domingo, dezembro 22, 2024

Meditações sobre os poemas que precisam de ser escritos

Desde o meu primeiro encontro com a poesia, visto óculos de ver o mundo segundo as suas lentes. Meu pensamento de menino ficou para sempre impactado com a possibilidade de se condensar significados complexos em rimas aparentemente inocentes. Pela sua melodia simples, repetiam-se no pensamento sem muito esforço, deixando sedimentar as profundas convicções de "colheita poética" na alma do leitor.
O príncipe dos poetas abriu em mim esse salão das possibilidades ilustradas de se ver a vida. Bilac chegou-me pela minha professora primária, e pelo meu farmacêutico. A dona Rosa declamava "a última flor do Lácio", e o Dr. Gélio "Ora, direis ouvir estrelas...", e o meu pensamento viajava da península itálica para a antiga Lusitânia, para as nossas Minas e subia por fim ao infinito imaginável da própria Via Láctea.
De Bilac, restou em mim o respeito inegociável à poesia. A sua dignidade sagrada, a sua expressão medida, e a indizível e delicada formação de versos (a um só tempo singelos e complexos), elevam-na à posição de insumo da própria ordem natural do homem, colaborando para a sua dimensão transcendental. A sua elevada dimensão entre as artes está portanto justificada na sua incomparável potência para o leitor.
Mais tarde na minha vida, atacado pelas paixões de rapazito, fui buscar no Poetinha a compreensão dos meus próprios sentimentos. Embora a paixão não seja boa conselheira para o entendimento, a intensidade brutal das suas fixações convida a própria imaginação a dar saltos novos de compreensão do mundo. Por isso, o diminutivo na alcunha só tem mesmo o sentido do carinho que Vinicius de Moraes merece, e nunca qualquer pequenez. 
Muitos outros poetas conversaram comigo. Sou bom amigo de Luís de Camões, Bocage, Florbela, Drummond, Bandeira, Quintana, Pessoa... e tantos outros que, não merecendo menção por não ombrear no estatuto, foram suficientemente honestos para ajudar a talhar o meu "reino das palavras", como o chamava Drummond. Sem este reino, nenhum poeta pode ser acamado rei de sua poesia. Será um rimador, um redator de ideias metafóricas organizadas em poema, eventualmente um letrista de música, mas não um verdadeiro poeta.
Talvez o critério mais importante para se abrir a porta de entrada nesse reino (em alusão à pergunta de Drummond: "Trouxeste a chave?"), seja a seriedade das meditações sobre os poemas que precisam de ser escritos.
As angústias e obrigações da vida, a brutalidade dos interesses materiais, a maldade calcada nesses mesmos interesses e na ignorância da grandeza do espírito, vão deitando terra para cima das considerações poéticas. Sujas, as lentes dos óculos poéticos pouco ou nada vêem, e a muitas injustiças poéticas são cometidas, em prejuízo do poeta e do resto do mundo. Vou explicar melhor essas considerações.
Sendo mais direto, e em resposta a um pedido reverso, as minhas meditações sobre os poemas que precisam de ser escritos são das orações mais sentidas da minha alma, rezadas no silêncio e no escuro do meu quarto, enquanto o sono me aguarda. Falo a Deus de toda a beleza e toda a tragédia que vi nas coisas banais do mundo, e que será esquecida no sono daquela noite. Eventualmente, no entanto, há significados demasiado grandes para serem ignorados, e quanto a esses, Deus não me concede o perdão na forma do esquecimento.
Os poemas que precisam de ser escritos são a brutalidade da verdade da vida ilustrada nas nossas experiências, as que marcam profundamente os nossos sentimentos e convicções morais. Visto na dimensão da sua seriedade, apenas os poemas que precisam de ser escritos é que deveriam mesmo sê-lo. Mas, curiosamente, não escrevê-los fá-los crescer em nós, em um amontoar de pressão poética que se vai tornando progressivamente mais dramático: ignorá-los é o pior que se pode fazer.
Assim, constrangido de todas as formas, pressionado pelas suas convicções profundas, complacente com o poema que de dentro lhe sorri sincero, o poeta resolve materializar aquilo em verso, com medo de que o resultado final seja feinho e desajeitado.
No entanto, esse receio jamais se converte em realidade. O poema que precisa de ser escrito é sempre bonito, pois ele é expressão de poesia vivida, a única fonte de poesia legítima que pode haver.
Desprendido do poeta, o poema ganha uma vida própria. Vai ser lido por outros que vão encontrar nele uma mistura de identificação com os sentimentos e convicções do poeta e identificação com os próprios, em uma espécie de matrimónio poético que irá modificar o leitor muito mais do que ele pode imaginar.
Esse efeito transformador, (adivinhem só), está reservado aos poemas que precisavam de ser escritos. Ele possuiu (e destruiu) Verlaine, salvou Camões do inferno, elevou Dante ao céu, deu a Vinicius a coragem que não tinha, e me projetou grandemente para fora de mim mesmo, extrovertendo o que seria de outra forma ignorado e reprimido.
Ainda em mim habitam muitos poemas que precisam de ser escritos. São meus amigos, esses poemas. Obviamente que eu não os ignoro, pelo contrário: conversamos em trovas filosóficas. Olham-me nos olhos com um amor e uma paciência que me deixam completamente à vontade. Eles sabem quem eu sou, e o lugar deles em mim é o das convicções mais sérias e reservadas. Talvez chegue o dia em que a pressão poética me fará escrever esses poemas. Até lá, entretanto, vou tentando compor melhor em mim a expressão de cada um deles, para que a sua derradeira forma seja tão significativa para outros, como já é para mim mesmo.

sexta-feira, março 22, 2024

Há 100 anos Toninho Miano veio ao mundo


No dia 18 de Março de 1924, na fazenda Santa Cruz, Sinhá deu à luz ao seu oitavo filho. O menino levou o nome do avô paterno, mas nos sobrenomes Miano resolveu repetir a combinação que recebeu a tia Manzica, pois com Gomes de Paiva já havia o seu pai e o seu irmão. Assim, o menino que viria a ser o meu avô foi batizado Antônio Gomes Martins.
Acho que esta combinação com os sobrenomes do pai e da mãe foi muito feliz, em que pese eu ter ficado sem o Paiva. Isso porque vejo nele os traços da família de um e outro lado, em que pode unir o muito do que era bom, e evitar o algum que era mau.
Antes de fazer a reconstituição da genealogia do meu avô, louvando os nossos antepassados, ou mesmo contar histórias da sua infância, vou falar do Toninho Miano que eu conheci, muito pequeno ainda, e do que me foi dado a conhecer por toda a gente que conviveu mais com ele.
Meu avô morreu muito cedo. Tinha apenas 62 anos. Pior, morreu de repente, sem que fosse esperado, e em uma terra que, embora não fosse estrangeira, não era mineira. Acho que muitos de nós na família nunca aceitamos a morte dele. E foi (e é) assim não porque nos falte fé em Deus, ou confiança na Sua divina composição dos assuntos do mundo. Antes, a saudade que permanece é muito fruto de corações eternamente cativados pela sua indizível bondade e carisma.
Dotado de uma invulgar prudência, aliada a um caráter brando e extrovertido, mas muito firme no sentido do que era certo, fez uma vida de trabalho e de amor com raríssimo sucesso.
Digo mesmo, sem qualquer sombra de exagero, que meu avô foi o homem mais bem sucedido que alguma vez conheci. Isso porque ele venceu em todos os campos relevantes da vida. Foi capaz de prover aos seus e encaminhar muito bem todos os filhos, esteve presente para os seus irmãos e para os seus pais, ajudou mesmo aqueles que mal conhecia, por vezes oferendo a quem lhe tinha mostrado ingratidão uma redentora misericórdia. 
Na origem de tanto êxito, ouso dizer, estava uma fé inquebrantável em Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando esteve em vias de embarcar para a Guerra, a vovó Agusta lhe dirigiu uma carta em que rogava para que Nossa Senhora continuasse a protegê-lo. E quando, já mais tarde na vida, o seu jipe virou de ponta cabeça em uma ponte precária na estrada de Santa Bárbara, ele chamou pela intervenção de Santa Rita e teve a vida poupada.
Não só nesses momentos críticos, mas sobretudo nas longas tribulações que viveu ao lado da minha avó, seu grande amor, Deus orientou sempre a suas ações. E é justamente por isso que o Toninho sentia uma necessidade tão grande em ser caridoso: o amor de Deus deve ser emulado no amor que temos pelo próximo. Assim como sempre viu fazer a sua mãe Sinhá, Toninho fazia os possíveis para ajudar quem precisava.
Entre as várias histórias que demonstram esse comprometimento com a bondade, sem necessidade de fazer alarde, está uma história que chegou por uma pessoa anônima para mim, e por isso mesmo carrega muito da verdade. Contou-me essa senhora, hoje com mais de 50 anos de idade, que menina ainda, com a idade de 10 anos, trabalhava colhendo café para o meu avô. Com os bracinhos pequenos, não conseguia ir aos ramos mais altos do pé de café, e nem tinha disposição física para fazer a jornada de trabalho com os adultos, daí o valor da sua diária era de metade da de um adulto. No entanto, Toninho sabia que ela tinha uma mãe doente em casa e mais dois irmãozinhos menores, por isso um dia lhe fez uma oferta: "A partir de agora vou lhe pagar o mesmo que pago a um adulto, mas não pode contar para ninguém".
Ainda consigo ouvir a sua risada. Mesmo tendo se passado tantos anos do seu desaparecimento e sendo eu tão pequeno quando ele se foi. Na verdade, a morte pode nos privar da presença física, mas não é capaz de tirar de nós a presença do exemplo.
Muitas vezes na minha vida, ressentido por alguma dificuldade, ou chateado por não ter recebido o mesmo tratamento que dediquei aos outros, não me veio como um raio caído do céu o semblante sério do meu avô recordando a obrigação de ter gratidão pelo que me foi concedido? Quantas vezes as histórias de rebeldia do meu pai com ele, em que rapou o cabelo depois do meu avô ter dito que não tinha cortado o suficiente, ou sair de casa a bater com a porta quando o meu avô lhe negava um dinheirinho para sair à noite não serviram para me ensinar prudência e comedimento?
A sanha de enriquecer que nos corre nas veias desde os Alves Pereira, no Toninho teve um propósito muito elevado, também graças à rara inteligência da Ziza, sua amada mulher. Minha avó tinha o tino para os negócios dos Bicalho, muito astutos e pacientes. Esse planejamento, somado à inteligência e à energia que o Toninho recebeu do vovô Miano, fez com que a sua tropa de burros de carga a serviço do Juquinha do Vale se transformassem em muitas terras, muito café, muitas casas e lojas.
O exemplo de vida santa de Sinhá sempre pesou para que as atitudes com os outros (e com ele mesmo) fossem as mais corretas. Daí o dinheiro nunca foi idolatrado. O propósito da sua vida frugal e muito poupada (não posso aqui negar que o Toninho não gostava de gastar dinheiro!) era ajuntar o suficiente para nada faltasse aos seus amados filhinhos e netos.
Assim também aprendi com ele: com correção nos negócios, ir na direção certa, mesmo que não fosse tão rápido quanto gostaria. Até hoje, tem dado muito certo para mim!
É importante lembrar desse seu lado porque embora Toninho fosse muito alegre e brincalhão com os netinhos, também era disciplinador e gostava de dar tarefas para todos, pois não gostava de ver ninguém desocupado.
Eis mais uma lição que procuro aplicar à minha vida: aproveitar ao máximo o tempo e envolver as pessoas em atividades em que possam também tirar proveito. Essa é aliás uma forma muito simples para se fazer amizades boas e ajudar as pessoas, embora haja os que acham que estamos apenas a lhes dar serviço!
Nestes 100 anos do nascimento do Toninho, termino destacando uma das suas feições mais bonitas: o seu imenso amor pela minha avó. Quantas vezes vi nos olhos dela e no seu sorriso comedido a lembrança do meu avô como uma saudade cheia de dor, pelo vazio monumental que alguém tão grande como ele deixa, mas também cheia de orgulho pela sua herança de amor, força e misericórdia.
Um amor que mesmo lá no São Carlos, sem luz e água corrente, ajudaram-se um ao outro a cuidar dos filhinhos que chegavam, principalmente naquele início de vida juntos, em que entre o nascimento do tio Max e o tio Domingos tinha decorrido pouco mais de um ano!
Minha linda avô levou sempre consigo a memória do meu avô. A sua própria nobreza de alma sempre serviu para elevá-lo ainda mais aos nossos olhos.
Hoje no céu, abraçados e a sorrir, esse lindo casal olha por nós, celebrando os 100 anos de nascimento do Toninho, que deixou o mundo tão melhor do que encontrou, e será sempre merecedor das nossas mais profundas saudades.


quarta-feira, fevereiro 07, 2024

O enigma de Mariana

Brasão dos Paiva

Há um nome que ressoa de forma muito contundente na minha ancestralidade: Mariana Luísa de Paiva.
Mariana foi a esposa de Belisário Alves Pereira, o célebre desbravador e tropeiro da Zona da Mata na segunda metade do século XIX. A contrastar com a vida rude e agreste de seu marido, Mariana teria tido uma educação esmerada, gostava de poesia, e sabia ler e escrever corretamente. Era uma mulher um pouco diferente das que fizeram a transição da região das minas para a mata.
Desde a sua aura lívida e feminina, há um mistério a perdurar: qual é a ascendência de Mariana?
Essa pergunta pode parecer tola, uma vez que a tradição familiar dos Alves Pereira estabeleceu que ela é uma das filhas mais jovens de Manoel Silvério Vieira de Andrade e de Maria do Carmo Fonseca e Silva, tendo nascido a 10 de Março de 1832.
Essas informações me foram dadas a conhecer pela prima Nina Campos e, penso eu, ela pelos registros do Museu do Tic Tac em Belisário (então formado pelo tio Luciano Alves Pereira). O tio Luciano, por sua vez, valeu-se (suponho eu) dos registros do seu tio Luciano Dias de Andrade, um importante proprietário rural de Ubá.
A prima Nina Campos, no seu História de Belisário, ainda acrescenta mais informações sobre Mariana: seria descendente do bandeirante Fernão Dias Paes, surpeendendo-se do seu sobrenome não ser Dias.
Somadas essas referências da ascendência de Mariana pelo lado dos Alves Pereira, há uma referência familiar direta que nos chegou pela vovó Augusta: o Paiva de Mariana (sua avó paterna) era o mesmo Paiva do seu marido Antônio Gomes de Paiva.
Está então armada a confusão: de onde veio a nossa antepassada? É Paiva? É Dias Paes? É Vieira de Andrade?
Diante dessas dúvidas, virei-me para os poucos documentos que nos chegaram sobre Mariana.
O documento mais importante é sem dúvida o processo de inventário dos bens deixados pelo seu marido Belisário. Pela relação dos herdeiros, é possível colher o ano de nascimento exato dos filhos mais novos e estimar a dos filhos mais velhos. Assim sendo, temos o seguinte:

José Belisário Alves Pereira - 1841
Ana Luísa de Paiva- 1845
Germano Alves Pereira - 1847
Maria Theodora de Jesus -1849
Maximiano Alves Pereira - 1851
Antônio Alves Pereira - 1853
Rita Cypriana de Jesus - 1855
Manoel Alves Pereira - 1858
Joaquina Izidora de Jesus - 1862

A idade do primeiro filho também é certa. O tio José Belisário deixou um inventário com muitas e preciosas informações. Lá está declarado que faleceu em 1924 com a idade de 83 anos. Assim, era do ano de 1841.
Aqui já se desfaz a informação do Museu do Tic Tac sobre o ano de nascimento, pois se Mariana fosse mesmo do ano de 1832, teria tido o primeiro filho com 9 anos de idade... o que não faz qualquer sentido.
Aliás, através das evidências que chegaram reforça a ideia de que muito provavelmente Mariana não seja filha de Manoel Silvério e Maria do Carmo. Veja-se que as anotações sobre a genealogia do tio Luciano Dias de Andrade, irmão da vovó Heduviges, informa-se que os supostos pais de Mariana tiveram os seguintes filhos:

Ana Angélica - 1815
Manuel - 1817
Inácio - 1820
Francisca - 1822
Vicente e Maria Vicência - 1824
Rosa - 1825
Joaquim - 1827
Lino - 1829
Mariana - 1832
Cândida 1834
Maria Jacinta - 1837
Raimundo - 1839

Ocorre que a Lista de habitantes da Freguesia de São João Baptista do Presídio no ano de 1819 traz claramente a família de Manuel Silvério e Maria do Carmo (inclusivamente confirmando a informação das anotações genealógicas sobre a filha ilegítima de Manuel, Rita), mas as idades declaradas naquela época não coincidem com as das anotações. Manuel Silvério seria do ano de 1764, e não de 1766; Maria do Carmo seria de 1795, e não de 1797. Mas as discrepâncias de idade aumentam relativamente à lista de filhos. Inicalmente as diferenças eram de 2 anos, mas Francisca, supostamente nascida em 1822, na verdade era do ano de 1818 na Lista.
Ora, aplicando-se a mesma proporção de tempo desde Francisca (a filha  mais nova ao tempo da Lista), que é de um filho a cada dois anos, se esse ritmo se mantivesse, respeitada a ordem de nascimento informada nas anotações, Mariana teria nascido em 1828. Ora, sabemos que o seu primeiro filho, tio José Belisário, era do ano de 1841, assim, Mariana teria tido esse primeiro filho com a idade de 13 anos, o que é muitíssimo improvável. A idade mais normal para casamento de moças em famílias bem estruturadas, como era o caso, era a partir dos 16 ou 17 anos, até pelos 20 anos. Tendo em conta o nascimento do nosso tio, Mariana deveria ser do ano de 1824 ou mais provavelmente 1825.
Assim, reforça-se a ideia de que Mariana não era filha de Manuel Silvério e Maria do Carmo.
Mas então o que explicaria o facto de três filhos de Luciano Dias Paes e Ana Angélica de Andrade terem se casado com três filhos de Belisário Alves Pereira e Mariana Luísa de Paiva? Esta intensa ligação estaria justificada pelo facto das duas mulheres serem irmãs, ou seja, Mariana seria mesmo filha de Manuel Silvério e Maria do Carmo.
A verdade é que José Belisário casou-se com a tia Chiquinha, Maximiano casou-se com Heduviges, e Rita casou-se com Raimundo. Mas Ana Luíza casou-se com Sebastião Dias Paes, neto de Vicente Dias Paes, assim como Luciano Dias Paes, pai de Heduviges, Chiquinha e Raimundo. E Sebastião não tinha laço de parentesco direto com Ana Angélica, para além de ser sua prima.
Recorde-se que a forma habitual de arranjar casamentos na zona da mata a ser desbravada era mesmo a de arranjos familiares, já que as famílias viviam isoladas em suas fazendas em uma região ainda selvagem e fechada. Isso se fazia dentro da mesma família, ou então entre famílias amigas. Pode ser que a forte ligação que motivou os casamentos de três filhos de Luciano e Ana Angélica com os três filhos de Belisário e Mariana fosse de amizade apenas, o facto de terem sido três casamentos entre filhos desses dois casais reforça minimamente uma forte amizade ao longo de muitos anos.
Outra informação, esta também do inventário de Belisário, é que Mariana não sabia ler e escrever, tanto assim que a sua declaração de inventariante tem que ser assinada a rogo, ou seja, pelo escrivão em seu nome.
Essas evidências já colocam em causa algumas das informações que o testemunho familiar fez chegar. Devemos, no entanto, ter em consideração que a provável origem dessas informações é o tio Luciano Dias de Andrade, filho de Luciano Dias Paes e Ana Angélica de Andrade, a filha mais velha dos supostos pais de Mariana: Manuel Silvério Vieira de Andrade e Maria do Carmo.
Pode-se presumir que o tio Luciano quis juntar aos Alves Pereira a ancestralidade dos Vieira de Andrade, mas não se pode perder de vista que o tio Luciano foi contemporâneo da própria Mariana!
Ele nasceu em 1841, faleceu apenas em 1921, e Mariana, sendo mais velha que o tio Luciano, provavelmente de 1824, por exemplo, faleceu certamente em 1891. Com 50 anos de idade ao tempo do falecimento da sua suposta tia Mariana, o tio Luciano Dias de Andrade não poderia andar a inventar o que não tivesse conhecimento direto, assim como a restante família, certamente conhecedora das origens de Mariana, iria aturar uma tramoia deste tamanho, ou seja, a de inventar que Mariana era irmã de sua mãe Ana Angélica enquanto, na verdade, seria de uma família com sobrenome Paiva, provavelmente, da região de Piranga. 
A possibilidade mais verossímil é que esta atribuição errada tenha sido avançada mais à frente, provavelmente, pelo tio Luciano Alves Pereira, promotor do Museu do Tic Tac, em Belisário. Ao verificar a ancestralidade de sua mãe Heduviges, o tio Luciano está mais distante do tempo dos acontecimentos, mas ainda contemporâneo de Mariana (o tio Luciano era do ano de 1877, ou seja, tinha 14 anos ao tempo do falecimento de sua avó por parte de pai, sendo que moravam ambos em Belisário ao tempo do desaparecimento de Mariana).
Facto é que sua irmã mais velha, Maria Augusta, dizia à tia Lila que o Paiva de Mariana era o mesmo de seu marido Antônio Gomes... Entre esses dois irmãos, algum estava enganado. Poder-se-ia imaginar que o Paiva de Mariana teria sido uma homenagem à outra mulher com o mesmo nome, supostamente, sua madrinha, por exemplo. Mas se assim fosse, por quê repetir o sobrenome ao batizar sua própria filha, Ana Luísa?
Tendo em conta a questão fundamental, a de saber qual é a ascendência de Mariana, eu sinceramente acredito mais que seja mesmo de uma família com sobrenome Paiva que da ascendência que lhe é atribuída.
A primeira evidência em favor da ascendência como Paiva está também no inventário de Belisário: o nome completo de sua primeira filha é Ana Luísa de Paiva. Mais uma vez é usado o sobrenome Paiva. Seria mesmo de supor que este não é o sobrenome da família de Mariana, mesmo ela o tendo usado expressamente para batizar a sua filha mais velha?
Mas não ficamos por aqui: Germano, o segundo filho mais velho, casou-se com Rita Umbelina de Paiva. Ora, a tia Rita era uma irmã mais velha do vovô Antônio Gomes de Paiva.
Aqui já ficamos mais próximos do testemunho da vovó Augusta: se o casamento de Germano e Rita foi um arranjo familiar, então é evidente que Mariana era parente do pai do vovô Antônio Gomes: o velho Gomes José de Paiva.
Há por fim um indício curioso: uma das filhas de Manoel Martins de Paiva, rico português dono de minas de ouro em Vila Rica, era justamente Mariana Luísa de Paiva, o nome de uma irmã sua que havia ficado no Porto.
Sendo esse indício verdadeiro, Mariana e o velho Gomes eram descendentes de Manoel Martins de Paiva radicados em Piranga, onde o velho Gomes declarou ser natural. É mesmo capaz que o velho Gomes e Mariana tenham sido primos a partilhar a infância familiar, já que o velho Gomes era de 1829 e o ano de nascimento de Mariana é estimado em 1825.
Resta compreender porquê foi atribuída a Mariana a ascendência de Manuel Vieira de Andrade e Maria do Carmo Fonseca e Silva.
Pelo sim, pelo não, fica este enigma para ser desvendado!

terça-feira, dezembro 26, 2023

Vovô Miano

Vovô Miano com cerca de 68 anos de idade

Mesmo depois da família formada e os filhos encaminhados, a Cristalina concebida e, desde cedo, bem gerida pelo tio Zezé, o vovô Miano não chega a se aposentar propriamente. Manteve-se sempre ativo e, mesmo, inquieto.
Nesta fase de sua vida, estava cada vez mais à mercê dos seus dos problemas de saúde, com gestos de bondade, afeto e imensa capacidade criativa alternados por surtos de alguma insanidade.
Usava a sua inegável inteligência para tocar a sua sanfoninha vermelha de oito baixos, desenvolvia fechaduras intrincadas, concertava charretes, fabricava balões e fogos de artifício para as festas e ensaiava o seu grupo de quadrilha com esmero.
É dessa época a maior parte das histórias que chegaram sobre ele. Algumas são anedotas, outras ilustram os seus problemas de saúde e um crescente desequilíbrio mental, todas mostram uma pessoa muito inteligente e corajosa, mas que acabava por causar problemas.
Ainda no tempo da rapadura Santa Cruz, o vovô Miano tinha comprado muitas terras ali por perto. O sítio no São Carlos foi para o meu avô Toninho tomar conta, já o sítio da Fazenda Boa Vista foi para o tio Pedrinho, e na região de Santa Bárbara próximo ao tio Zé Bamburral, também tinha terras. O tio Zezé tinha ficado ali mais perto dele. Era habitual que fosse sozinho de charrete visitar os filhos, mesmo sofrendo de uma espécie de demência ocasional, voltando para casa cheio de mantimentos que lhe eram oferecidos. 
Numa dessas visitas à casa do tio Zezé, ao ver uma erva de passarinho a tomar conta do cimo da laranjeira, trepou lá para cima para arrancá-la. Apavorada, a tia Leni gritou: "Senhor Miano, o senhor vai cair daí de cima!", ao que Miano respondeu: "Não tem perigo. Estou amarrado em mim e nos galhos", retirando toda a erva de passarinho da laranjeira. Era destemido e muito confiante nas suas próprias capacidades.
Calculo que seja também desse tempo em que tinha momentos de lucidez, alternados por momentos em que a doença atacava, que a sua auto-confinaça excessiva podia sair de controle. 
Aqui vale recordar a famosa travessia da ponte com a Dona Dorvina, mãe da tia Miriam e sogra do tio João. Em uma ida de charrete à Miradouro, acompanhou-lhe a Dona Dorvina. Na volta para a Santa Cruz, o vovô Miano decide voltar pela saída da Rua Santo Antônio, atravessando a ponte dos Marianos, seus primos. Acontece que a tal ponte, além de muito alta, com pedras lá embaixo, estava em péssimo estado, cheia de buracos, de onde se via o rio embaixo. O cavalo ficou com medo, e resolveu não avançar. Diante do impasse, Miano virou-se para a pobre senhora e perguntou: "Dona Dorvina, vamos se astrever?" E sem que ela pudesse responder, desceu o chicote no animal, que partiu em disparada, com a charrete vacilando entre os buracos, até que resvalou e quase caiu lá embaixo, ficando com a roda presa do lado da ponte e os dois arragados à charrete. Depois de muita aflição, foram socorridos pelo primo Pedro Mariano e graças a Deus, não aconteceu nada de mais.
Infelizmente, às vezes esses rompantes custavam caro, tomando proporções absurdas. Em uma outra viagem de charrete, mais uma vez para visitar os filhos, novamente atacado pela demência precoce, e possivelmente atacado espiritualmente por obsessores, aconteceu o triste episódio com a Dona Ana Bahia, que foi contado pelo primo Zé Paulo:

Certa vez, ao passar em frente à entrada da fazenda do senhor Olegário Matta, Miano resolve se insinuar para a dona Ana Escala, conhecida como Ana Bahia, que tinha um sítio em cima do barranco. A mulher o repreendeu, mas Miano insistiu com aquela conversa. Dona Ana Bahia então contou para o seu marido e combinaram que na próxima vez que ele viesse com aquela falta de respeito ele daria um susto no vovô. No outro dia, ele indo lá no tio Zezé resolveu parar na dona Ana, quando ele tentou agarra-lá, o marido saiu com um revólver na mão pensando que isso o assustaria. Miano, no entanto, arrancou uma faca da cintura e partiu para cima do homem que, para não atirar pois sabia da sua demência, deu uma coronhada na cabeça dele que o deixou atordoado. Marido e mulher trancaram-se dentro de casa até que ele se refizesse e fosse embora, assim aconteceu. A seguir, ele parou no ribeirão próximo à casa do tio Zezé, lavou o sangue da camisa, colocou o chapéu para tampar o machucado. Chegou no tio Zezé justificou que estava muito calor, almoçou e voltou pra casa. Na hora da janta, a vovó queria que ele tirasse o chapéu como era de costume, ele se negou dizendo que teve uma visão e falaram pra ele ficar direto com chapéu. Dormiu com ele e fez suas refeições por um bom tempo... Uma noite a vovó sentiu um cheiro estranho e tirou o chapéu dele enquanto dormia, ele estava com uma ferida imensa toda infeccionada. Os filhos apertaram, e daí ele contou a história.

Assim, Miano era ao mesmo tempo um homem muito capaz e muito responsável com seus negócios e bom para os seus filhos e família em geral, mas ao mesmo tempo, dado a atos de insanidade muitas vezes imprevisíveis. Fosse como fosse, nunca deixou de ser justo e de querer fazer o bem.
Como referido, assim que ganhou mais dinheiro com as rapaduras, tratou logo de encaminhar os filhos. Além disso, também ajudava os irmãos mais novos, nunca se negando a apoiá-los no que iam precisando, mas nada de excessivo. A divisa do vovô Miano que o meu pai mais gosta mostra mesmo esse seu lado prudente: "O homem tem que ser bão. Porque o bão-bão arrebenta no chão!"
A mudança da Fazenda Santa Cruz para Miradouro mostra mesmo isso. Como conta o primo Zé Heitor, no contexto de abundância de dinheiro gerada ainda pela rapadura Santa Cruz, o tio José Natálio, vendo o tio Zezé a trabalhar muito já naquela época, dirigindo os negócios de seu pai, e encaminhando os irmãos, mas sem nada ter de seu propriamente, (pois estava destacado na Fazenda Santa Cruz), sugeriu ao seu cunhado Miano: "O senhor devia dar alguma coisa ao Zezé, ele trabalha muito, tem encaminhado os irmãos, mas ele mesmo não tem nada no seu nome. Quero comprar a casa na praça Santa Rita à tia Carolina, daí desmanchamos e cada um faz a sua casa". 

Praça Santa Rita ainda com a casa da tia Carolina (à esquerda), depois comprada a meia pelo tio Zé Natálio e vovô Miano

O vovô Miano concordou, mas ao dar a sua metade do terreno ao tio Zezé, propôs-lhe que fizesse uma casa de dois apartamentos, com o dele por cima: foi bão! E assim foi feito. Acredito que isso tenha decorrido aí pelo final dos anos de 1940.
Concluída a obra, mudaram-se para Miradouro e as viagens para a Fazenda Santa Cruz eram feitas de charrete, ou trolley, uma espécie de charrete de quatro rodas, com duas poltronas.

A Praça de Santa Rita de antigamente, com a sua primeira casa de dois andares, construída pelo tio Zezé

Mais ou menos na altura em que Miano e Sinhá mudam-se para Miradouro, também é concluída a primeira fase da construção da rodovia Rio-Bahia, que teve e ainda teria grande impacto sobre a vida da família.
A rodovia começa a ser construída em 1939, sendo concluída em 1949. 

À inauguração, a Rio-Bahia chamava-se BR-4

Originalmente, a Rio-Bahia aproveitou as estradas regionais que haviam sido abertas pelos primeiros povoadores da Zona da Mata e mesmo pelos tropeiros. Essas estradas seguiam os princípios de penetração do território pelas bandeiras: o seguimento do curso dos rios. Foi assim que a rodovia atravessava a Fazenda Santa Cruz na sua parte mais baixa, havendo ali um grande percurso mais junto ao rio. 
Caminhões na Rio-Bahia sem pavimentação a atravessar a Fazenda Santa Cruz. Em destaque, a venda do tio Albertinho

Nos anos de 1950, a Rodovia começa a ser pavimentada com asfalto, construindo-se também muitas pontes e viadutos. É feita também a sua transposição para uma parte mais elevada, de modo a promover um percurso mais eficiente, com menos curvas, o que implicava em abrir caminho por entre montanhas, por vezes, de rochas, e construir grandes viadutos.
Foi ainda antes dessa obra de pavimentação, no tempo da transposição dos primeiros trechos, nos anos de 1940 que muitas terras do vovô Miano são desapropriadas pelo Governo Federal, sem que pagassem qualquer indemnização. Há um requerimento dele à Secretaria Geral de Viação e Obras em 1942 a pedir uma compensação, tendo sido indeferido. A fazenda Santa Cruz foi cortada em três partes, inclusivamente prejudicando os canaviais. Esse verdadeiro abuso gerou-lhe muita consternação, e na minha opinião, pode lhe ter agravado a doença. De todas as formas, o vovô Miano tinha uma grande birra com essas obras na Rio-Bahia.
Uma das anedotas que se conta na família é justamente por conta dessa mutilação da Fazenda Santa Cruz. Conta o primo Zé Heitor que o vovô Miano costumava fazer a viagem entre a fazenda e Miradouro de charrete, indo pelo meio da estrada no tempo em que era de terra. Depois da pavimentação, quis manter esse hábito, colocando a charrete não na sua mão de direção, mas mesmo ao meio. Além disso, a charrete ia devagar se comparada aos caminhões, gerando uma imensa fila atrás do vovô. Como a Rio-Bahia recém pavimentada não tinha acostamento, ele costumava responder às buzinadas dizendo o seguinte: "Muito bonito, cortam as minhas terras todas, não me dão nada, e depois eu não tenho o direito de usar a estrada?" Errado completamente, ele não estava! "Os pneus dos seus caminhões não se machucam indo pelo acostamento de terra, mas o Buíque meu cavalo se machuca, ele não pode andar ali".
Miano adorava levar as netas para passear de charrete. Mesmo sendo um bocado forreta, às vezes fazia-lhes a vontade, como quando a prima Neneis (Maria Inês) da tia Helena fez uma birra querendo um copo de canudinho, e o avô teve que o comprar. Por vezes, ele gostava de comprar muitas coisas bonitas para colocar na cristaleira de casa, como conta a prima Maita (Maria Rita).
Também quando nasciam os netos que já não viviam em Miradouro, os avós faziam questão de visitar, aliás, gostavam muito de viajar e traziam lembranças para os filhos. A prima Leni dá-nos um testemunho muito tocante desse amor paternal: 

Ele e vovó Sinhá viajavam muito, conheceram várias cidades históricas e quando voltavam sempre traziam lembranças para os filhos.
Quando nascia algum dos meus irmãos, vovô e a vovó iam de charrete até onde morávamos para abençoar o neto.
Quando as netas faziam sete anos ele mesmo furava as orelhas e dava uma argolinha de ouro para elas.
(...)
Ele era muito caprichoso e adorava tirar fotos da família, por isso hoje temos tantas fotos.
Eu tive o prazer de conviver com ele e nunca me esqueço do carinho que ele tinha por nós.

Acredito que muito do empenhamento do vovô Miano com os foguetes e os balões era porque queria engrandecer as festas dos filhos e netos, assim como as festas de Santa Rita. 
Gostava muito das festas, aliás. Na Fazenda Santa Cruz manteve por muitos anos um grupo de quadrilha que ensaiava com muito esmero, sendo dos mais destacados. Tinha também uma sanfoninha vermelha de oito baixos e a tocava muito bem! Por vezes, no entanto, as invenções dele davam errado.
Foi numa festa de Santa Rita, ao que me parece, que um foguete estourou na sua mão direita. Ele foi acudido pelo tio Zezé, mas ficou sem a metade dos dedos daquela mão. 
Em uma outra ocasião, em uma festa no Gavião, na fazenda do senhor Tatá Pereira, para celebrar as bodas de ouro de uma cunhada, encomendaram ao vovô Miano um balão. Ele chegou cedo e procurou caprichar o melhor que podia, produzindo um enorme balão. Na hora de levantar vôo, o balão não queria subir, e então o vovô fez um levezinho com o pé na base do balão, que lá foi subindo. Para o seu azar, no entanto, um vento forte levou o balão para debaixo dos ramos de uma mangueira, onde ele se incendiou, causando grande alvoroço. Em meio àquela situação, o vovô foi bem humorado: "De modos que o balão não subiu, mas teve muita graça!"
Em outra ocasião, para que a neta Marilene, no seu anivesário de 7 anos, coroasse Nossa Senhora, o vovô Miano ficou uma semana inteira na casa da tia Hilda preparando um imenso balão. O balão ficou lindíssimo, mas não saiu do chão. O vovô ficou arrasado, mas era persistente, como conta a prima Leni. Muitos outros dos seus balões subiram e fizeram as festas em que ele trabalhou muito mais bonitas.
Aliás, ele fazia questão de preparar os foguetes e balões quando uma filha ou neta sua fosse coroar Nossa Senhora, inclusivamente, preparando as asas de anjinho que elas iriam usar na cerimônia. Com todo o cuidado, tirava as penas aos patos, depois tirava-lhes a pele, dissecando com formol. Esticava e punha a secar para serem usadas no acabamento. Depois colava com todo o capricho um pano branco, e depois colava cada uma das penas, formando um arranjo lindíssimo e que fazia muita vista a toda a gente.
Infelizmente, nem só de momentos felizes foi feita essa fase de sua vida. Em 1953, o impulso de luxúria do vovô Miano voltou a causar problemas. 
Contou-me o primo Paulo Afonso que, ao receber a sua cunhada Adelaide em casa na Praça Santa Rita, o vovô insinuou-se para ela. A tia Adelaide foi logo contar para a sua irmã, a vovó Sinhá, que ficou muito magoada e partilhou o ocorrido com toda a família. Sendo gravemente repreendido pelos filhos, Miano sentiu-se culpado. De forma a desculpar-se com a sua família, resolveu convidar a todos para uma missa e um almoço da Fazenda Santa Cruz. É justamente por conta dessa história triste que hoje temos a maior parte das nossas fotos de família antigas.

Miano e Sinhá com sua grande família imediata na festa de 1953

A partir do início dos anos 1960 a saúde do vovô Miano deteriora-se mais gravemente. Até essa época, ele manteve o seu cavalo em Miradouro em um pasto no morro do Cruzeiro, sendo que a charrete vermelha ficava numa casinha que servia de garagem na Rua do Quiabo. 
O Buíque recebia todos os dias uma cuia de fubá, que era levada até o cocho por um dos netos. O meu primo José Paulo ficava com a incumbência dessa tarefa, já que morava em Miradouro com os avós na altura. Mas entre a Praça Santa Rita e o pasto no Cruzeiro, eram muitas as tentações de brincadeiras! O fubá do Buíque ia para algum bueiro, e depois o Zé Paulo voltava para casa feliz e contente com a cuia vazia. O seu azar foi que uma das famílias da Conferência, bairro próximo ao do Cruzeiro, era ajudada com alimentos pela vovó Sinhá, e um senhor dessa família chamado Zé Branco, ao ver o sucedido, delatou o Zé Paulo. A partir daí, a relação dos dois azedou um bocado, especialmente por conta da situação de saúde do vovô Miano, incapaz de compreender e relevar a atitude de uma criança e, ainda por cima, um neto seu.
Mas essas cismas exageradas não eram exclusivas do Zé Paulo. Ele cismava também, agora sem qualquer razão, com alguns dos meninos da tia Manzica, nomeadamente com os primos Isaías, Maria Helena e com o Heitor, mas nesta última fase ele já estava muito doente.
Quanto a essas "cismas" (à falta de outro nome mais bonito), basta referir que em uma noite em que o Zé Paulo dormia na casa dos avós, o vovô Miano entrou sorrateiramente no seu quarto e começou a esganá-lo. Chega a vovó Sinhá aflita: "Miano, o que você está fazendo?" - "Estou tirando este infeliz deste mundo!" - "Miano, é o seu neto! O Zé Paulo!" E com muito custo, largou da garganta do menino.
Depois disso, o meu primo foi pernoitar na casa da prima Rita de Cássia, e o Silvério (que dormia lá), passou a dormir na casa dos avós. Mas à hora do almoço, almoçavam todos juntos... Daí, na cabeceira da mesa, o vovô Miano tamborilava os cotocos de dedos da mão direita, e resmungava olhando para os dois netos: "Sô Silvério é bão, bão, bão... Zé Burraldo é mau, mau, mau..."
Outras tramóias, já na fase final de sua vida, em que a sua condição de saúde deteriorou-se ainda mais, também devem ser recordadas. Como a lembrada pela prima Leni, quando o vovô Miano se escondeu atrás de uma porta e quando passa o Heitor com uma furúnculo inflamado no braço que tinha de estar sempre levantado, leva um tapa violento do avô na ferida, que estava escondido atrás de uma porta... 
Há uma outra história com o Heitor que foi trágica e cômica ao mesmo tempo. Estavam vários netos no quarto ao lado do dele: a Marilene da tia Hilda, Heitor, Joaquim, Maria Helena, Maria do Rosário e Marilene, estando o Heitor deitado na cama em frente à porta, de pijama. O Joaquim, que também não era muito fácil com ele, de repente fechou a porta. Daí o vovô Miano cismou e trancou por fora com uma tranquinha existente. O Joaquim tentou abrir e viu que estávamos trancados e bateu na porta. Entretanto, o vovô foi na cozinha e pegou uma faca, abriu a porta e a primeira possível vítima era o Heitor, já que estava deitado na cama. O vovô foi para cima dele, que ficou segurando a sua mão enquanto ele mordia a língua e empurrava a faca. Até que Sinhá chegou e falou a ele: "Miano, você vai matar o seu neto Miano! Dá-me essa faca, Miano!" Ele por fim entregou a faca e saiu arrastando o chinelo e assoviando do jeito dele.
São recordações trágicas de um fim de vida que de certa forma marcou muito esses seus netos, infelizmente, de uma forma negativa. No entanto, não se pode deixar de lembrar que por grande parte de sua vida, e principalmente quando a doença não o atacava, o vovô Miano foi um pai e um avô muitíssimo amoroso e dedicado, como é recordado por muitos de seus netos ainda hoje.
Seus erros e acertos são testemunhos de uma vida intensa, em que a vontade de fazer e acontecer, se por um lado dava imensa força de realização e satisfação pelo uso da sua grande inteligência, por outro lado o conduzia a excessos em que os vícios tiravam o melhor dele.
Rezemos a Deus para que tenha misericórdia de sua alma. Ele também chamou por Deus na sua vida! E que o Nosso Senhor também olhe por nós, seus descendentes, onde muito do vovô ainda vive. 
Para terminar, deixo essa memória do primo Heitor que muito me emociona:

Em um domingo Sinhá acordou e ele havia sumido. Conhecendo um pouquinho os hábitos dele, eu saí e fui procurá-lo. Encontrei-o na igreja assistindo a missa no fundo. Estava em pé, vestido de paletó e gravata, cueca, meia e calçava os chinelos. O guarda-chuvas estava pendurado no banco. Em respeito à situação clínica dele, às pessoas não tinham nenhuma reação ao fato. Cheguei ao lado dele, peguei em sua mão e disse que a missa havia terminado e que a Sinhá me tinha mandado buscá-lo. Ele fez o sinal da cruz e saiu comigo para casa no jipe do tio Lico.

segunda-feira, dezembro 25, 2023

Cristalina como a verdade

Em 1946, Miano estava com o estoque de rapaduras a melar e chamar as vespas e abelhas a um convívio que zunia a prejuízo. Em tempos, o maior produtor de rapaduras da região, de onde auferiu muito dinheiro e comprou muitas terras, agora via-se em apuros.
Para além do restabelecimento do comércio mundial de açúcar depois do fim da 2.ª Guerra Mundial, os outros fazendeiros da região, vendo o sucesso de Miano, também se tinham posto a fazer rapaduras. O que antes se vendia sem dificuldades, agora se acumulava e gerava incertezas. Mesmo assim, Miano recusava-se a baixar os preços.
Desde 1930, mais ou menos com a idade de 16 anos, o tio Zezé tomava a frente na produção das rapaduras. Ele sempre foi um homem muito consciente da realidade e preocupado com o bem das pessoas próximas a ele. Constantemente dizia ao pai que aí por onde ia, a rapadura Santa Cruz não tinha futuro, mas Miano teimava em insistir que tinha rapaduras excelentes e que se iriam vender. No fundo, ele sabia que precisava de uma mudança de curso.
Conta o primo Paulo Afonso, assim como o primo Zé Paulo, que um familiar que morava fora, vindo visitar a família e vendo a situação de Miano, deu-lhe a sugestão de derreter as rapaduras, fermentar e fazer dela cachaça. Já o primo Heitor, por ter ouvido a história da tia Manzica, diz que a sugestão partiu do deputado João Bello, de Carangola, que era do mesmo partido que o vovô Miano, o antigo Partido Republicano Mineiro.
Seja como for, o vovô Miano achou boa a ideia. Era turrão, mas não era tolo! Percebeu que a saída para as rapaduras meladas tinha potencial como negócio para além do improviso. Teve a coragem de mudar quando viu uma saída, e não simplesmente mudar por mudar.
Tomada a decisão, era preciso encontrar um alambique. Tio Zezé conseguiu o equipamento com o primo Pedro Mariano Alves Pereira, seu primo do lado do tio Neca Mariano e que morava do outro lado do rio, e assim estava montado o engenho com o alambique, aproventando-se as instalações usadas anteriormente para a rapadura Santa Cruz.
O dia da inauguração tem duas histórias interessantes. 
Conta a prima Lolinha, que um dia à noite, presumo eu que nas vésperas dessa inauguração, o vovô Miano tinha sumido. O tio Zezé foi à procura dele "miando", como se diz na família, ou seja, chamando "Miano, Miano, Miano!", pois os filhos mais velhos não o chamavam pai, ou à vovó Sinhá mãe, já que não foram ensinados. Depois de muita confusão, veio a vovó Sinhá dizer que Miano tinha ido à Mãe-D'água, a fonte onde se ia buscar água limpa e de que os netos todos guardam memórias maravilhosas. Lá cortara algumas folhas de pita, levou-as ao alpendre da casa, e agora estava lá a fazer versos para a cachaça. Miano não ficou conhecido por ser poeta, como seu irmão Afonso, mas era muito esperto. Sabia que um negócio bem sucedido começava por uma boa promoção!
Assim, no dia da inauguração propriamente, onde deve ter lido o poema feito na folha de pita, houve também uma festa onde se ofereceu a Cristalina para degustação. Vieram à Fazenda Santa Cruz muitas pessoas importantes, inclusivamente o deputado João Bello. Ao brindar com a cachaça, ele teria dito: "Cristalina ela, né?" E daí teria ficado o nome, como contou ao primo Heitor a tia Manzica. 
Logo após o início da fabricação, utilizando o sistema de fermentação com fubá que lhe dava um traço distintivo, tendo o fabrico o acompanhamento de Miano para que fosse tudo muito bem feito, como era sempre do seu gosto, a cachaça consegue ter uma ótima aceitação.

Rótulos da Cristalina, sendo o primeiro desenhado pelo vovô Miano, que nele inseriu as suas iniciais como marca: MGP

Assim como se tinha passado com o sucesso da rapadura Santa Cruz, os resultados que Miano alcança com a cachaça Cristalina logo despertam a cobiça de outros fazendeiros.
Conta o primo Zé Paulo que Olegário Matta montou logo o seu alambique. Bem depois, na época do tio Zezé, João Montezano também começou. Por último, quando a prima Terezinha do tio Pedrinho casou-se com Antônio Pimenta, este último e Dadinho Bicalho passaram a fabricar cachaça à meia. 
Nada disso adiantou muito. A qualidade superior da Cristalina, com aroma, cor e sabor claramente distintivos, foi sempre dominante em todos os mercados da região.
Desde a inauguração dessa fábrica, aí por volta de 1947, o tio Zezé foi sempre o principal responsável pela sua gestão e condução da operação. O primo Zé Paulo conta que se lembra das tropas de burros do tio Zezé levando cachaça para Santa Bárbara e Monte Alverne. Já para Vieiras, São Francisco do Glória, Miradouro, Varginha, Santo António do Glória e Muriaé, o transporte era feito por caminhão.

Antigo caminhão do tio Zezé que era usado na distribuição da Cristalina

A Cristalina foi uma ótima fonte de dinheiro e possibilitou ao vovô Miano encaminhar bem os seus filhos e viver com algum conforto, mesmo frente às muitas limitações daquela época e de ter uma família tão numerosa.
Foi um movimento corajoso de Miano, que preferiu mudar a ver perder o que tinha, chamando atenção novamente que só resolveu fazer essa mudança quando viu uma solução. Mesmo que a ideia não tivesse sido dele, ele sabia que era possível fazer da cachaça um bom produto, associando a ela as suas próprias qualidades como empreendedor: exigência com a qualidade e a responsabilidade de ser bom cumpridor, que já era a sua fama.
No entanto, a Cristalina também teve os seus momentos difíceis. Logo naqueles primeiros tempos, o padrinho do primo Maninho acidentalmente provocou um incêndio na fábrica que destruiu quase tudo, tendo sido preciso serrar às pressas as vigas de madeira para que o fogo não se alastrasse para a casa.
Ao longo do tempo, e mais sensivelmente desde quando o vovô Miano fica acamado em 1962, o negócio passa para o tio Zezé, que o mantém com grande brio até a morte de seu pai em 1967. Depois desse momento, o tio Zezé assume por completo a Cristalina, mantendo a empresa durante toda a sua longa vida de trabalho e dedicação incansável à família.

Fábrica Santa Cruz no final dos anos de 1970

O primo Zé Paulo conta que na década de 1980, enquanto tinha uma linha de transporte de leite entre Monte Alverne e Muriaé, depois de fazer as suas entregas, transportava a cachaça para o tio Zezé nas latas de leite para fugir da fiscalização. Já naquele tempo exigências legais exageradas e desproporcionadas estrangulavam os pequenos negócios com regulamentações cada vez mais complexas e dispendiosas, para além de impostos sempre crescentes que, a descontar dos proveitos, faziam os lucros sempre menores e o negócio mais arriscado.

Silvério (2.º da esq. para a dir.) e Maninho (5.º na mesma ordem) e outros trabalhadores da fábrica

Depois do tio Zezé, a Cristalina passou para o meu querido primo Silvério que por muitos e muitos anos manteve a produção e distribuição da cachaça com muita dignidade, assim como a memória da nossa família na sede da Fazenda Santa Cruz.
Cristalina nas garrafas originais das suas 3 gerações

Já na sua velhice, depois de toda uma vida a lutar contra as muitas dificuldades que são impostas aos pequenos produtores, o primo Silvério teve de encerrar a atividade aí por volta de 2012, ainda distribuindo a cachaça envelhecida.
A Cristalina para nós não é só uma cachaça, é parte da história da nossa família. Para mim, particularmente, para além de uma aguardente de cana de açúcar tipicamente mineira e de grande distinção, é um sinônimo de perseverança, seriedade, sacrifício e superação.

Duas pessoas maravilhosas: tio Zezé e tia Leni no engenho da Fábrica Santa Cruz



sábado, outubro 07, 2023

Vou devagar porque tenho pressa


Miano ainda novo, mas já a ocultar a calvice prematura, em 1925

Casado aos 19 anos de idade com a adolescente Maria José, depois conhecida como dona Sinhá, Miano põe-se logo a construir a sua casa na aceção mais ampla do termo: mais que paredes, portas e janelas onde ir morar, é claro no seu horizonte de vontades o projeto de formar uma numerosa família e dar a ela tudo o que pudesse.
Começa essa empresa desde o sítio na Fazenda Santa Cruz que lhe foi oferecido pelo tio José Belisário. Dedica-se inicalmente às culturas comuns da terra: milho, feijão, café e a criação de animais. Não sei dizer se já à partida também produzia rapaduras, mas é capaz que também as fizesse. Era trabalhador e inventivo e o fogo da juventude o impulsionava com muita força.
O sítio na Santa Cruz torna-se assim o lar que constitui com Sinhá e onde nasce já em 1913 o filho primogénito do casal, José Gomes de Paiva. 
Não sei dizer quem foi o padrinho do tio Zezé. Se fosse arriscar, dizia que foi o tio José Belisário, como agradecimento pelo grande presente de casamento, além de reconhecimento pela estima e identificação que tio-avó e sobrinho-neto sentiam um pelo outro. Mas também poderia ter sido o Papai Costa, José da Costa Lima, avô da vovó Sinhá e padrinho de casamento do casal, ou ainda o tio José Natálio, irmão da vovó Sinhá... A julgar pela forma determinante como a vovó Sinhá escolheu os nomes dos filhos (já vamos ver essa preponderância bem demonstrada), a última opção de homenagem teria mais força. Uma visita à igreja da nossa terra e uma verificação ao livro de batismos poderia matar essa charada!
Seja como for, a chegada do tio Zezé foi sem dúvida motivo de grande felicidade para seus pais e avós. O tio Zezé conheceu e conviveu com todos os seus avós: tanto com o vovô Antônio Gomes e vovó Augusta, pelo lado paterno, quanto com o vovô Pedro Theodoro e a vovó Nenê (Maria Galdina) pelo lado materno. Quando falece o vovô Pedro, o tio Zezé tinha 10 anos de idade, e no falecimento do vovô Antônio Gomes tinha ele 12 anos. Já as avós faleceram muito mais tarde: vovó Augusta em 1954 e vovó Nenê em 1961.
Esse filho mais velho, pelo convívio privilegiado que teve com os antigos da geração anterior à dos seus pais (também conheceu e conviveu com tio Zé Belisário e tia Chiquinha, falecidos em 1924 e 1925, respetivamente), assim como pela grande carga de responsabilidade que muito cedo lhe foi depositada, será sem dúvidas uma pessoa determinante na vida dos seus pais, sendo um filho especialmente dedicado ao seu pai.
Em novembro de 1914 nasce a primeira filha, Maria Gomes Martins, a nossa querida tia Manzica. Com o mesmo nome de sua mãe e suas avós (a vovó Augusta chamava-se Maria Augusta), Manzica será muito próxima de sua mãe, constituindo-se assim em uma moça muito dedicada à família e temente a Deus. Esta força de caráter e de espírito lhe será fundamental na vida, em que muitas e difíceis provações lhe serão dadas.
Em 1916, uma supresa: duas filhinhas gêmeas idênticas: Efigênia e Helena. Até onde sei, não temos antepassados com esses nomes, do que o mais provável é que sejam homenagens à Santa Efigênia e à Santa Helena, duas santas que defenderam e propagaram a fé cristã contra os pagãos.
Já com uma prole de quatro filhos, tendo tido as gêmeas como uma surpresa, poder-se-ia pensar que Miano e Sinhá iriam arrefecer o ritmo, mas não foi isso que aconteceu! Em 1918 nasce Pedro Gomes de Paiva. Tio Pedrinho teve seu nome em homenagem ao vovô Pedro Theodoro, com quem conviveu até o falecimento do avô em 1923, como já referido. Presumo que o avô tenha sido também o seu padrinho de batismo.
Dois anos depois, nasce a tia Hilda, com temperamento doce e meigo. Uma filha que irá sempre guardar as melhores lembranças dos seus pais, mesmo em face das dificuldades e do muito trabalho que lhe cabia já na infância. Não havendo Hildas na família, a homenagem do nome caberia à Santa Hilda, uma das responsáveis pela conversão da Inglaterra, sendo uma religiosa muito sábia, a quem mesmo os reis procuravam para obter conselhos!
Não percam as contas: estamos em 1920 e Miano e Sinhá já têm seis filhos! Vou então adiantar um pouco essa contagem, referindo-me depois a cada um conforme a circunstância de vida exigir.
Nasce em 1922 o tio Lico, Manoel Gomes de Paiva. O nome do tio Lico talvez tenha sido uma homenagem a um bisavô dele: Manoel Martins da Silva Braga, pai do vovô Pedro Theodoro e avô da vovó Sinhá. Se sim, se não... não sei dizer, mas fica a hipótese.

À esq.: Zezé, Manzica e Pedrinho; à dir.: Helena, Efigênia e Hilda; ao centro: Lico
1924 é o ano de nascimento do meu querido avô Antônio Gomes Martins. Dos filhos homens, é o único que não vai ter Paiva como sobrenome, o que ainda hoje repercute com muita curiosidade na família. A razão disso é que o seu nome coincidiria com o do vovô Antônio Gomes (Antônio Gomes de Paiva), e com o do seu tio Tonico (Antônio Gomes de Paiva Júnior). Para evitar essas confusões, o meu avô Toninho ficou com os mesmos sobrenomes da sua amada irmã Manzica: Gomes Martins. Por fim, vale notar que os padrinhos do meu avô Toninho foram o seu tio Saninho (Luciano Gomes de Paiva), e sua tia Maria Dorcelina. Meu avô conheceu o seu avô António Gomes (que tinha a alcunha de Taioba) ainda bebê apenas, pois ele faleceria em 1925, como já mencionei.

Toninho
Estou tentando acelerar, mas não está a ser fácil! Vamos lá!
Joana nasce em 1926 e João em 1928. Só posso presumir que os nomes de batismo desse casal de filhos sejam por honra de São João Batista, santo a quem o vovô Miano tinha devoção, haja vista o seu apreço pela sua festa popular, mantendo um grupo de quadrilha muito bem ensaiado. Além disso, o vovô Miano tinha também um tio chamado João Gomes de Paiva, irmão de seu pai, que tinha ficado em Guiricema.
Nasce o tio Luciano em 1930, que teve o nome provavelmente como uma dupla homenagem: ao tio Saninho e ao seu tio-avô Luciano Alves Pereira, irmão da vovó Augusta. 
Em 1932 nasce a tia Carolina, batizada em homenagem à sua tia-avó Carolina da Costa Lima, irmã da vovó Nenê.
Carolina e vovó Augusta
Tio Paulo nasce em 1934. Dos irmãos do meu avô, foi aquele com quem mais convivi e conversei, pois morei em sua casa em Juiz de Fora durante quase um ano. De temperamento brando e fala lenta, mas firme, sempre sorria quando dizia o nome do meu avô. O tio Paulo também deve ter tido o nome em homenagem ao santo homónimo. Curiosamente, todos os que receberam nomes de santo, foram de santos que assim se fizeram pela expansão e defesa da fé católica!
Depois do nascimento do tio Paulo, nasceram mais dois rapazes: Luiz Gonzaga em 1936 e Nelson em 1938. Estes dois meninos morreram na infância. A prima Cely, filha da tia Hilda, lembra-se do enterro do tio Nelson. Quando morreu Luiz Gonzaga, aí pela idade de 10 anos, mais ou menos, o vovô Miano fez-lhe uma foto no caixão branco. A foto foi guardada e ficou para a coleção do tio Zezé, que não gostava nada que os mais novos vissem a tal foto, pois dali viriam as perguntas e a lembrança da dor que foi a perda daquele irmãozinho. Vale notar que a memória de Luiz Gonzaga foi enaltecida pelo tio Paulo (que era pouco mais velho que ele), pois um de seus filhos recebeu esse nome.
Não se sabe do que morreram esses dois tios, mas é óbvio que o seu desaparecimento foi um duro golpe na família de Miano e Sinhá.
Após uma inédita pausa de quatro anos sem ter filhos, nasce em 1942 a tia Marta, que assim encerra a longa prole de 16 filhos.

Paulo, Luciano e João; Marta e Joana
Neste período da vida, Miano está mais empenhado do que nunca para arranjar recursos para sustentar a sua família.
Com a 2ª Guerra Mundial em curso, há uma grande escassez de açúcar no mercado internacional, o que torna o negócio da produção de rapaduras muito rentável. 
Miano então converte todos os seus recursos para produzir a rapadura Santa Cruz, vendida com um rótulo com uma santa a venerar uma cruz. O negócio corre muito bem ao meu bisavô, a ponto de começar a comprar terras em toda a redondeza, enriquecendo assim muito rapidamente.
Vendo o seu vertiginoso crescimento, os vizinhos de Miano começam a fazer o mesmo e brevemente há diversos produtores de rapadura na região. Ainda assim, a rapadura Santa Cruz continua a dominar o mercado e render um bom dinheiro. Essa predominância, julgo eu, devia-se à sua qualidade superior. 
Em tudo o que fazia, Miano colocava o máximo das suas qualidades para fazer bem feito. Era caprichoso, detalhista e muito persistente. Esse gênio perfeccionista por vezes o levava a ser excêntrico e teimoso, armando-se em dono da razão. Embora ela fosse mesmo dele na maior parte das vezes, o temperamento combativo acabava por lhe retirar alguma adesão às suas ideias. Mesmo assim, não era nunca injusto, nem gostava de abusos e falsidades. Afinal, um temperamento forte não é sinônimo de um temperamento perfeito!
Com o fim da guerra e a regularização do mercado do açúcar no mundo, a procura pelas rapaduras começou a abrandar e o preço então passou a cair muito.
Teimoso e excessivamente confiante nas qualidades do seu produto, Miano recusava-se a baixar o preço para poder escoar a produção. A teimosia não resultou e ele viu-se com um imenso estoque de rapaduras a degradar-se.
Para além da decadência do negócio das rapaduras, a saúde do vovô Miano já dava mostras de estar a piorar rapidamente. Nesta época, tinha apens 53 anos de idade.
A perda dos filhinhos Nelson e Luiz Gonzaga, as excessivas preocupações de manter uma família numerosa, além da pressão que colocava em cima de si mesmo para fazer valer as grandes ambições que criou à volta das suas capacidades, tornaram-no em um homem um bocado instável já na fase da meia idade. O mal que o afligia desde aquele tempo e que o acompanharia para o fim da vida poderia ter sido uma esquizofrenia leve, que tinha momentos piores, e períodos em que não o atacava.
Mesmo que acometido pela doença, e ainda que fosse turrão sobre a sua forma de conduzir o negócio das rapaduras, Miano não era estúpido. Ele sabia que uma alternativa devia de ser encontrada. Havia uma casa cheia de crianças para sustentar e todos dependiam dele.
Por difícil que fosse a situação, Miano não iria desanimar. Lembrava-se talvez das convicções de sua mãe sobre as nossas origens heróicas, como quando disse ao tio Afonso: "Tens nas veias sangue nobre/ Bravo sangue altaneiro."
A prima Maria Helena, filha da tia Helena, recordou uma divisa do vovô Miano que mostra bem a sua frieza de cálculo, mesmo em face à dificuldade: "Vou devagar porque tenho pressa!"
Uma solução teria de ser encontrada!

domingo, setembro 17, 2023

Miano: o "neto" preferido de José Belisário

Miano e Sinhá aquando do seu casamento em 1912

A inteligência, o coração destemido e a imensa capacidade de realização (daí decorrente) do meu bisavô Miano são quase lendárias na nossa família. A sua personalidade expansiva e carismática, somadas a uma grande ambição pessoal, lhe renderam muito sucesso nos seus negócios, e mesmo na sua família, embora não sem pontos baixos, como na vida de todos os homens.
Estas minhas palavras, as de um bisneto que não conviveu com ele, podem parecer diminuídas por essa deficiência, um benefício que foi do meu pai, dos seus irmãos e primos, com quem aprendi as histórias. No entanto, reclamo o meu estatuto de autor legítimo de uma crónica sobre o Miano porque nele se concentra muito do que nós somos como família, para o bem e para o mal, como vou deixar claro.
Maximiano Gomes de Paiva nasceu na povoação da freguesia de Rosário da Limeira, em São Paulo do Muriaé, em 1893. Foi o terceiro filho de Antônio Gomes de Paiva e de Maria Augusta Alves Pereira.
Pelo lado do seu pai, Antônio Gomes de Paiva, vem de uma família da região das Minas que como tantas outras fez a transição para a Zona da Mata em busca de novas terras quando a mineração entrou em decadência. O seu trisavô Manuel Monteiro foi o Guarda-Mór das minas de ouro em Mariana na freguesia de Guarapiranga. Na linha varonil, o seu avô Gomes José de Paiva também era da região das minas, tendo nascido naquela mesma freguesia de Mariana, em 1829. 
A transição da família paterna para a zona da Mata mineira é assinalado com a aquisição de duas sesmarias na região de Rosário da Limeira e Muriaé pelo seu bisavô Domingos Francisco Monteiro, a antiga Fazenda Boa Vista, que depois passou a ser conhecida como Fazenda dos Monteiros.
Enquanto a sua avó Umbelinha vinha dessa abastada família dos Monteiro, o seu avô Gomes não tem ainda uma ascendência bem identificada, embora tenha tido bom berço: a proximidade com a família de Umbelina sugere um estatuto equivalente, além do que sabia ler e escrever ainda jovem, daí em criança teve um tutor privado para o educar.
Pela família de sua mãe, Maria Augusta Alves Pereira, sabe-se que o seu bisavô Belisário Alves Pereira, um famoso tropeiro e desbravador, veio de São Januário de Ubá para tomar posse de terras entre São Francisco do Glória e São Paulo do Muriaé nos meados do século XIX, vindo a se estabelecer perto de Rosário da Limeira, no povoado de Santo António do Onça, que hoje se chama mesmo Belisário. Foi o bisavô Belisário que pediu à arquidiocese de Mariana o reconhecimento do posseamento das terras entre Santa Rita e São Francisco do Glória que ele próprio deu o nome de Fazenda Santa Cruz, o lugar no mundo em que a vida de Miano esteve centrada. Os seus outros bisavós maternos (a esposa de Belisário, Mariana Luísa de Paiva, e os pais da avó Heduviges, Luciano Dias Paes e Ana Angélica de Andrade) também eram todos filhos dos mineiros que fizeram a primeira transição da região das minas para a nossa Zona da Mata, tendo se radicado sobretudo em São Januário de Ubá, Santa Rita do Turvo e São Sebastião do Erval.
Foi nas cercanias da Fazenda dos Monteiros, mais uma vez, na freguesia de Rosário da Limeira, no lugar denominado Vargem Alegre, o primeiro lar que o vovô Antônio Gomes formou com a vovó Augusta. Lá nasceram os dois irmãos mais velhos do vovô Miano: Augusto em 1889 e José em 1891. 
Infelizmente, o seu irmão José morreu em Janeiro 1892, acometido por uma febre, e talvez por isso mesmo, a família muda-se para a sede do povoado de Rosário da Limeira neste mesmo ano. É nesta casa na povoação que nascerá o vovô Miano às 10 horas da noite do dia 19 de Abril de 1893.
Deve ter sido um menino espivitado e inquieto, a meter-se em diferentes traquinagens com o irmão mais velho e as irmãs. Calculo que tenha tido memórias de infância na Limeira, pois calculo a transição para Santa Rita do Glória foi mais para a virada do século.
Se calhar, foi muito pelas artes do pequeno Miano que a vovó Augusta resolveu juntar nas coisas deles e irem todos para Santa Rita, afinal, por lá poderiam contar com a ajuda dos tios José Belisário e Chiquinha para criarem as crianças.
Para dizer com certeza, dos seus avós, Miano só conheceu a vovó Heduviges, embora ela vive-se em Belisário. O seu avô materno, também chamado Maximiano, havia morrido 16 anos antes do seu nascimento. O seu avô Gomes também já tinha falecido, provavelmente em 1890. Resta saber se teve convívio a sua avó paterna, vovó Umbelina. Quando nasce o pequeno Miano em 1893, ela ainda era viva, portanto, chegou a conhecê-la. Presumo que a vovó Umbelina faleceu poucos anos depois, já que não pude identificar registos posteriores da sua presença. Há inclusive a possibilidade da mudança da Limeira para Santa Rita estar associada ao desaparecimento da vovó Umbelina, por volta de 1899, pois não me parece que o vovô Antônio Gomes a fosse deixar sozinha por lá.
Quando a família se muda de Rosário da Limeira para Santa Rita do Glória, o vovô Miano devia ter entre 6 e 8 anos de idade. Certamente foi um menino com muita energia e cheio de inventividade. Para além do irmão mais velho, o tio Augusto, presumo que ainda tenham nascido em Rosário da Limeira as irmãs Eduviges (1894), Umbelina (1896) e Maria Joana (1898). Já Francisca (1900, batizada claramente em homenagem à tia Chiquinha), José Thimóteo (1902), Galdino (1905), Luciano (1908), Antônio (1911) e Afonso (1914) nasceram todos em Santa Rita do Glória.
Sem desmerecer as avós que teve em menino, os verdadeiros "avós" de Miano foram os seus tios-avós José Belisário e Chiquinha. 
José Belisário era irmão do pai da vovó Augusta, o finado Maximiano Alves Pereira, e Chiquinha era irmã da mãe da vovó Augusta, Heduviges Dias de Andrade, que vivia na Limeira. Era então natural que vissem a vovó Augusta como sua filha, já que eles nunca tiveram filhos, seja naturais, seja adotados. Por via de consequência, o vovô Miano e os outros sobrinhos-netos eram como netos para eles.
Numa relação de grande amor e dedicação, a influência determinante sobre a mentalidade do vovô Miano foi sem dúvida a de José Belisário. Ambos tinham o mesmo temperamento inventivo e corajoso, ambos eram também muito trabalhadores e ambiciosos, foi portanto uma ligação de sangue reforçada pelas afinidades de personalidade.
Do seu tempo de menino e rapaz em Santa Rita do Glória, o que se sabe é que vivia entre a casa do tio Zé Belisário e tia Chiquinha e a casa dos seus pais na Rua da Ponte. Não foi um menino criado na zona rural, como se poderia pensar, mas no distrito. Porém, isso não quer dizer que não tenha sido familiarizado desde cedo com a lida do campo. O pai tinha bastantes terras, e também o tio-avô sempre lhe dava tarefas e incumbências.
De convívios e festas, desde muito novo gostava delas! Acredito que esteve muito envolvido nas festas dos Santos Populares ainda menino, especialmente na festa de São João. Mais tarde na sua vida, organizou um grupo de quadrilha muito conhecido, que fazia questão de ensaiar com esmero! 
Já na festa maior da nossa terra, o dia da Padroeira Santa Rita de Cássia, a 22 de Maio, a comemoração era grande! O fascínio do jovem Miano pelos foguetes e outros fogos que se queimavam em honra à santa o levou a tentar perceber como aquilo funcionava para ver se ele próprio poderia deixar aquela festa ainda maior e mais bonita!
Relativamente aos seus estudos, não me parece que tenha tido a chamada "educação formal". No tempo de menino do vovô Miano ainda não existiam as Escolas Reunidas, portanto, presume-se que a educação que teve coube a tutores, ou aos próprios parentes, como era tradicional nas famílias mineiras daquele tempo.
De qualquer das formas, foi um menino bem educado: sabia ler, escrever e fazer as operações fundamentais da aritmética. Também tinha conhecimentos de química (pela fabricação dos fogos de artifício) e de arquitetura (pela facilidade com que dirigia as obras e pela qualidade do que construiu) muito evidentes, mas que deve ter adquirido ao longo da vida. Para além disso, também conhecia a história do Brasil: não me parece que tenha sido por acaso que a Escola Rural Duque de Caxias, que constriu na Fazenda Santa Cruz, tivesse esse nome. Caxias foi o grande herói do Brasil na Guerra do Paraguai, como um exemplo de coragem e de amor à nacionalidade, virtudes que se pretendia inspirar nos estudantes através desse patrono.
O menino Miano cresce junto do pai Antônio Gomes, do tio-avô Zé Belisário e dos amigos da família desde aquele tempo, como o capitão José da Costa Lima, e evidentemente entre os irmãos e primos, filhos do seu outro tio-avô, Neca Mariano, que pelos idos de 1910 também tinha vindo para Santa Rita.
Parece-me certo que o gosto que tinha pelos negócios e a ambição de crescimento das suas propriedades tenham vindo do tio Zé Belisário, um homem muito rico e de muita visão para os negócios. Nesse aspecto, outra influência evidente foi o seu tio Luciano Alves Pereira, que teve um armazém em Limeira e depois tornou-se um comerciante de muito sucesso em Muriaé, Belo Horizonte e, por fim, no Rio de Janeiro.
Embora a família tivesse vindo para Santa Rita do Glória, as ligações com a família da avó Heduviges em Rosário da Limeira mantiveram-se. A sua mãe Augusta fazia questão de suscitar sempre essa presença nas histórias que contava e é comum haver histórias de passeios até Rosário da Limeira e Belisário para se visitar a família do lado de lá.
Mas a família do vovô Antônio Gomes e da vovó Augusta estava bem estabelecida em Santa Rita do Glória quando o rapaz Miano chegou à idade de casar. Muitos de seus irmãos já haviam nascido em Santa Rita do Glória, a família já tinha lá terras (as primeiras, doadas pelo tio José Belisário ao vovô Antônio Gomes, mas já outras adquiridas pelo trabalho) e tudo corria-lhes bem, na medida do possível.
Com 19 anos de idade, muito provavelmente através da amizade entre o Capitão José da Costa e o tio José Belisário, o vovô Miano vive o dia mais feliz da sua vida, o que se casa com vovó Sinhá.

Antiga Igreja Matriz de Santa Rita de Cássia, aquando da sua demolição para a construção da nova Igreja com torre

O casamento teve lugar no dia 26 de Outubro de 1912 na antiga igreja de Santa Rita do Glória. Os avós da noiva, o referido Capitão José da Costa Lima e o senhor Horácio Alves Ferreira foram os padrinhos de casamento. Como presente pelo enlace, o tio José Belsiário e a tia Chiquinha ofereceram-lhes 10 alqueires de terra na Fazenda Santa Cruz, onde Miano e Sinhá começam a sua fantástica vida juntos.