Salva a humanidade - Tom Zé
Há uma sátira brasileira muito popular que explora a demência de um mendigo de Curitiba chamado Daniel Orivaldo da Silva, vulgo "Galo Cego".
Em 2011, o sujeito ocupava-se de serviços de limpeza dos pára-brisas dos carros parados junto ao semáforo. Um dia, por ter supostamente sofrido um "judiamento" por ter a pele ressecada por "uma mulher e um moreno", arremessou uma pedra de 3 Kg contra a viatura da sua ofensora, estilhaçando o vidro da janela esquerda do banco de trás, onde estava um bebé.
Por intervenção do anjo da guarda do miúdo, nada lhe aconteceu, mas o Galo Cego acabou preso, obviamente.
Já na cadeia, foi entrevistado por um repórter que questionava o que se tinha passado. E então, para surpresa do entrevistador e da audiência, ouviu-se a uma catadupa de ideias desconexas, apenas muito sutilmente ligadas umas às outras. Ainda assim, o seu autor tinha uma dicção bastante boa e falava com clareza, exibindo uma boa pronúncia das palavras. Obviamente, os humoristas não resistiram àquelas loucuras, como dizer que tinha um corpo "estadual, legal e bonito", ou quando disse que "eu não se posso ser ameaçado".
Depois dessa primeira entrevista, que obviamente tornou-se um imenso sucesso popular, seguiu-se uma segunda, mais ou menos no mesmo tom, com a diferença que teve por objetivo singular, desta vez, expor ainda mais o Galo Cego e gozar com a cara dele. O repórter, que aqui esteve mal, pois também aproveitou-se, tal qual os humoristas, da deficiência mental e moral do Galo Cego, ofereceu-lhe R$ 5,00 e perguntou-lhe o que iria fazer com o dinheiro. A resposta do homem foi das partes mais exploradas: "vou comprar alimento."
Não sei quantas manifestações doentias diferentes estão reunidas nesses episódios, em que o mendigo, não sendo inocente, tem a vantagem de ao menos não ter explorado as fragilidades de ninguém, foi antes a vítima desse comportamento deplorável.
Restou no meu imaginário, no entanto, aquele liame sutil entre a loucura e a verdade do seu discurso, entregue com clareza nas unidades semânticas e completa confusão na sintaxe.
Esse distúrbio, num certo sentido, assemelha-se ao de muitos Galos Cegos que andam por aí, tentando convencer as pessoas usando de formas agradáveis e simpáticas ou, como se tem dito mais recentemente, com "prudência e sofisticação". No entanto, o seu discurso não tem fundamento na verdade, ou preocupação de fidelidade com o que é real, induzindo, com culpa ou dolo, em erro.
Há poucas coisas que me provocam mais asco que a manipulação ardilosa das palavras, sobretudo se são signos de grandes conceitos, como é o caso da prudência. Assim, a dissonância cognitiva desses Galos Cegos merece um forte repúdio: como na oração de São Bento, devemos aconselhar o dragão, neste caso, o galo, a beber ele mesmo do seu veneno.
Fico a pensar que o mesmo prazer maldoso em rir-se da deficiência mental de um mendigo é irmão da ignorância em identificar a loucura (embora, de outro tipo) nas palavras desses Galos Cegos "prudentes e sofisticados".
Desde presunções absurdas, consolidadas na reafirmação pelos pares de premissas falsas, os Galos Cegos vão mais longe e, como arautos da salvação da humanidade, pretendem ridicularizar todo aquele que contrarie a sua cartilha de ilusões.
Por fim, quando são confrontados com a falsidade das suas alegações, não se dão ao trabalho de contra-argumentar com a razão, recorrendo a falácias de vários tipos (apelo ao ridículo, comparação, autoridade, lei das médias, etc.) para não ter de reconhecer o que está diante dos seus olhos e que ameaça a imagem que tem de si mesmos: a verdade.
Feridos na sua vaidade, vão reunir os outros galináceos congéneres para rebelarem-se contra a realidade e tentarem perceber juntos como tanta gente pode defender a verdade e querer usar da razão para apurar a percepção do real, em detrimento do seu discurso que promete nos levar a todos para o mundo dos sonhos. Na sua ilusão, se a realidade afronta o futuro prometido, ela tem de ser mudada, não importa a que custo, não importa o que se tenha de destruir, reservando para si a infundada autoridade moral de saber qual é o futuro prometido e de fazer o cálculo de proveito que justifica os sacrifícios para (supostamente) lá chegarmos.
Como a alcunha já sugere, estão todos cegos, sem dúvida alguma. E curá-los dessa cegueira exige um remédio amargo para os Galos Cegos: a humildade de reconhecer seus equívocos. Mas como para eles baixar a crista é morrer, o caminho da salvação lhes está fechado.
Enclausurados no seu discurso, rodeados de convenções inconsistentes validadas pelos pares (também eles, corrompidos na tarefa de validar), resta no fundo de seu espírito um grito bestial.
Sufocados, oprimidos, vexados pela humilhação do seu ego, vão desferir um golpe covarde quando o seu suposto agressor lhes der as costas.
Assim como o nosso mendigo paranaense, os outros Galos Cegos também "não se podem ser ameaçados".