Hoje não é o meu dia de sair mascarado e nem de fazer as traquinices que no meu tempo de menino eram o grande gozo do carnaval.
Digo carnaval como quem diz entrudo, não o carnaval das extravagâncias da carne, essa estupidez nunca me interessou, para mim não passa de uma grosseira coroação dos instintos que durante o resto do ano se deve repremir, portanto, é um bocado estúpido. Daí também já se vê uma diferença clara entre o carnaval das crianças e o carnaval dos adultos, coisas completamente diferentes, mas que os pequenos tendem a não compreender, como é natural.
Hoje, se calhar, fico feliz já e apenas em lembrar daquele entrudo de quando eu era puto. Dos preparativos das fantasias, das peças a pregar, dos exageros inocentes, daquilo de não ter identidade e poder exagerar nas brincadeiras sem que ficasse ninguém chateado. Talvez também isso fosse estúpido, mas pelo menos não era uma banalização dessa época antes da quaresma, como é para os ateus.
Lembro-me vivamente do carnaval dos meus oito anos quando tinha como missão, para além do meu traje de carnaval, também o dos meus primos, tínhamos de pensar no que queríamos nos fantasiar, depois as mães iam lá ver como arranjar aquilo em condições, nem sempre as mais favoráveis, diga-se de passagem.
A ideia, no entanto, era ter dois trajes de carnaval. Um dos trajes usava-se nos bailes de carnaval, que para as crianças eram matinês, sempre uma ao domingo e outra à segunda-feira, das 16 às 18:30hs, por vezes começava mais cedo. O outro traje era mesmo para o entrudo, também tínhamos máscaras, mas esse traje era mesmo de roupas velhas, coisas que já não importava rasgar ou manchar, e tanto quanto ninguém soubesse quem éramos, melhor. Isso de preservar a identidade era algo para se levar a sério, não bastava uma mascarazinha de nada, só para constar... Não senhor, era preciso cobrir bem o rosto, por vezes utilizando uma fronha velha, fazendo-lhe as aberturas necessárias para respirar e ver, e pintando-a para ilustrar a cara do "sujo", eis como chamávamos a esses mascarados e cada um desses portava uma espécie de porrete, que era para se defender dos que viessem gozar e para as peças também, como é claro. Nos bolsos levávamos farinha de trigo, uns ovos e pouco mais, de acordo com a criatividade.
Era claro que entre o baile de carnaval e a noite de entrudo eu preferia sempre o entrudo. Saíamos eu e os meus primos, sempre num grupo de 4 ou 5, e fazíamos a volta à praça todos juntos, num grupo bem unido. Por vezes encontrávamos outro grupo de "sujos" e aí podia haver guerra, mas era sempre coisa de crianças, sem grandes traumas. Normalmente também acompanhávamos a banda da nossa terra que nos dias de carnaval ainda hoje sai pelas ruas a tocar as marchinhas e a acompanhá-los saem uma boneca gigante cabeçuda a "negra Tereza" e também um senhor a empunhar uma fantasia de touro e um outro numa fantasia de mula, além de um toureiro e a grande festa é a simulação de uma tourada com esses três personagens. Nós acompanhávamos essa turma toda, sendo de alguma forma também parte dela.
Sabia bem ser criança e estar na rua a ver as pessoas do costume e estas não saberem quem éramos nós, havia ali algum gozo e por isso mesmo gozávamos com eles e víamos o que faziam quando atirávamo-lhes um ovo, ou laçávamo-lhes farinha na cara, muito bem sabiam eles que podia ser um sobrinho ou um amiguinho que estava só a gozar, por isso, por regra, nunca nenhum adulto revidava a um "sujo", o que acontecia só quando as coisas ficavam mesmo fora de controle, mas pronto, aí é porque o "sujo" em questão já era mais grandinho e também porque já devia ter tomado um copo ou dois e andava a festejar mais do que o normal.
Bons tempos que já não voltam, e não faz mal que seja assim. Sei bem que mesmo na minha terra essa tradição já não continua, ao menos já não é o que foi. Hoje é só barulheiras e cerveja e gente com pouca roupa a dançar música bahiana... not my cup of tea.
De todo jeito, meus leitores, muita água e muita alegria, além do juizinho habitual, nesses dias antes da quaresma, porque depois do carnaval a vida continua, como bem o sei.