sexta-feira, abril 29, 2005

Mar imaginário

Não sei como é classificado esse tipo de pensamento, não acho que seja um momento a acontecer, até porque é fantástico demais, nem acho que seja um sonho, já que tou acordado... mas a imagem de um grande e aberto mar, que se comunica comigo, à altura da minha cintura, aparece de vez em quando se me distraio um pouco.
Lembro-me vagamente de um sonho que tinha seguidas noites na adolescência que lembra muito esse pensamento inusitado sobre um mar que fala comigo em pensamento, como que em telepatia, mas era mais engraçado do que agora, esse mar antigo perguntava se as ondas ou sua temperatura estavam do meu gosto, ou se a cor da água era a que eu gostava, subserviente demais para ser um bom mar. Agora o mar faz outras perguntas, apesar de ter a mesma aparência do velho sonho.
Como que se chegasse à beira da janela do meu quarto para falar com um vizinho, ao pensamento surge um mar aberto a falar com o barulho das ondas. Conta dos navios que o atravessam, diz dos que engoliu no passado durante as tempestades, fala dos náufragos, que sempre que pode tenta constuiur correntes que os levem àlguma ilha, comenta sem sobressaltos que a tecnologia diminuiu o número embarcações de passageiros, que serve de rota para grandes cargeiros, navios de pesca, vez por outra um de turistas, um transatlântico colossal, ou no entanto um humilde aventureiro barco de pesca, procurando cardumes afastados da costa. Depois de um tempo, quando esgota as formalidades sobre a vida de ser mar, fala do abismo que guarda dentro de si, do grande e imenso volume de si mesmo que se rebate entre os pólos da terra sem razão sem proveito de nada, como se ser mar e correntes e rota de navios não fosse ser alguma coisa! Mas esse mar reclama de um sentido para trazer entre as suas ondas e seu chão escuro da profundeza abissal. Eu o consolo um pouco, convido pra entrar, tomar conhaque, ouvir um samba antigo, comento as notícias aqui da terra firme, mas ele anda sempre tão triste e cabisbaixo que só as ressacas do início do outono para agitar um pouco o tédio e a angústia dos seus conflitos.
Disse uma vez que se fosse mar, iria me divertir com a gravidade da lua em relação à terra, que ser puxado por um astro celeste para sumir um pouco numa costa e transbordar noutra seria algo muito interessante, basta pensar nas milhares e milhares, milhões de toneladas de água transportadas de um lado a outro, beijando uma terra, recolhendo-se, beijando outra, voltando, um mar sempre sociável, sempre presente, sempre imenso e sempre útil para servir de símbolo de bom horizonte, de sonho a alcançar, que ser mar é justamente ser algo a se perseguir, ser algo a se alcançar, e se era esse o seu destino, que o fizesse valer de uma vez por todas, que ser mar era muito bom e se faltava algo no imenso e triste vazio do seus sentimentos, era talvez a consciência de ser mar.
Eu me dou conta do absurdo desse diálogo às vezes, na verdade estende-se sempre e apenas até os lamentos marítimos, os meus consolos e idéias dele não partilho nunca, ou partilho envergonhado, sem muita satisfação de convencê-lo de nada...
Aprecio o cheiro e a luz das águas tristes, tristes de não se conformar, de esperar alguma surpresa pra convencê-lo que dentro de si há correntes animadas, cheias de uma alma de motivos e aventuras, que o grande destino de receber os rios da terra e renovar-se e tornar-se maior, como que com essa porção de água doce um pouco de nós que vivemos na terra, e se um dia será mesmo um crime submergir Veneza pela elevação do seu nível, tanto melhor é para o mar, que se acha vazio, mas recebe na sua imensidão os nossos pensamentos, esperanças e motivos secretos.

terça-feira, abril 26, 2005

O coração em segredo

Minha prima Lívia me lembrou que não quer ter ainda um namorado, que não vai em festas à procura de um e que não acha que seja a hora. Ela tem 15 anos. Se a vida pode ser realmente algo a se lamentar, algo que me aborrece, ela o é quando me dou conta do quanto estou longe das pessoas que estimo: dor negra e inexprimível, mas deixemos essa mágoa um pouco de lado.
Acontece que sugeri que ela se apaixonasse por rapazes que têm o coração em segredo, expliquei que esses rapazes, se não tiverem um bom amor nessa idade, tornam-se muito covardes e vingativos do gênero feminino, justamente porque estão dispostos a amar muito e sinceramente, mas quase nunca tem sucesso, na verdade não são entendidos. Crescem com uma mágoa grande e na sua vida desgraçada só encontram prazer se puderem magoar, como se achassem que distribuindo mal ficariam com menos para si do que receberam, mas não é assim.
Como adolescente que é, descobridora do mal de ver tudo de um só jeito, tendo descoberto as mentiras da infância, diz que não, que nem sempre é assim e emenda sua boa de que 'toda generelização é um erro', doce priminha. Disse que generalizar é útil para evitar discussões cheias de evasivas tolas, mas o melhor mesmo foi ter argumentado que 'corações em segredo estão dispostos a se expor, mas somente uma vez na vida' e assim consegui sua atenção.
Chega a ser curioso como isso de conseguir a atenção dos outros é questão de manejar as palavras, não que me traga satisfação manipular minha prima, mas é precisamente o fato de que alguns argumentos são mais aprasíveis que outros, enfim, é a grande dialética dos adolescentes que se tem de driblar às vezes!
Falei das boas horas em que esses rapazes passam na mais absoluta solidão querendo para si um amor que valha a sua imaginação, tanto mais folclórico e cheio de fantasia quanto a cabeça de um rapaz de 15 anos que realmente queira um, assim mesmo um amor bem perto do impossível, mas talvez por conhecer muito bem minha prima, sabia com alguam tranqüilidade que ela poderia dar um amor folclórico e cheio de fantasia e talvez ao menos um rapaz fosse salvo da sina da adolescência de decepções e provas de masculinidade à custa do sangue de outras moças.
Com grande doçura e suavidade, expliquei o processo que conhecia sobre amar uma menina, falei até do que senti da primeira vez e fui tão sincero e tão preciso que impressionei a minha prima, mas ela não ficou mais impressionada que eu mesmo com aquela inscursão à intimidade do envolvimento amoroso, com descrições engraçadas de beijos, flertes e encontros marcados com amigos e a tal pessoa.
Acho que podemos chegar ao concenso de que, quando chegar a hora, Lívia terá um namorado com o coração em segredo para ela, acho mesmo que ela não se apaixonaria por outro tipo de rapaz. Só mesmo a surpresa de descubrir-se apaixonado fascina uma mocinha tão cheia de romantismo justificado como ela, só mesmo a vergonha de amar de repente e não ter medo poderia levantar-lhe além do chão para a camada atmosférica onde os olhos brilham mais e as razões ganham nova projeção, seja lá de que forem.
Que o felizardo tenha paciência, minha prima tem só 15 anos e acha que ainda não é hora de namorar.

segunda-feira, abril 25, 2005

Vida submarina

Os peixes tem uma vida breve e arriscada em geral. Vê bem como um peixinho tem chances de morrer comido por outro maior, por uma baleia ou qualquer bicho dos mares que precisa comer dezenas de quilos de peixes por dia! Imagina então se não viver no litoral do Brasil (que é mais que sub-aproveitado para pesca) e der o azar de nascer no do Japão ou do Chile: vai parar num restaurante sem nem mesmo ter crescido o suficiente... Mas em compensação à essa vida de ser caça dos pequenos peixes do oceano, há duas compensações que penso serem sublimes: a liberdade de nadar pra outros rumos quando a temperatura muda e a grande paz de silêncios que há no mundo submarino.
Sem dúvida adoraria ir para o norte quando chega o inverno aqui. Todos os dias terríveis de secura e frio passo imaginando o maravilhoso verão que os do norte aproveitam! Em compensação, no nosso verão, desejava ir mais para o sul, para aproveitar a amenidade do verão às altas latitudes do hemisfério sul. Mas das duas vantagens, essa primeira pode ser contornada se houver férias de 3 meses e algum dinheiro para pagar a mordomia, a segunda vantagem é que me seduz, sem dúvida alguma, a paz silenciosa do fundo do mar.
Envolve-me nos momentos de atordoamento sonoro o desejo absurdo daquela imensidade de água sem som, da grandissíssima paz que reina entre os cardumes a vagar com as correntes adoráveis, em meio à luz que vem de cima e dá cores ao mundo silencioso. Desejo imenso o que tenho de ser peixe nessa hora! Sem mais buzinas, nem vozes estúpidas, nem reclamações, nem fofocas, nem mesquinharias, nem promiscuidade sonora aos indefesos ouvidos de quem não pode escolher não ouvir (aqui talvez a única vantagem dos surdos que escutam com aparelhos auditivos: a glória de poder desligá-los). O bom peixinho cumpre sua parte no cardume que vaga pelas correntes marinhas, indo e vindo atrás de alimento, fugindo de algum predador eventual, colorindo com suas escamas multicor o cenário para poucos e bons e tudo isso sem escutar quase nada!
Tenho que confessar que não sei da audição dos peixes, mas deve haver alguma. Sei também que vibrações sonoras viajam bem em meio aquoso e com velocidade superior à propagação no ar! Imaginem as comunicações entre as baleias, ou entre golfinhos ou focas! Tomara que os peixes sejam mesmo um pouco surdos! Ainda sim tem o consolo de não identificar o significado dessas ondas sonoras que vez ou outra lhes perpassam os frágeis corpos ao insabido destino.
Nós entretanto, convivemos com animais menos discretos que as baleias, golfinhos ou focas e o estímulo sonoro é um dos favoritos dos nossos convivas sonoramente indiscretos. Não é preciso lembrar aos leitores sobre os rapazes que instalam amplificadores no porta-malas dos carros para que num raio de 3 quilômetros todos saibam do seu péssimo gosto musical - péssimo sim, porque ninguém que tenha carro com esses equipamentos coloca samba antigo para ser ouvido. Talvez também falte lembrar das empresas que fazem 'homenagens' com declarações no meio da rua, por aniversário ou outra coisa assim, uma grande falta de vergonha na cara isso, já que os transeuntes não conhecem a moça e sinceramente não se importam se é seu aniversário de casamento ou não, querem continuar indo ao trabalho, voltando do almoço, indo ao hospital, voltando da casa da namorada, sempre com pensamentos pessoais e suas vidas a tratar, de modo que esse silêncio nos caminhos entre os lugares é praticamente sagrado! Por fim, falta falar do trânsito, que é o ordinário, mas acho que todos entendem bem sobre isso: sempre os impacientes e mal-educados a afundar os punhos na buzinha para tentar apressar os outros, e o mais curioso é que essa fúria é endêmica - ao ouvir um buzinando, os outros acham que podem, ou são mesmo estimulados, ou ainda ficam chateados com aquilo e resolvem avacalhar a coisa toda...
Sorte tem os peixinhos na sua vida submarina, escutando apenas o trânsito das ondas sonoras das baleias, golfinhos e assemelhadas a falar uma língua que não percebem e o suficiente apenas para lembrar-lhes do precioso silêncio de que dispõe quase todo o tempo.

segunda-feira, abril 18, 2005

A história dos nossos males

Mais de uma vez procurou-se achar motivo no que leva um homem sensato ao crime. Divagou-se sobre os desejos reprimidos, sobre a grande força do inacessível a atraí-lo ao ambiente do submundo, onde vivem os tipos que se ocupam das práticas maldosas, intuiu-se que sua vida seria monótona e um crime perturbaria seu tédio e poliria seu orgulho, como os engraxates de profissão nas estações polem os sapatos. Mas o fato é que nada disso é fato.
Fato é que nenhum homem é igual ao outro, assim, levantar hipóteses sobre as razões que levam homens de bem ao crime é como procurar semelhança entre iguais, ou seja, não levam muito longe e não são conclusivas de nada porque cada qual tem particularidades que sobrepõe a aparência de uma classificação.
As particularidades são mesmo essenciais à personalidade e, essa sim, é decisiva para o cometimento dos crimes e não a classe social ou a intuição sobre o tédio dos intelectuais abastados.
Mata-se por ódio ou outra paixão num momento de fúria, mata-se por medo quando num assalto o ladrão vê-se ameaçado, por profissão, como os militares numa guerra ou os carrascos dos países onde se aplica a pena de morte, os outros crimes seguem os mesmos pressupostos com algumas variações de acordo com a ilicitude. Rouba-se por ganância, vingança, necessidade... seduz-se por solidão, vergonha da solidão! Por razões que impúdicas. Injuria-se por orgulho ferido, calunia-se por gana de vencer uma disputa... não há crimes sem que hajam sentimentos, e também os homens de bem criminosos cometem os seus com o coração cheio de sentimento, sempre maus, é verdade, mas cheio de sentimento.
O crime suja suas mãos, entretanto, e de mãos sujas dividem-se os homens de bem. Alguns deles sentem a culpa por ter feito o mal, outros vangloriam-se intimamente e festejam com a cara fechada, estes últimos dissimuladores fantásticos, afinal as artes dramáticas perdem sempre grandes talentos!
O remorso pelo crime é o primeiro e mais forte traço de moral cristã, nele está presente a compaixão e ao mesmo tempo a vergonha. Agora temos um homem que consumou uma paixão ou outro sentimento menos forte para consumar um crime e, depois de cometido, arrependeu-se de algum modo, vive portanto um conflito, um sofrimento que a pena do Estado só aumenta. Provavelmente esse remorso será suficente para desencorajar outro crime, mas pode ser também que o tempo o apague, como tenazmente faz com tantos sentimentos brutos: amolece-os e depois os deixa ao vento para desaparecer como se não tivessem nunca havido! Divagações, meus caros, tudo o que quis evitar!
Fato é que há aqueles, portanto, que ao menos secretamente fazem festa de seus crimes! Orgulham-se da ousadia, congratulam-se intimamente pelo sucesso de seu propósito, enchem-se de uma alegria negra ao ver humilhada a vítima e de todo drama que provocam não sobra nenhum remorso! Esses, amigos meus, são muitos e são os mais crueis dos criminosos.
Pois digo, afinal, que essa multidão de dissimulados criminosos, com sua intacta e fresca máscara de homens de bem, homens que apartam as mãos uns dos outros! Esses sim escrevem a grande história dos nossos males. Digo isso porque tenho a duvidosa virtude de reconhecer-lhes pelo sorriso e a grande angústia de não poder desmascará-los! Digo isso porque dos abismos do céu despeja-se sobre a terra um rio caudaloso e contínuo composto pelos gritos de suas vítimas e o relatório de seus crimes encheriam mais que todas as bibliotecas do mundo, mesmo que versassem sobre apenas um dia de sua asquerosa labuta.
Entretanto eles continuam andando entre nós. Não, queridos amigos, eles não tem gorros pretos, roupas puídas, barba por fazer e fala rouca, nem tampouco frequentam o centro da cidade de madrugada ou abordam as mocinhas em esquinas escuras. Eles andam em carros que custam mais caro que a casa da maioria de vocês! Vestem ternos finos, almoçam nos restaurantes mais concorridos, bebem do melhor vinho e tem a cortesia das arrumadeiras de quarto e dos gerentes de hotel!
Esses homens elegantes é que cravam os punhais nos corações, arrebentam os vidros dos carros, gritam, ameaçam e castigam o mundo. É dessa gente má que temos de nos livrar.

segunda-feira, abril 11, 2005

Contradizendo-se

Surpreendi meu primo beijando a namorada na sala do seu apartamento. Na hora tinha mesmo que falar com ele, apesar de me recriminar agora por ter feito aquilo. Envolvia o pescoco da moca com o braço direito beijava devagar o canto de sua boca e ela sorria porque a pouca barba de adolescente fazia cócegas no seu rosto leve e fresco. Ria mesmo como criancinha, como se sentisse vergonha e só não o irritava porque ele estava completamente envolvido na mocinha, o cheiro, o tato da pele, o riso pela barba, daí cortei abruptamente o beijo deles - que linda cena! O Fernão tá nos esperando lá em baixo, bora!
A namorada dele me olhou com uma surpresa e depois com um desgosto que só tinha visto naqueles vídeos reais da segunda guerra quando separavam as familias nos campos de concentração!
De todo jeito, fomos jogar bola naquele sábado, para relaxar e brincar um pouco. Todos viam que meu primo estava completamente apaixonado, era flagrante e tão transparente quanto a luz dos seus olhos azuis, motivo pelo qual recebeu uma boa gozação dos primos e amigos. Primeiro quis fingir que não, mostrando um pouco de receio, mas depois, brincando e dizendo a verdade ao mesmo tempo, elogiou o beijo e o sorriso, acrescentando a infalível máxima machista - e é tudo meu! - inseguro para que continuassem a pilhéria.
Ser homem é parecer forte! Pois que idéia estúpida! Como se desprezo e arrogância fossem força... mas não sou o juiz da conduta de ninguém além da minha própria e por isso sosseguei, mas que bobagem se deixar intimidar quanto ao que sente porque meia dúzia de priminhos zombeteiros estão por perto! Vai saber... uns dizem que é da idade, mas covardia não tem idade, mas não sei por que não conheço velhos covardes, todos que conheço gostam de cantar alguma vantagem e não se importam nem um pouco com que os outro dizem deles ou com o que vão pensar. Claro, é preciso haver um pouco de noção sobre a origem e a finalidade de tudo, afinal, expor os próprios sentimentos é matéria delicadíssima e quando brinca-se com os sentimentos de alguém, brinca-se com uma coisa que tem valor e muito! Mas é justamente por ser difícil e delicado, que nessa hora o rapaz tem que assumir mesmo se é romântico ao invez de vestir a confortável carapuça de cafajeste e dizer o que é seu ou o que não é.
Voltamos para casa e meu primo ansioso, sem confessar essa condição, para resolver o problema com a namorada, afinal não tinha avisado do jogo e a deixou com cara fechada. Um cheiro inebriante de milho cozido na cozinha da casa de nossa avó e o rapaz suado indo ao telefone de casa e disparando que tinha se esquecido do jogo, mas que não podia deixar de ir, que era circunstancial, que issos, que aquilos, que agora se sentia estúpido... cansado de ouvir aquilo fui pra minha casa tomar banho e depois saí pra rua.
Encontrei os dois de novo, perto do jardim municipal, encostados num banco, ennganchados, meu primo com as costas na parede e as pernas abertas e a namorada agarrando seu pescoço no beijo, tanto mais junto quanto a física permite.

terça-feira, abril 05, 2005

Porres e surras bem dadas

Olhares se cruzam num momento, uma se retrái em culpa e medo, outro se agiganta em cólera e desespero. Um toma o suspiro que alimenta o corpo para o ataque, outra franze a testa e encolhe os membros do corpo. Um desfecha a brutalidade de sua covardia, outra recebe no rosto essas toneladas de ciúme numa bofetada. Uma no chão humilhada com os cabelos na cara, outro vociferando sobre a vítima a ressaca de sua onda de músculos.
Todos se aborrecem, alguns seguram o macho escandaloso, outras levantam a fêmea ruborizada. Fim de festa, todos para casa.
Um café para a moça, uma conversa sobre frivolidades... o tal do amor no centro do mundo e das tragédias de novo, a madrugada para silenciar os eventuais deboches dos comerciantes.
No dia seguinte à raiva sucede o remorso, o rapaz pede perdão à moça, a moça perdoa o rapaz depois do seu pedido de perdão, beijam-se, consolam-se.
O mar retoma sua forma, a normalidade acalma-se, assentam os suspiros de receio. Ponho as mãos nos bolsos e violentamente serro os punhos como se segurasse meu corpo sem chão para pisar, como que devolvendo a hostilidade do mundo mas contra mim mesmo e não contra o mundo.
O que pode haver de mais covarde que bater numa mulher? Fico me perguntado às vezes... talvez seja justmente mentir-lhe sorrindo! E talvez o máximo de tudo seja bater-lhe para depois mentir-lhe!
Não vamos colocar aqui todos os fatos como incriminadores de um perverso violentador de moças, nem por isso... Um meninão inseguro de perder seu brinquedo bonito, uma menina romântica precisando de alguém a dizer-lhe que ama.
Os ciúmes tomaram todo seu corpo no exato momento em que a namorada sorria o sorriso que achava só seu para um amigo que bêbado pedia um beijo. O estopim foi que a moça deu o beijo, no rosto, é verdade, mas bastou para a insegurança do amor que ela lhe tinha, mas foi bem aquém do imenso amor, ou vaidade, sabe-se lá, que ele tem pela namorada... Tapas para a moça, gritos, murros bem dados no amigo bêbado. Feita sua justiça, viu que todos lhe viraram as costas em desaprovação, entendeu seu excesso, entrou no seu carro e foi embora. A moça foi erguida, consolada pelos amigos, chingou o namorado, que não queria mais vê-lo, que iria procurar uma delegacia, que não era um animal para ser ofendido e maltratado, mas uma linda mocinha loira de olhos azuis! Também ela, morta de medo e aflição quanto ao fim que aquilo tudo tomaria, tão dependente do seu rapaz impulsivo e estúpido quanto ele da sua fragilidade e carência.
Precisei contar duas vezes, a moça vai precisar viver mais quantas?

sexta-feira, abril 01, 2005

Amar até o fim

Como que um eco que ecoou em outra sala, soube da morte do marido de minha tia Petinha, uma mulher obesa e extremamente carinhosa que quando eu era criança, em seu colo, declarou que queria morar na covinha que há no meu queixo partido, enquanto acariciava meu rosto de infante.
Da convivência familiar, infelizmente sempre fugaz por ser uma tia distante, (mas nem por isso indiferente) restara essas memórias adocicadas, carinhosas, meigas e ternurentas que motivaram meu telefonema de pêsames, algo que uma obrigação sentimental impunha dolorosamente, mas quem perde quem ama sabe o quão reconfortante é receber as dores de outros, como que numa declaração de que toda aquela angústia justifica-se perfeitamente, morreu alguém que não devia, mas na prática é apenas um cumprimento.
Minha intenção, obviamente, era consolá-la de algum modo e assim disse que lamentava, que não fui ao enterro por morar muito longe deles, que de certo a doença o tinha tomado e enfim descansara com a morte. Minha tia escutava tudo inerte no estado de zumbi que sobra às viúvas e às mães dos que acabaram de morrer. Enfim, agradeceu, perguntou por mim, se estava bem, o trabalho como andava e meu coração encheu-se de um amor tão grande e tão secreto em mim que chorei baixinho sem deixá-la perceber, imaginando a grandiosidade daquele coração que tendo já morto o marido e doente a mãe sobrava abnegação da desgraçada situação pra perguntar por um sobrinho com quem não falava a anos com um tom tão maternal e amigo!
Resovi então não terminar o telefona, contei-lhe da formatura, do meu trabalho, dos meus amigos, falei dos livros, ainda dos sonhos e acho que por um instante ela sorriu do outro lado da linha ao encher bem rápido os pulmões de ar no seu risinho sonoro e discreto, minha tia, minha tia querida... tão amorosa.
Enfim, falou-me dos filhos, do que dá aulas na universidade, do que foi para a Alemanha fazer o curso de doutorado, da que trabalha numa loja de roupas, da que está no meio da faculdade, dos que andam sem rumo pela vida não fosse o amor incondicional daquela matrona a unir toda essa gente numa família. Relembrou então os esforços do marido, enterneceu, ruborizou a voz, que no som eletrificante da chamada soou mais humana que qualquer outra ouvida através de um aparelho telefônico: '... pois meu amor morreu, e estou aqui em casa, querido, a olhar o guarda-roupa com os ternos, as camisas, os sapatos... no banheiro o barbeador... pra quem? pra quem usar? meu Deus... onde foi?' Emocionei-me muito, mas não chorei de novo, é preciso ser forte. Se os homens ficarem choramingando, quem apoiará a tristeza das mulheres? Não, força meu rapaz, console sua tia, foi a ordem que recebi de algum canto do pensamento. 'Olha que tudo passa, minha tia, o fato é que os filhos ainda estão aqui, que linda família vocês formaram! Que lar cheio de alegria! Então foi em vão? Pois nós estamos vivos, e os mortos não sorriem, tanto mais com a nossa tristeza...' E tentando consolar com esses clichês cansados, que ao sair da boca já me irritavam, mas não conseguia ver outro caminho, fui tendo dela algumas reações, suspiros fundos e disse por fim 'Chega de chorar'. Sua mãe também estava doente, e na perspectiva de sua alma generosa e desprendida, não tinha o luxo de ficar sofrendo, alguém que amava precisava dela.
Desejou-me felicidades, agradeceu a ligação e dando "um beijo na minha covinha", sorriu enfim, lembrando-se desse nosso poderoso laço. Eu desejei-lhe paz, tranqüilidade e fé que tudo se acertava, que ela amava muito e sem nenhum interesse e que Deus não ignoraria jamais esse fato. Então ela disse aquelas últimas palavras que desde o preciso instante que entraram pelos meus ouvidos não fazem senão passear por todos os pensamentos: "sim, meu anjo, eu amei muito".