Uma luz celestial - Gustavo Doré, 1875
Choraste sobre o meu ombro o desfazer-se dos teus sonhos de amor, meu querido irmão. Nos teus olhos, aquela mesma verde paixão de viver e de vencer estava perdida, a rodar em vão e em alta velocidade dentro do teu espírito.
Pediste-me respostas, mas à falta de palavras próprias, que nos momentos decisivos da vida muito poucas vezes conseguem ser suficientes para expressão dos grandes significados, ofereci-te uns versos do maior dos poetas, ditos em voz serena: [...] mais serviria, se não fora/Para tão longo amor tão curta a vida.
Hoje, depois de passado o tempo e vivida a vida, tenho, enfim, palavras próprias para te dedicar, palavras que, embora atrasadas, não deixam de fazer-se signos de sentimentos verdadeiros e razões nobres, e são agora humildemente oferecidas a ti.
Ainda miúdos vimos, lado a lado, o futuro a se abrir para nós. Foi um céu azul e limpo de primavera com cheiro a verão que recebeu a ti e aos futuros irmãos na minha terra para uma tarde fatídica em minha vida: o 8 de Dezembro de 1996.
Tu, com teus óculos fundos, a tua gravata borboleta e o teu livro debaixo do braço (uma poderosa palavra-passe para a nossa amizade), lançava dúvidas sagazes sobre a conveniência daquelas convenções, talvez porque também para ti aquilo era um mundo novo, em que tentavas encaixar os sentidos. Logo vi que havia ali um espírito inquieto, cheio de brilhantismo e de força, uma impressão que a vida alegremente confirmou-me muitas vezes, para o júbilo do meu próprio espírito.
Passados largos meses, depois de uma experiência em aprendizagem, mesmo que o estatuto não o indicasse, uni-me a ti e aos irmãos de Juiz de Fora já consciente de onde estava e de onde queria chegar.
Como para ti, o futuro estava ao alcance das mãos e estava pronto para tomá-lo.
Foi aquela sala de reuniões semanais para nós o palco de grandes encontros, não de embates. Embora esses também tenham havido, para nós importava fazer, construir e alcançar. E identificados nos propósitos grandes, muito ajudamos um ao outro. Já tive a oportunidade de partilhar contigo, mas volto a repetir: foi para mim uma imensa honra ter servido ao teu lado, pois em muito dignificaste a minha contínua aprendizagem.
O meu sentimento de lealdade e gratidão contigo é dos mais antigos e maciços no meu coração. Nasceu em um momento, mas não se manteve só por ele. É tributo da tua força e carisma, da tua dignidade e perseverança, mesmo quando já não há mais nada para se fazer.
Estivemos depois juntos noutras paragens, em que novamente fomos lançados a empresas ingratas e, por ambição de crescer, fomos dizendo sempre que sim. Eu ainda transpus para Portugal um pouco daquela ilusão, que ainda há poucos anos foi parte integrante de minha vida, como tu mesmo pudeste testemunhar pessoalmente.
Enfim já formados, já lançados à nossa vida profissional, fui-me embora da nossa Juiz de Fora e para longe de ti também. Cometi o grave pecado de dizer adeus... e tenho penado doidamente, desde então. Mas para mim, sabes bem, não havia alternativa. Eu precisava de ir cumprir as promessas feitas pela minha ilusão, e tu precisavas de ficar para que igualmente pudesses viver as tuas.
A distância, no entanto, nunca se fez no meu pensamento ou no meu coração. A lembrança viva do teu sorriso, a presença marcante da tua voz e do teu riso, a tua inabalável e furiosa confiança nas tuas decisões, estiveram presentes em diversos dos meus gestos diários, sem que os meus interlocutores então presentes suspeitassem minimamente.
Saltamos para o infinito de relações amorosas que, cada um ao seu modo, vimos desfazer-se sem que pudéssemos fazer muita coisa. Talvez estivéssemos a buscar o que não havia naquelas senhoras, para ser honesto. Eu tenho uma piedade infinita do amor malfadado, e rezo pela paz daquelas alminhas, e das nossas, obviamente.
No entanto, o curioso é que até no desaire estivemos unidos. Aquelas partilhas dolorosas foram um grande consolo e, se não tinham o poder de fazer desvanecer culpas e arrependimentos, ao menos mantiveram a solidão dois passos mais distante. Foram lágrimas quentes e verdadeiras, como as que marcaram o nosso mais recente encontro.
Em retribuição (obviamente desnecessária, mas bela por nascer da vontade do teu coração), vieste ao Portugal antigo para dessa vez seres tu a assistir a minha prova de doutoramento. Depois de tantos anos de trabalho, tanta distância, sobretudo, tanto estudar o direito que nós cultuamos desde os anos mais verdes, a tua presença e o teu elogio foram uma das gemas mais valiosas da coroa que naquela noite eu recebi.
Se nos cumpre agora recordar, passados tantos e tantos anos, mais que a nostalgia, sinto e vejo reluzir com grande fascínio a verdade desse nosso caminho como a verdade das nossas virtudes. Por doce que às vezes se pareça a vida, temos de ter a maturidade e a frieza de recordar que a adversidade virá ter connosco, como já veio antes. E então contamos primeiro com a nossa boa capacidade de decidir, com a serenidade e honestidade próprias de quem quer o bem antes de querer o bem de si mesmo. Se falharmos aí, ninguém mais, por muito que nos ame, nos poderá ajudar, e o dragão nos irá confrontar para encontrar um inimigo vencido, e não o soldado que tu e eu fomos armados para ser.
Hoje é dia de reconhecer e agradecer por seres parte de quem eu sou. As pequeninas luzes que iluminam a sala capitular de minha vida foram acesas também por ti.