi um arranjo familiar, então é evidente que Mariana era parente do pai do vovô Antônio Gomes: o velho Gomes José de Paiva.
Há por fim um indício curioso: uma das filhas de Manoel Martins de Paiva, rico português dono de minas de ouro em Vila Rica, era justamente Mariana Luísa de Paiva, o nome de uma irmã sua que havia ficado no Porto.
Sendo esse indício verdadeiro, Mariana e o velho Gomes eram descendentes de Manoel Martins de Paiva radicados em Piranga, onde o velho Gomes declarou ser natural. É mesmo capaz que o velho Gomes e Mariana tenham sido primos a partilhar a infância familiar, já que o velho Gomes era de 1829 e o ano de nascimento de Mariana é estimado em 1825.
Resta compreender porquê foi atribuída a Mariana a ascendência de Manuel Vieira de Andrade e Maria do Carmo Fonseca e Silva.
Pelo sim, pelo não, fica este enigma para ser desvendado!