domingo, maio 24, 2009

A Travessa da Esperança

Não vás tão docilmente

Não vás tão docilmente nesta noite linda:
Que a velhice arda e brade ao término do dia;
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Embora o sábio entenda que a treva é bem vinda
Quando a palavra já perdeu toda a magia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O justo, à última onda, ao entrever, ainda,
Seus débeis dons dançando ao verde da baía,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda,
Sem saber que o feriu com a sua ousadia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da
Aurora astral que o seu olhar incendearia,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Assim, meu pai, do alto que nos deslinda,
Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia:
Não vás tão docilmente nessa noite linda,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.



Dylan Thomas

É uma travessa curta e estreita. Não chegou em tamanho e proporções para ser chamada rua, não era tão estreita para ser beco, é uma travessa, mas não é uma travessa qualquer: falamos da travessa da esperança.
Estimosa via junto ao Largo Rangel de Sampaio, localizada aqui na boa e mui antiga freguesia da Sé Nova, lar dos estudantes e dos senhores mais velhos e ponto de encontro para a conversa matutina da dona Fernanda e da dona Afonsa e das empregadas da residência universitária.
Escolho a ela e não a outras mais famosas e prestigiadas vias para as minhas inscurções à Baixa. Prefiro essa humildade cantada e discreta quando, de frente para a minha janela, dá-me a tranquilidade de sua (talvez) involuntária expressão poética.
É ali que espreito, todas as manhãs, o sol chegar primeiro e iluminar a bela roseira do jardim da casa ao lado enquanto que pela rua e sobre os carros os gatos mais bonitos de Coimbra estiram-se e numa divina paz de consciência aquecem-se aos raios meigos da manhã nova. Em volta, um mundo de desassossego parece não se dar conta de tanta fortuna, de tanto mérito, de tanta poesia.
Um grito de pavor, um amor verdadeiro falhado, um bilhete arrasador, um constrangimento, um abuso, um sem número de tragédias... Um cortejo de carnaval, um passeio de domingo, um abraço de reencontro, um sorriso amigo no lado oposto, um sem número de glórias... Tanto há na vida! Quanta coisa por fazer, quanto por viver, quanto por atravessar!
Na perseverança de um dia poder me aquecer de manhã como fazem aqueles gatos, continuo sempre a optar pela Travessa da Esperança.

quarta-feira, maio 06, 2009

A redenção pelo amor

Saiu de casa após o jantar sem o casaco, era uma noitinha quente como essas que vamos tendo agora na primavera, o que contribuia para ter o pensamento leve. Nas suas roupas um cheiro forte de alecrim, na pele um frescor de menta, aroma seu que a brisa docemente carregava consigo.
A essa imagem da boa composição de seu aspecto, à doçura de seus gestos e simplicidade das palavras, contrastava o que trazia dentro de si e que não se lia senão num fugaz fixar dos olhos vez por outra. Tentavam ver para além da vista que havia diante de si, tentavam alcançá-la na incorruptível paisagem dos seus sonhos, em que seu grande sorriso de bonança iluminava e aquecia como o próprio sol, o sol de sua vida.
As lembranças desses e doutros gestos assaltavam-no, no descuido de qualquer pensamento inocente era levado a cabo para ouvir a voz a dizer a certeza e o carinho, estava de novo presente para testemunhar a paisagem plena daquela presença, na atmosfera à sua volta o ar novamente vibrava com aquele riso, a mesma curiosa combinação de elementos que orbitava a mulher que como nenhuma outra percorreu os caminhos sinuosos que levavam ao seu coração.
Esperavam-no na tasca, seu copo já estava cheio e os abraços dos amigos ansiosamente à sua espera. Sua vida vinha tornando para caminhos demasiado previsíveis e aquela noite parecia como todas as outras em que negava a si mesmo: estéril e maçante, tudo aquilo a que diligentemente adimplia na vida, todos os seus dedicados esforços de êxito, suas noites longas de trabalho, nada daquilo tinha brilho, nada comunicava-lhe valor. Resignado, aceitava e seguia, sempre seguia em frente, não por gostar do que poderia o futuro trazer-lhe, simplesmente havia bons motivos maus, como o orgulho e a teimosia. Alguma coisa lhe provocara um impulso de revolta, entretanto.
Naquela noite depois de deixar a casa, sem que nenhuma estrela tivesse despencado do céu, sem que tivesse ganhado a lotaria, sem que nada de especial tivesse provocado o resultado, encontrava-se completamente convicto de sua condição: amaria.
Subitamente, seu coração ardeu à intensidade do sonho e lhe soube bem ter a face quente pela emoção e então quis que ardesse até a própria cinza, à grandeza de ser redimido pelo amor que tinha em si, violado e domado, naquela noite, exaltado.
Olhou a lua apaixonadamente e mandou-lhe um beijo com as mãos e disse para si mesmo o nome da mulher que amava e sentiu sobre o seu rosto o aproximar do seu rosto, o toque das suas mãos, a completude do mundo e do sentido de tudo que havia no seu abraço.
À condição do segredo e do destino, continuou resoluto o percurso. Ao chegar à tasca ouviu seu nome ser gritado, em seguida os copos ao alto: soube então que estava para sempre redimido.