Ah, que eu já sentisse
Os êxtases máximos
Da carne nos rasgos
Da paixão espúria!
Ah, que eu já bradasse
Nas horas de exalta-
Ção os mais lancinantes
Gritos de loucura!
Ah, que eu já queimasse
Da febre mais quente
Que jamais queimasse
A humana criatura!
Mas nunca como antes
Nunca! nunca! nunca!
Nem paixão tão alta
Nem febre tão pura.
A paixão da carne, in: Antologia Poética, Vinicius de Moraes
Com quatorze anos de idade chegou-me as mãos a edição original de Para Viver Um Grande Amor, de Vinicius de Moraes. Não poderia jamais imaginar que através daquele livro de páginas amareladas toda a minha vida seria marcada por um ideal tão intenso, tão puro, tão humano, que é o de amar incondicionalmente. Eu rapidamente me apercebi que essa era a regra de ouro do poeta, pela qual ele viveu e morreu, e essa foi a razão determinante de termos ficado "amigos".
No fim do livro há uma crónica muito tocante, chamada Pedro, meu filho. Vinicius ali faz algumas reflexões sobre "a terrível herança" que deixara ao Pedro - "a insensatez de um coração constantemente apaixonado."
Há uma outra passagem particularmente profunda, embora naquele tempo eu não tenha podido apreciá-la na sua inteireza. Agora, no entanto, sinto-a de forma muito marcada: "(...) eu, muitas noites, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua."
Alguns anos depois daquela leitura quase trivial da crónica, fui encontrar um poema de Vinicius que fazia referência ao mesmo episódio: A paixão da carne.
Ali apercebi-me melhor da dilacerante dor que sentira pela aflição com a doença do Pedrinho... como sofrera de forma impotente frente a dor de quem amava... como ambicionou para si a dor da "humana criatura"...
Hoje sinto tão claramente o que sentiu o pobre poeta... como a doença corta da vida a corrente essencial que nos liga aos sorrisos, aos abraços, aos afagos... como faz miseravelmente sofrer quem amamos e nos reduz à nossa natural insignificância, a contemplar pela madrugada em claro o sentido do sofrimento no convite sagrado de Deus para o vivermos dignamente.
Por ser tão intenso esse sofrimento apaixonado, fico a pensar se a paixão é apenas mais uma forma de adoração do ego. Nessa profunda paixão, nada mais haveria que uma grande forma de auto-satisfação de um falso ser, apoiado em outra pessoa. E como numa espécie de demência, as formas tomam o lugar das essências.
E assim a dor replica-se: a dor física, torna-se dor da alma... a paixão arde e aquece, queimando por dentro toda a sensatez, para recuperar a ideia de Vinicius, deixa a vida sem grande sentido real para além de uma obsessão.
O amor doce, sereno e verdadeiro, não é o da "paixão da carne"... ele quer acolher e se deixar sentir, passo a passo, ao longo do grande caminho... a doença não o pode deter, nem a tristeza, nem a distância. Ele alimenta-se da verdade e cresce na perseverança de estar sempre presente, como a grande dádiva da vida.