sexta-feira, julho 06, 2018
O melhor do mundo
Lembro-me do Ronaldo recém-chegado da Madeira, ainda muito novo e com os dentes tortos, mas já cheio de confiança e agressividade para se impor. Logo ali já havia qualquer coisa de diferente naquele rapaz alto e algo convencido.
Muitos, mesmo muitos adeptos, no entanto, olharam para ele com algum contragosto. O excesso de auto-confiança causa alguma repugnância aos sentimentos refinados, que homenageiam a humildade em oposição à arrogância.
Ele cresceu, entretanto, não só no seu magistral futebol, mas principalmente como homem.
Entre os dramas familiares que lhe impunha a dor de um pai que abusava dos copos e que morreu precocemente, e as pressões de afirmação da sua potencialidade que eram impostas por si mesmo, num misto de raiva, força e uma inquebrantável convicção de que podia sempre melhorar e fazer melhor, deu tudo de si, e venceu.
Nunca houve um jogador de futebol tão ambicioso, tão dedicado aos treinamentos, tão assertivo nas suas capacidades, tão concentrado na leitura do jogo e na inserção da sua magnífica inteligência dinâmica a serviço da conversão de todo esse trabalho em golos, e ainda assim sem prescindir da sua humanidade e das suas emoções e, mesmo por isso, chegar até nós como alguém que podemos estimar e nos orgulhar.
Dos muitos golos que fez, com uma regularidade ao longo da carreira que é raríssima, destaco a conversão do livre contra Espanha no mundial da Rússia. Num momento baixo da seleção nacional, intimidada pelo volume de jogo de Espanha que se impunha à Portugal para vencer a partida, surge a oportunidade de cobrar uma falta a vinte e poucos metros da baliza. A bola vai ter com o capitão de Portugal, que nunca se nega a cumprir com a sua função. Em silêncio, puxa as barras do calção para cima das coxas, faz um A com as pernas e vidra os olhos na baliza, numa pose de conjunto que deu a impressão de indução a um transe.
Nesse preciso instante, um país inteiro viveu dentro daquele homem. As milhares de gerações que existiram para que ele existisse, os valores, os mitos, os medos, os orgulhos e mesmo as mesquinharias... tudo que compõe a nacionalidade esteve presente naquele instante de redenção do orgulho nacional frente a Espanha.
E à contragosto dos seus detratores, Ronaldo converteu o livre num golo antológico. Portugal foi ao delírio, com um momento de emoção talvez só comparado ao da louca campanha no Euro 2004 ou dos momentos decisivos do Euro 2016.
A sua postura manteve-se igual no relacionamento com os demais jogadores, assumindo-se verdadeiramente como um líder, nunca se queixando, nunca assumindo postura de vítima, sempre incentivando os companheiros, mesmo quando erravam...
Por fim, já na despedida de Portugal contra o Uruguai, mostrou porquê os portugueses se auto-intitulam um "nobre povo": abraçou e apoiou Cavani para que deixasse o relvado, uma vez que o avançado que marcara duas vezes contra a seleção nacional naquele mesmo jogo havia se lesionado.
Decisivo, frio, calculista, seguro de si, honesto, leal com os adversários, amigo do seu amigo... o melhor do mundo é viver o pleno das nossas capacidades. Ronaldo fê-lo (e fá-lo) como poucos.
domingo, março 18, 2018
Toninho
Meu avô deu seu último suspiro quando eu tinha apenas cinco anos de idade, mas os seus olhos azuis de paz e o seu riso leve ainda existem na minha memória, como nos meus olhos e no meu riso.
A minha lembrança de primeira infância, feita da fantasia e da poesia que emolduram esses momentos para o resto da vida, recorda-o entre outras saudades de um tempo de muito amor e de cuidado. Os seus feitos como homem, no entanto, aprendidos por mim já depois que ele se tinha ido, colaboraram para fazer da memória do Toninho, cheia de êxitos retumbantes tanto em casa, como profissionalmente, uma herança incomparável.
Desafio o leitor a percorrer comigo essas façanhas e dar o seu próprio juízo, uma vez que o meu pode ser prejudicado pela óbvia ligação sentimental.
Comecemos pelas minhas próprias memórias e pela forma como ele era em casa. Trata-se de um passeio muito agradável por uma obra sentimental feita de dedicação incansável e amor incondicional à família.
Lembro do seu riso, que era frequente. Muito diferente de meu pai, que é um homem mais circunspecto, introspectivo e melancólico, o avô era alegre, e adorava brincar com os netos. O ambiente com ele já por si era animado: fez duas piscinas no São Carlos para garantir a festa dos adultos e das crianças. Embora eu tenha quase me afogado na piscina grande, a verdade é que passávamos lá uns domingos muito felizes, meu pai, seus irmãos e as famílias de cada um, e os meus avós, sempre com muita união, como era o gosto do meu avô.
O Toninho também gostava de nos ter todos reunidos na sua casa na praça. Era lá que a festa continuava aos domingos, no começo da noite, quando assistíamos juntos aos Trapalhões na televisão. Também algumas vezes estávamos juntos nas tardes de sábado, quando ele gostava de arrebentar umas pipocas ou torrar uns amendoins com casca, e dedicar-se às brincadeiras connosco.
Ele tinha imenso prazer em nos ver a sorrir. Uma das brincadeiras que fazia com os netinhos e recordo agora era uma prova de corrida entre a cozinha e a copa da casa dele. O avô ficava sentado no chão, de costas para a cozinha, onde nós estávamos à espera. Depois, mandava-nos vir um por um e, com o corrião na mão, tentava alcançar as nossas perninhas! Ele era maroto, porque começava a dar com o corrião muito devagar, como se não conseguisse nos apanhar, mas era uma estratégia sua: quando começávamos a ficar mais atrevidos e a passar mais lentamente para provocá-lo, ele vinha com tudo! Obviamente que era só para brincar, mas havia ali uma ideia de estar atento e não baixar a guarda.
Depois tenho uma única e muito querida memória de estarmos só os dois. Foi num sábado de manhã em que o meu pai levou-me lá à casa dos avós e como o avô Toninho estava pronto para ir ao sítio dele no São Carlos, pediu ao meu pai para me levar consigo. Lá fomos os dois no seu fusca branco. Chegando ao sítio, fomos à tulha de café e estivemos pelo terreiro onde ainda havia café a secar. Depois andamos por ali perto das piscinas, por um terreno inclinado em que o avô pôs-se a colher algumas abóboras. Por conta do sol forte, o avô sacou do lenço que tinha no bolso e improvisou-me um chapeuzinho, dando um nó em cada uma das pontas do lenço e pondo-o bem na minha cabeça. Quanto a ele, tinha lá o seu chapéu de palha. Estivemos sempre conversando entretidos. Acho que ele perguntava coisas da escolinha, eu estava ainda no pré-escolar. Dizia-me para me comportar e respeitar a professora, e que devia ser sempre um bom menino... Ele gostava de dar conselhos, e os podia dar. Foi uma manhã feliz, de amizade e convívio com o meu avô, e que guardo com imenso carinho.
Daqui para além surgem muitas histórias que me chegaram pela própria família e, muitas outras por gente de fora que, com a mesma consistência, quase que colocam o Toninho no altar junto dos santos mais populares. Já vamos lá chegar.
O Daniel contou-me alguns episódios interessantes, alguns deles contemporâneos ao meu tempo de convívio com o avô. Como neto homem mais velho, entretanto, ele acabou por conviver muito mais com o avô e também guarda dele uma memória de muito carinho. Entre muitas histórias, vou deixar algumas mais interessantes. Uma era habitual e passava-se com o fusquinha branco, normalmente ao voltar de São Carlos, em que o avô sempre parava quando via alguém a pé na estrada e oferecia boleia no carro. A boa vontade do avô, no entanto, não via limites, e mesmo com o carro cheio (o Daniel tinha que ir no "chiqueirinho", lá trás) ele continuava a parar e oferecer boleia, ao ponto das pessoas agradecerem e recusarem! Numa dessas vezes em que estavam mais uma vez a voltar do São Carlos, o avô deu boleia ao senhor Amaro, muito amigo do avô e foi quem me contou essa história. Ao entrar no carro, ele reparou no Daniel, que na altura usava o cabelo mais comprido. Disse então o senhor Amaro: "Toninho, o senhor tem uma netinha muito linda!". O Daniel ficou revoltado, pôs-se de pé, e com a cintura na frente da cara do senhor Amaro, abaixou os calções e disse: "Eu sou homem! Olha aqui!". O Toninho primeiro mandou-lhe levantar os calções, e depois riu-se imenso. A outra foi também com o senhor Amaro, de uma vez que o Daniel foi com outros meninos à Casa das Irmãs para "buscar" uns côcos. Alguém topou a "arte" e o Daniel saiu correndo com o saco de côcos achando que o senhor Amaro estava atrás deles, já que era ele que cuidava daquilo. Ao virar da praça para a rua Alferes Chiquinho, mete-se para dentro da Cafemac, empresa de cafés do avó, e com o avô ao fundo da loja, joga o saco ali por baixo e diz muito esbaforido: "Avô, estou fugindo do senhor Amaro!", mas o senhor Amaro estava ali à frente, reunido com o avô que, diante daquilo, não sabia se ria ou se pedia desculpas ao homem.
Dou um passo largo atrás e recordo as memórias familiares mais antigas. São muito lindas as memórias que me chegaram da sua juventude. Uma delas é da relação com a mãe dele, a Dona Maria Martins. O avô era ainda adolescente e foi recrutado para fazer o treinamento militar no Rio de Janeiro, compondo a força expedicionária brasileira na II Guerra Mundial. Ao contrário de alguns rapazes da nossa terra (um deles foi vizinho do avô na rua Alferes Chiquinho), o avô não fugiu à luta. A bisavó Maria Martins, no entanto, passou muito aperto e ficava aflita com a possibilidade do Toninho ir para a guerra e lá perecer. Escrevia-lhe então umas cartas muito longas, em que dizia que rogava à Virgem Maria e a todos os santos para que o protegessem, que tivesse muito cuidado e que não se metesse a fazer atos heróicos... Só quem recebe amor e se sente amado é capaz de dar amor e de amar!
O avô era corajoso, mostrou-o muitas vezes na vida, mas não era tolo. Quando vinha de folga à terra, levava de volta para o Rio de Janeiro queijos, doces e cachaça para oferecer ao comandante militar. No fim das contas, o avô fez o treinamento de praça completo, mas a guerra acabou e ele nem precisou ir lutar na Itália... para o bem de todos nós, seus descendentes!
Aqui chegamos ao ponto mais importante da vida do Toninho, sem dúvida nenhuma. Parece que foi desde umas festas de Santa Rita que ele ficou a saber que o Sr. Domingos Ferreira Rios tinha uma filha muito bonita e muito prendada, chamada Adalgiza. Pediu então ao pai da moça para lhe fazer a corte. Não posso dizer bem como foi essa paquera, mas a avó um dia disse que ele vinha a cavalo até a casa deles e ficava do lado de fora à espera de ser convidado... o namoro à antiga era assim!
De todos os sucessos do avô (foram muitos... precisaria de um livro para contá-los), juntar o seu destino ao da minha avó foi o maior. Mulher de fibra, vinda de muito bom berço, equilibrada e de invulgar visão, a Adalgiza não esteve atrás do avô, mas ao seu lado. E ele ao lado dela. Os dois viveram um grande amor, feito também de grandes sacrifícios e tortuosas provações, e estiveram juntos até o fim. Muito do êxito comercial do avô explica-se pelas qualidades de perseverança, disciplina, organização e ambição da avó, embora o avô tivesse também as suas influências domésticas nesse campo.
O avô veio de uma família com tradições de iniciativa relevantes. A sua avó Augusta descendia de Fernão Dias Paes, e o seu pai já era naquele tempo um empreendedor de muito êxito. O bisavô Maximiano, que também era espirituoso e gostava de soltar fogos nas festas de Santa Rita, produzia uma cachaça muito conhecida. O negócio foi muito bem sucedido, e ainda hoje existe pelas mãos de um outro bisneto do bisavô Miano, o meu primo Marcelo. Ora bem, os exemplos de êxito devem ter despertado no avô aquela ambição de enriquecer, e ele fez muito por isso.
Inicialmente, o Toninho começou a trabalhar com o Sr. Juquinha do Vale, transportando café com a sua tropa. A avó costurava para fora e teve a ideia de que o avô começasse a ser ele mesmo a comprar o café, ao invés de só fazer o serviço de frete. O avô aceitou a sugestão (como muitas outras que viriam ao longo da vida) e, arranjando os próprios clientes, passou a ser ele mesmo a comprar o café para beneficiar e depois revender. A avó também ajudou nessa parte, perguntando às clientes da costura se os maridos tocavam alguma lavoura, e foi daí que o negócio do café começou.
Com ele, o avô fez muito dinheiro ao longo da vida, mas nem por isso era de esbanjar, antes pelo contrário. Chegou até mim a sua fama de homem poupado, do tipo que ficava na praça à espera de arranjar uma boleia para ir à cidade vizinha, e assim poupar o dinheiro da condução. A razão disso é que o avô sabia que os recursos são uma dádiva do trabalho e são conseguidos com a bênção de Deus. Para ele, desperdiçá-los quando se poderia poupar seria um desrespeito ao próprio esforço e ao fundamento da propriedade de servir ao homem, não o contrário.
A verdade dessa proposição está no seu caráter quanto aos que precisavam de ajuda. Nunca se negou a ajudar ninguém, o que lhe angariou uma fama de ser um homem de boa vontade, tornando-se padrinho de batismo de mais de cem alminhas. Quando alguém lhe pedia dinheiro para comprar um medicamento caro, ou ajudar com alguma despesa de saúde, dizia logo que sim, mas fazia sócios para a empresa: ia ao encontro dos outros que também poderiam ajudar e pedia que também colaborassem, cada um com um pouquinho, para todos juntos poderem comprar ou pagar pelo que era preciso. A ideia de envolver os outros ainda tinha (e tem!) uma grande vantagem: ajuda a desenvolver um espírito de comunidade, de amizade cívica, em que há respeito entre as pessoas, algo que o avô sempre trabalhou para defender e promover.
Muito por isso, não tolerava injustiças e nem abusos com os mais fracos. Contou-me a Elzita, que trabalhou na nossa casa muitos anos e também para o meu irmão, que ainda cedo na sua vida, o avô salvou-a de uma surra de corrião que levava do patrão. Dizia ela que trabalhava num sítio e que o marido era retireiro de leite. Pelo que percebi, numa manhã o marido esqueceu-se de levar o latão até onde passava o caminhão do laticínio e o leite azedou... Indo à casa do retireiro, o patrão encontrou a Elzita e começou a tirar satisfações, mas a pobre da mulher (uma menina de dezoito anos na época) não sabia de nada... O patrão irritou-se ainda mais, apanhando a mulher pelo cabelo e batendo-lhe com o corrião... Nisso chega o Toninho, que comprava café a esse homem. Vendo a cena, sacou do revólver e mandou-o parar. Disse ao homem que o que ele fazia era uma covardia e que se quisesse bater em alguém que fosse em quem pudesse se defender. Colocou a Elzita no carro, foi atrás do marido dela e explicou o que tinha acontecido. À tarde mandou lá um caminhão para fazer a mudança deles para um outro sítio que o avô já lhes tinha arranjado. A humanidade cristã esteve sempre em primeiro lugar, não só da boca para fora, mas nas atitudes.
Era essa a mesma lógica no apoio que sempre deu às Festas de Santa Rita, em que ia todos os dias, colaborando com os leilões e ajudando em tudo o que podia para apoiar a Paróquia. Mais uma vez recorro às memórias do meu primo Daniel, sempre com muitos pormenores, especialmente dessas festas em que o avô o levava à "barraquinha de Maio". Naquelas noites, punham-se os dois a jogar bingo e o Daniel a beber o seu café com leite. Tudo com muita simplicidade e poesia, um bocado como a vida que o Toninho fez para si.
Falei antes das provações e dificuldades. Não foram poucas, mas me vou limitar a alguns factos evidenciadores. Os meus avós tiveram oito filhos. Entre o primeiro e o segundo, a diferença de idade era de apenas um ano e vinte dias! Na casa deles no São Carlos só foi haver água encanada depois que nasceu o meu pai, que está pelo meio da escadinha... Eletricidade então, nem sei dizer quando foi que tiveram, mas ainda deve ter demorado algum tempo a mais.
Com muito trabalho, empenho e dedicação, venceu-se tudo. Mudaram-se para a cidade e foram morar numa casa onde até hoje vive a minha avó. Dessa época em que os filhos já eram jovenzinhos também há algumas histórias interessantes. Como a do meu pai, ainda adolescente, a bater com a porta bravo porque o avô não queria lhe dar dinheiro para sair e gastar com as moças. Também há a história do rodízio do jipe do avô, que é muito engraçada. Eram muitos rapazes em casa e queriam sair todos com as namoradas, mas só havia um automóvel: o jipe verde com o parabrisas dobrável que era igual aos da II Guerra. A solução do Toninho foi óbvia: cada dia, um de vocês vai sair com o jipe. E assim foi. O meu pai arranjou um jeito de contornar a regra e comprou uma motocicleta para si, inclusivamente foi a primeira moto na cidade, causando grande alvoroço entre as meninas! Ainda assim, o jipe teve um uso bastante intensivo, tanto que um dia tentou se vingar do Toninho: quando ele ia para Santa Bárbara, foi atravessar um córrego e virou de rodas para o ar... Graças a Deus, o avô saiu ileso.
Já não foi assim, infelizmente, com o meu tio Marco António, que morreu ainda muito moço, logo depois de se casar, num acidente de caminhão que também levou a vida de um primo dele. A avó diz que a pior dor que já passou na vida foi a de perder um filho. O Toninho devia concordar, afinal, foram pais imensamente amorosos e dedicados, que viviam para os filhos.
Quando meu pai casou, além de arranjar a casa, o avô comprou os móveis todos e pôs tudo do que havia de melhor. Como fez para o meu pai, fez para todos os outros, não só com presentes de casamento, mas também encaminhando a cada um deles na vida o melhor que podia.
Ali mesmo na Alferes Chiquinho, para além do negócio do café que foi passando para o meu tio Max, o Toninho ajudou os filhos com outros negócios, e todos conseguiram prosperar.
São verdadeiramente admiráveis as suas capacidades de realização e disciplina, fundamentais para executar o plano: deixa ver se arranjo uma loja para cada um aqui perto de mim, e assim ficamos todos próximos. Premeditado ou não, a verdade é que os filhos todos tem casa a distância de uns 100 metros uns dos outros, praticamente todos na mesma rua. Mesmo a minha tia que mora em Viçosa, mais à frente ela e meu tio acabaram por comprar uma casa por ali.
A morte, no entanto, não permitiu que o Toninho gozasse por muito tempo os frutos da sua vida de trabalho e dedicação. Com problemas cardíacos (que na nossa família são quase tão comuns quanto as carecas), o avô foi ao Rio de Janeiro fazer um cateterismo. A operação foi de manhã, e em si correu até bem. O avô almoçou e foi se deitar para descansar. Logo ao início da tarde, no entanto, começou a passar mal e um ataque cardíaco fulminante levou-o para sempre de nós. Tinha apenas 62 anos.
Segue-se aqui um velório em sua casa, em que recordo claramente o seu caixão na sala, com os pés para a porta e no ar uma tristeza muito grande. Naquela manhã, o meu pai chorou à minha frente pela primeira e única vez na vida, e logo que se apercebeu da minha presenta, retirou-me de perto do caixão (eu me apoiava na ponta dos pés e me inclinava ali para dentro para tentar ver se era mesmo o avô). Levou-me lá para a varanda de dentro e disse que tínhamos de estar sérios. Eu já tinha percebido essa parte, mas era por demais surreal imaginar que nunca mais veria o meu avô, aquilo não cabia na minha cabeça de criança.
Nos anos que passaram, a memória dele permaneceu sempre muito elevada. Recordo agora dos mendigos que iam lá bater à porta da casa da minha avó e sempre encontravam um prato de comida - algo que o meu avô sempre fez questão de lhes oferecer. Houve ainda, penso que no máximo dois anos depois do avô ter morrido, um senhor que bateu à porta a perguntar se ele estava em casa, obviamente gente de fora. A minha avó só conseguiu dizer que não estava... Coube à minha mãe dar-lhe a notícia da morte dele. Pelo que diz a minha mãe, a minha avó juntou as mãos em oração e pediu que a sua própria mãe, a saudosa bisavó Elmira, estivesse com ela naquele momento. Não foi fácil para ela. Perder o seu parceiro na vida foi um golpe muito duro, como também foi, na devida proporção, para todos que o amavam e gozavam da sua amizade.
As longas décadas da ausência do nosso Toninho, no entanto, serviram para transformar a dor da perda na doçura da saudade e no imenso orgulho da sua memória.
O homem gentil, firme, ambicioso, cheio de amor e de alegria que nos deu a vida, que nos transmitiu o seu caráter e o seu exemplo, vive também em nós todos um pouquinho.
Da minha parte, a sua memória serviu (e serve ainda hoje) para ponderar sempre as atitudes mais corretas, para ter força e recordar sempre a importância fundamental da família e do dever de ajudar os que precisam.
Deixo o leitor fazer o seu juízo, fico com o meu. Foi a 18 de Março de 1924 que veio ao mundo o homem mais bem sucedido que eu alguma vez conheci.
A minha lembrança de primeira infância, feita da fantasia e da poesia que emolduram esses momentos para o resto da vida, recorda-o entre outras saudades de um tempo de muito amor e de cuidado. Os seus feitos como homem, no entanto, aprendidos por mim já depois que ele se tinha ido, colaboraram para fazer da memória do Toninho, cheia de êxitos retumbantes tanto em casa, como profissionalmente, uma herança incomparável.
Desafio o leitor a percorrer comigo essas façanhas e dar o seu próprio juízo, uma vez que o meu pode ser prejudicado pela óbvia ligação sentimental.
Comecemos pelas minhas próprias memórias e pela forma como ele era em casa. Trata-se de um passeio muito agradável por uma obra sentimental feita de dedicação incansável e amor incondicional à família.
Lembro do seu riso, que era frequente. Muito diferente de meu pai, que é um homem mais circunspecto, introspectivo e melancólico, o avô era alegre, e adorava brincar com os netos. O ambiente com ele já por si era animado: fez duas piscinas no São Carlos para garantir a festa dos adultos e das crianças. Embora eu tenha quase me afogado na piscina grande, a verdade é que passávamos lá uns domingos muito felizes, meu pai, seus irmãos e as famílias de cada um, e os meus avós, sempre com muita união, como era o gosto do meu avô.
O Toninho também gostava de nos ter todos reunidos na sua casa na praça. Era lá que a festa continuava aos domingos, no começo da noite, quando assistíamos juntos aos Trapalhões na televisão. Também algumas vezes estávamos juntos nas tardes de sábado, quando ele gostava de arrebentar umas pipocas ou torrar uns amendoins com casca, e dedicar-se às brincadeiras connosco.
Ele tinha imenso prazer em nos ver a sorrir. Uma das brincadeiras que fazia com os netinhos e recordo agora era uma prova de corrida entre a cozinha e a copa da casa dele. O avô ficava sentado no chão, de costas para a cozinha, onde nós estávamos à espera. Depois, mandava-nos vir um por um e, com o corrião na mão, tentava alcançar as nossas perninhas! Ele era maroto, porque começava a dar com o corrião muito devagar, como se não conseguisse nos apanhar, mas era uma estratégia sua: quando começávamos a ficar mais atrevidos e a passar mais lentamente para provocá-lo, ele vinha com tudo! Obviamente que era só para brincar, mas havia ali uma ideia de estar atento e não baixar a guarda.
Depois tenho uma única e muito querida memória de estarmos só os dois. Foi num sábado de manhã em que o meu pai levou-me lá à casa dos avós e como o avô Toninho estava pronto para ir ao sítio dele no São Carlos, pediu ao meu pai para me levar consigo. Lá fomos os dois no seu fusca branco. Chegando ao sítio, fomos à tulha de café e estivemos pelo terreiro onde ainda havia café a secar. Depois andamos por ali perto das piscinas, por um terreno inclinado em que o avô pôs-se a colher algumas abóboras. Por conta do sol forte, o avô sacou do lenço que tinha no bolso e improvisou-me um chapeuzinho, dando um nó em cada uma das pontas do lenço e pondo-o bem na minha cabeça. Quanto a ele, tinha lá o seu chapéu de palha. Estivemos sempre conversando entretidos. Acho que ele perguntava coisas da escolinha, eu estava ainda no pré-escolar. Dizia-me para me comportar e respeitar a professora, e que devia ser sempre um bom menino... Ele gostava de dar conselhos, e os podia dar. Foi uma manhã feliz, de amizade e convívio com o meu avô, e que guardo com imenso carinho.
Daqui para além surgem muitas histórias que me chegaram pela própria família e, muitas outras por gente de fora que, com a mesma consistência, quase que colocam o Toninho no altar junto dos santos mais populares. Já vamos lá chegar.
O Daniel contou-me alguns episódios interessantes, alguns deles contemporâneos ao meu tempo de convívio com o avô. Como neto homem mais velho, entretanto, ele acabou por conviver muito mais com o avô e também guarda dele uma memória de muito carinho. Entre muitas histórias, vou deixar algumas mais interessantes. Uma era habitual e passava-se com o fusquinha branco, normalmente ao voltar de São Carlos, em que o avô sempre parava quando via alguém a pé na estrada e oferecia boleia no carro. A boa vontade do avô, no entanto, não via limites, e mesmo com o carro cheio (o Daniel tinha que ir no "chiqueirinho", lá trás) ele continuava a parar e oferecer boleia, ao ponto das pessoas agradecerem e recusarem! Numa dessas vezes em que estavam mais uma vez a voltar do São Carlos, o avô deu boleia ao senhor Amaro, muito amigo do avô e foi quem me contou essa história. Ao entrar no carro, ele reparou no Daniel, que na altura usava o cabelo mais comprido. Disse então o senhor Amaro: "Toninho, o senhor tem uma netinha muito linda!". O Daniel ficou revoltado, pôs-se de pé, e com a cintura na frente da cara do senhor Amaro, abaixou os calções e disse: "Eu sou homem! Olha aqui!". O Toninho primeiro mandou-lhe levantar os calções, e depois riu-se imenso. A outra foi também com o senhor Amaro, de uma vez que o Daniel foi com outros meninos à Casa das Irmãs para "buscar" uns côcos. Alguém topou a "arte" e o Daniel saiu correndo com o saco de côcos achando que o senhor Amaro estava atrás deles, já que era ele que cuidava daquilo. Ao virar da praça para a rua Alferes Chiquinho, mete-se para dentro da Cafemac, empresa de cafés do avó, e com o avô ao fundo da loja, joga o saco ali por baixo e diz muito esbaforido: "Avô, estou fugindo do senhor Amaro!", mas o senhor Amaro estava ali à frente, reunido com o avô que, diante daquilo, não sabia se ria ou se pedia desculpas ao homem.
Dou um passo largo atrás e recordo as memórias familiares mais antigas. São muito lindas as memórias que me chegaram da sua juventude. Uma delas é da relação com a mãe dele, a Dona Maria Martins. O avô era ainda adolescente e foi recrutado para fazer o treinamento militar no Rio de Janeiro, compondo a força expedicionária brasileira na II Guerra Mundial. Ao contrário de alguns rapazes da nossa terra (um deles foi vizinho do avô na rua Alferes Chiquinho), o avô não fugiu à luta. A bisavó Maria Martins, no entanto, passou muito aperto e ficava aflita com a possibilidade do Toninho ir para a guerra e lá perecer. Escrevia-lhe então umas cartas muito longas, em que dizia que rogava à Virgem Maria e a todos os santos para que o protegessem, que tivesse muito cuidado e que não se metesse a fazer atos heróicos... Só quem recebe amor e se sente amado é capaz de dar amor e de amar!
O avô era corajoso, mostrou-o muitas vezes na vida, mas não era tolo. Quando vinha de folga à terra, levava de volta para o Rio de Janeiro queijos, doces e cachaça para oferecer ao comandante militar. No fim das contas, o avô fez o treinamento de praça completo, mas a guerra acabou e ele nem precisou ir lutar na Itália... para o bem de todos nós, seus descendentes!
Aqui chegamos ao ponto mais importante da vida do Toninho, sem dúvida nenhuma. Parece que foi desde umas festas de Santa Rita que ele ficou a saber que o Sr. Domingos Ferreira Rios tinha uma filha muito bonita e muito prendada, chamada Adalgiza. Pediu então ao pai da moça para lhe fazer a corte. Não posso dizer bem como foi essa paquera, mas a avó um dia disse que ele vinha a cavalo até a casa deles e ficava do lado de fora à espera de ser convidado... o namoro à antiga era assim!
De todos os sucessos do avô (foram muitos... precisaria de um livro para contá-los), juntar o seu destino ao da minha avó foi o maior. Mulher de fibra, vinda de muito bom berço, equilibrada e de invulgar visão, a Adalgiza não esteve atrás do avô, mas ao seu lado. E ele ao lado dela. Os dois viveram um grande amor, feito também de grandes sacrifícios e tortuosas provações, e estiveram juntos até o fim. Muito do êxito comercial do avô explica-se pelas qualidades de perseverança, disciplina, organização e ambição da avó, embora o avô tivesse também as suas influências domésticas nesse campo.
O avô veio de uma família com tradições de iniciativa relevantes. A sua avó Augusta descendia de Fernão Dias Paes, e o seu pai já era naquele tempo um empreendedor de muito êxito. O bisavô Maximiano, que também era espirituoso e gostava de soltar fogos nas festas de Santa Rita, produzia uma cachaça muito conhecida. O negócio foi muito bem sucedido, e ainda hoje existe pelas mãos de um outro bisneto do bisavô Miano, o meu primo Marcelo. Ora bem, os exemplos de êxito devem ter despertado no avô aquela ambição de enriquecer, e ele fez muito por isso.
Inicialmente, o Toninho começou a trabalhar com o Sr. Juquinha do Vale, transportando café com a sua tropa. A avó costurava para fora e teve a ideia de que o avô começasse a ser ele mesmo a comprar o café, ao invés de só fazer o serviço de frete. O avô aceitou a sugestão (como muitas outras que viriam ao longo da vida) e, arranjando os próprios clientes, passou a ser ele mesmo a comprar o café para beneficiar e depois revender. A avó também ajudou nessa parte, perguntando às clientes da costura se os maridos tocavam alguma lavoura, e foi daí que o negócio do café começou.
Com ele, o avô fez muito dinheiro ao longo da vida, mas nem por isso era de esbanjar, antes pelo contrário. Chegou até mim a sua fama de homem poupado, do tipo que ficava na praça à espera de arranjar uma boleia para ir à cidade vizinha, e assim poupar o dinheiro da condução. A razão disso é que o avô sabia que os recursos são uma dádiva do trabalho e são conseguidos com a bênção de Deus. Para ele, desperdiçá-los quando se poderia poupar seria um desrespeito ao próprio esforço e ao fundamento da propriedade de servir ao homem, não o contrário.
A verdade dessa proposição está no seu caráter quanto aos que precisavam de ajuda. Nunca se negou a ajudar ninguém, o que lhe angariou uma fama de ser um homem de boa vontade, tornando-se padrinho de batismo de mais de cem alminhas. Quando alguém lhe pedia dinheiro para comprar um medicamento caro, ou ajudar com alguma despesa de saúde, dizia logo que sim, mas fazia sócios para a empresa: ia ao encontro dos outros que também poderiam ajudar e pedia que também colaborassem, cada um com um pouquinho, para todos juntos poderem comprar ou pagar pelo que era preciso. A ideia de envolver os outros ainda tinha (e tem!) uma grande vantagem: ajuda a desenvolver um espírito de comunidade, de amizade cívica, em que há respeito entre as pessoas, algo que o avô sempre trabalhou para defender e promover.
Muito por isso, não tolerava injustiças e nem abusos com os mais fracos. Contou-me a Elzita, que trabalhou na nossa casa muitos anos e também para o meu irmão, que ainda cedo na sua vida, o avô salvou-a de uma surra de corrião que levava do patrão. Dizia ela que trabalhava num sítio e que o marido era retireiro de leite. Pelo que percebi, numa manhã o marido esqueceu-se de levar o latão até onde passava o caminhão do laticínio e o leite azedou... Indo à casa do retireiro, o patrão encontrou a Elzita e começou a tirar satisfações, mas a pobre da mulher (uma menina de dezoito anos na época) não sabia de nada... O patrão irritou-se ainda mais, apanhando a mulher pelo cabelo e batendo-lhe com o corrião... Nisso chega o Toninho, que comprava café a esse homem. Vendo a cena, sacou do revólver e mandou-o parar. Disse ao homem que o que ele fazia era uma covardia e que se quisesse bater em alguém que fosse em quem pudesse se defender. Colocou a Elzita no carro, foi atrás do marido dela e explicou o que tinha acontecido. À tarde mandou lá um caminhão para fazer a mudança deles para um outro sítio que o avô já lhes tinha arranjado. A humanidade cristã esteve sempre em primeiro lugar, não só da boca para fora, mas nas atitudes.
Era essa a mesma lógica no apoio que sempre deu às Festas de Santa Rita, em que ia todos os dias, colaborando com os leilões e ajudando em tudo o que podia para apoiar a Paróquia. Mais uma vez recorro às memórias do meu primo Daniel, sempre com muitos pormenores, especialmente dessas festas em que o avô o levava à "barraquinha de Maio". Naquelas noites, punham-se os dois a jogar bingo e o Daniel a beber o seu café com leite. Tudo com muita simplicidade e poesia, um bocado como a vida que o Toninho fez para si.
Falei antes das provações e dificuldades. Não foram poucas, mas me vou limitar a alguns factos evidenciadores. Os meus avós tiveram oito filhos. Entre o primeiro e o segundo, a diferença de idade era de apenas um ano e vinte dias! Na casa deles no São Carlos só foi haver água encanada depois que nasceu o meu pai, que está pelo meio da escadinha... Eletricidade então, nem sei dizer quando foi que tiveram, mas ainda deve ter demorado algum tempo a mais.
Com muito trabalho, empenho e dedicação, venceu-se tudo. Mudaram-se para a cidade e foram morar numa casa onde até hoje vive a minha avó. Dessa época em que os filhos já eram jovenzinhos também há algumas histórias interessantes. Como a do meu pai, ainda adolescente, a bater com a porta bravo porque o avô não queria lhe dar dinheiro para sair e gastar com as moças. Também há a história do rodízio do jipe do avô, que é muito engraçada. Eram muitos rapazes em casa e queriam sair todos com as namoradas, mas só havia um automóvel: o jipe verde com o parabrisas dobrável que era igual aos da II Guerra. A solução do Toninho foi óbvia: cada dia, um de vocês vai sair com o jipe. E assim foi. O meu pai arranjou um jeito de contornar a regra e comprou uma motocicleta para si, inclusivamente foi a primeira moto na cidade, causando grande alvoroço entre as meninas! Ainda assim, o jipe teve um uso bastante intensivo, tanto que um dia tentou se vingar do Toninho: quando ele ia para Santa Bárbara, foi atravessar um córrego e virou de rodas para o ar... Graças a Deus, o avô saiu ileso.
Já não foi assim, infelizmente, com o meu tio Marco António, que morreu ainda muito moço, logo depois de se casar, num acidente de caminhão que também levou a vida de um primo dele. A avó diz que a pior dor que já passou na vida foi a de perder um filho. O Toninho devia concordar, afinal, foram pais imensamente amorosos e dedicados, que viviam para os filhos.
Quando meu pai casou, além de arranjar a casa, o avô comprou os móveis todos e pôs tudo do que havia de melhor. Como fez para o meu pai, fez para todos os outros, não só com presentes de casamento, mas também encaminhando a cada um deles na vida o melhor que podia.
Ali mesmo na Alferes Chiquinho, para além do negócio do café que foi passando para o meu tio Max, o Toninho ajudou os filhos com outros negócios, e todos conseguiram prosperar.
São verdadeiramente admiráveis as suas capacidades de realização e disciplina, fundamentais para executar o plano: deixa ver se arranjo uma loja para cada um aqui perto de mim, e assim ficamos todos próximos. Premeditado ou não, a verdade é que os filhos todos tem casa a distância de uns 100 metros uns dos outros, praticamente todos na mesma rua. Mesmo a minha tia que mora em Viçosa, mais à frente ela e meu tio acabaram por comprar uma casa por ali.
A morte, no entanto, não permitiu que o Toninho gozasse por muito tempo os frutos da sua vida de trabalho e dedicação. Com problemas cardíacos (que na nossa família são quase tão comuns quanto as carecas), o avô foi ao Rio de Janeiro fazer um cateterismo. A operação foi de manhã, e em si correu até bem. O avô almoçou e foi se deitar para descansar. Logo ao início da tarde, no entanto, começou a passar mal e um ataque cardíaco fulminante levou-o para sempre de nós. Tinha apenas 62 anos.
Segue-se aqui um velório em sua casa, em que recordo claramente o seu caixão na sala, com os pés para a porta e no ar uma tristeza muito grande. Naquela manhã, o meu pai chorou à minha frente pela primeira e única vez na vida, e logo que se apercebeu da minha presenta, retirou-me de perto do caixão (eu me apoiava na ponta dos pés e me inclinava ali para dentro para tentar ver se era mesmo o avô). Levou-me lá para a varanda de dentro e disse que tínhamos de estar sérios. Eu já tinha percebido essa parte, mas era por demais surreal imaginar que nunca mais veria o meu avô, aquilo não cabia na minha cabeça de criança.
Nos anos que passaram, a memória dele permaneceu sempre muito elevada. Recordo agora dos mendigos que iam lá bater à porta da casa da minha avó e sempre encontravam um prato de comida - algo que o meu avô sempre fez questão de lhes oferecer. Houve ainda, penso que no máximo dois anos depois do avô ter morrido, um senhor que bateu à porta a perguntar se ele estava em casa, obviamente gente de fora. A minha avó só conseguiu dizer que não estava... Coube à minha mãe dar-lhe a notícia da morte dele. Pelo que diz a minha mãe, a minha avó juntou as mãos em oração e pediu que a sua própria mãe, a saudosa bisavó Elmira, estivesse com ela naquele momento. Não foi fácil para ela. Perder o seu parceiro na vida foi um golpe muito duro, como também foi, na devida proporção, para todos que o amavam e gozavam da sua amizade.
As longas décadas da ausência do nosso Toninho, no entanto, serviram para transformar a dor da perda na doçura da saudade e no imenso orgulho da sua memória.
O homem gentil, firme, ambicioso, cheio de amor e de alegria que nos deu a vida, que nos transmitiu o seu caráter e o seu exemplo, vive também em nós todos um pouquinho.
Da minha parte, a sua memória serviu (e serve ainda hoje) para ponderar sempre as atitudes mais corretas, para ter força e recordar sempre a importância fundamental da família e do dever de ajudar os que precisam.
Deixo o leitor fazer o seu juízo, fico com o meu. Foi a 18 de Março de 1924 que veio ao mundo o homem mais bem sucedido que eu alguma vez conheci.
sexta-feira, janeiro 05, 2018
Ó capitão! Meu capitão!
Ó Capitão! Meu Capitão! Finda é a temível jornada,
Vencida cada tormenta, a busca foi laureada.
O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro,
Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero.
Mas ó coração, coração!
O sangue mancha o navio,
No convés, meu Capitão
Vai caído, morto e frio.
Ó Capitão! Meu Capitão! Ergue-te ao dobre dos sinos;
Por ti se agita o pendão e os clarins tocam teus hinos.
Por ti buquês, guirlandas... Multidões as praias lotam,
Teu nome é o que elas clamam; para ti os olhos voltam,
Capitão, querido pai,
Dormes no braço macio...
É meu sonho que ao convés
Vais caído, morto e frio.
Ah! Meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso,
Meu calor meu pai não sente, já não tem vontade ou pulso.
Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída.
E lá vem ela em triunfo da viagem antes temida.
Povo, exulta! Sino, dobra!
Mas meu passo é tão sombrio...
No convés meu Capitão
Vai caído, morto e frio.
Walt Whitman, in: "Recordações do Presidente Lincoln”, tradução de Luciano Meira
Aquele grande homem, no seu ocaso, fragilizado e diminuído pelo combate impossível que travou, vai finalmente descansar. Olhos marejados, suspiros profundos, gente cabisbaixa e nas mãos as contas do rosário, apertadas uma a uma entre o polegar e o indicador, como que para não deixar escapar a vida, em vão... Na imagem final que vai deixar aos que estiveram presentes, fica essa réstia pálida em representação da grandeza daquelas longas décadas em que caminhou pela terra, firmou o passo e deu o exemplo.
Levantava cedo, beijava a mulher, saia para trabalhar. Não vivia só para si, também gostava de ajudar, tentava colaborar, tinha as melhores intenções. Também errava, como todos que se propõem a fazer alguma coisa, mas não se enganava, sabia muito bem para onde é que estava a ir, e o que queria da vida. Com ímpeto suave e persistência implacável, avançou pela vida como um imparável colosso que tudo vence e a todos protege.
Deu amor, fez filhos, deixou amigos e lembranças guardadas na sala dos tesouros do espírito.
Tantas vezes vasculho a memória à procura daqueles momentos que já se foram. Reproduzo, como se fosse num filme, cada gesto, cada sorriso, lembro-me das palavras, e em silêncio balbucio, como se ainda fosse a criança que tentava alcançar o seu queixo com meus dedinhos pequenos...
Tão grande herança, tão grande herança esse homem deixou. Quanto amor derramado por aquelas mãos que incessantemente construíram um mundo próprio, com ideias próprias, e sonhos próprios, onde nós e tantos outros que partilharam do seu convívio fomos convidados a morar. Cada vez que é preciso tomar uma decisão, a moral própria convoca a moral do morto: "O que ele faria?"
As heranças não se contam só pelos alqueires de terra, ou pelas casas, ou dinheiro aplicado… Todas coisas pequeninas em vista do grande porvir. A herança que contará então é a da memória. Na pujança e na disciplina para o trabalho, na retidão da palavra dada, na coragem de correr o risco, na frieza para aplicar a justiça, lá está o homem morto, afinal vivo.
Se a cena final, em que o corpo sem vida deitado num caixão cheio de flores, provocou choro e luto, não deve agora deixar de ser recordada como um convite para honrar aquela vida determinada, com mais vidas determinadas.
Pois o dia passa e vem a noite. Agora o dia é nosso. Podemos sair por aí e ver mundo. Podemos dar beijos apaixonados e escrever poemas. Podemos lançar olhares e dar gargalhadas... E tudo que o morto quer é que nós o façamos. Ele completou o seu ciclo, a nós cabe fazer o nosso, com coragem para viver e cultivar na memória aquela vida que já não há, mas ainda há... em nós.
Nada é mais bonito que viver no pensamento de quem nos ama. Imagina que depois de dezenas de anos da tua morte, teus filhos e netos buscarão na lembrança a tua presença. Dali, como um quadro pintado num tempo esquecido, mas que ainda emociona, tu também emocionarás...
Penso que assim é porque o amor não morre. Ele faz a grande e perigosa jornada, cumpre o objetivo, traz para casa o prémio, e quando dividido, multiplica a vida.
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