sexta-feira, julho 06, 2018

O melhor do mundo



Lembro-me do Ronaldo recém-chegado da Madeira, ainda muito novo e com os dentes tortos, mas já cheio de confiança e agressividade para se impor. Logo ali já havia qualquer coisa de diferente naquele rapaz alto e algo convencido.

Muitos, mesmo muitos adeptos, no entanto, olharam para ele com algum contragosto. O excesso de auto-confiança causa alguma repugnância aos sentimentos refinados, que homenageiam a humildade em oposição à arrogância.
Ele cresceu, entretanto, não só no seu magistral futebol, mas principalmente como homem.

Entre os dramas familiares que lhe impunha a dor de um pai que abusava dos copos e que morreu precocemente, e as pressões de afirmação da sua potencialidade que eram impostas por si mesmo, num misto de raiva, força e uma inquebrantável convicção de que podia sempre melhorar e fazer melhor, deu tudo de si, e venceu.

Nunca houve um jogador de futebol tão ambicioso, tão dedicado aos treinamentos, tão assertivo nas suas capacidades, tão concentrado na leitura do jogo e na inserção da sua magnífica inteligência dinâmica a serviço da conversão de todo esse trabalho em golos, e ainda assim sem prescindir da sua humanidade e das suas emoções e, mesmo por isso, chegar até nós como alguém que podemos estimar e nos orgulhar.

Dos muitos golos que fez, com uma regularidade ao longo da carreira que é raríssima, destaco a conversão do livre contra Espanha no mundial da Rússia. Num momento baixo da seleção nacional, intimidada pelo volume de jogo de Espanha que se impunha à Portugal para vencer a partida, surge a oportunidade de cobrar uma falta a vinte e poucos metros da baliza. A bola vai ter com o capitão de Portugal, que nunca se nega a cumprir com a sua função. Em silêncio, puxa as barras do calção para cima das coxas, faz um A com as pernas e vidra os olhos na baliza, numa pose de conjunto que deu a impressão de indução a um transe.

Nesse preciso instante, um país inteiro viveu dentro daquele homem. As milhares de gerações que existiram para que ele existisse, os valores, os mitos, os medos, os orgulhos e mesmo as mesquinharias... tudo que compõe a nacionalidade esteve presente naquele instante de redenção do orgulho nacional frente a Espanha.

E à contragosto dos seus detratores, Ronaldo converteu o livre num golo antológico. Portugal foi ao delírio, com um momento de emoção talvez só comparado ao da louca campanha no Euro 2004 ou dos momentos decisivos do Euro 2016.

A sua postura manteve-se igual no relacionamento com os demais jogadores, assumindo-se verdadeiramente como um líder, nunca se queixando, nunca assumindo postura de vítima, sempre incentivando os companheiros, mesmo quando erravam...

Por fim, já na despedida de Portugal contra o Uruguai, mostrou porquê os portugueses se auto-intitulam um "nobre povo": abraçou e apoiou Cavani para que deixasse o relvado, uma vez que o avançado que marcara duas vezes contra a seleção nacional naquele mesmo jogo havia se lesionado.

Decisivo, frio, calculista, seguro de si, honesto, leal com os adversários, amigo do seu amigo... o melhor do mundo é viver o pleno das nossas capacidades. Ronaldo fê-lo (e fá-lo) como poucos.