Como que um eco que ecoou em outra sala, soube da morte do marido de minha tia Petinha, uma mulher obesa e extremamente carinhosa que quando eu era criança, em seu colo, declarou que queria morar na covinha que há no meu queixo partido, enquanto acariciava meu rosto de infante.
Da convivência familiar, infelizmente sempre fugaz por ser uma tia distante, (mas nem por isso indiferente) restara essas memórias adocicadas, carinhosas, meigas e ternurentas que motivaram meu telefonema de pêsames, algo que uma obrigação sentimental impunha dolorosamente, mas quem perde quem ama sabe o quão reconfortante é receber as dores de outros, como que numa declaração de que toda aquela angústia justifica-se perfeitamente, morreu alguém que não devia, mas na prática é apenas um cumprimento.
Minha intenção, obviamente, era consolá-la de algum modo e assim disse que lamentava, que não fui ao enterro por morar muito longe deles, que de certo a doença o tinha tomado e enfim descansara com a morte. Minha tia escutava tudo inerte no estado de zumbi que sobra às viúvas e às mães dos que acabaram de morrer. Enfim, agradeceu, perguntou por mim, se estava bem, o trabalho como andava e meu coração encheu-se de um amor tão grande e tão secreto em mim que chorei baixinho sem deixá-la perceber, imaginando a grandiosidade daquele coração que tendo já morto o marido e doente a mãe sobrava abnegação da desgraçada situação pra perguntar por um sobrinho com quem não falava a anos com um tom tão maternal e amigo!
Resovi então não terminar o telefona, contei-lhe da formatura, do meu trabalho, dos meus amigos, falei dos livros, ainda dos sonhos e acho que por um instante ela sorriu do outro lado da linha ao encher bem rápido os pulmões de ar no seu risinho sonoro e discreto, minha tia, minha tia querida... tão amorosa.
Enfim, falou-me dos filhos, do que dá aulas na universidade, do que foi para a Alemanha fazer o curso de doutorado, da que trabalha numa loja de roupas, da que está no meio da faculdade, dos que andam sem rumo pela vida não fosse o amor incondicional daquela matrona a unir toda essa gente numa família. Relembrou então os esforços do marido, enterneceu, ruborizou a voz, que no som eletrificante da chamada soou mais humana que qualquer outra ouvida através de um aparelho telefônico: '... pois meu amor morreu, e estou aqui em casa, querido, a olhar o guarda-roupa com os ternos, as camisas, os sapatos... no banheiro o barbeador... pra quem? pra quem usar? meu Deus... onde foi?' Emocionei-me muito, mas não chorei de novo, é preciso ser forte. Se os homens ficarem choramingando, quem apoiará a tristeza das mulheres? Não, força meu rapaz, console sua tia, foi a ordem que recebi de algum canto do pensamento. 'Olha que tudo passa, minha tia, o fato é que os filhos ainda estão aqui, que linda família vocês formaram! Que lar cheio de alegria! Então foi em vão? Pois nós estamos vivos, e os mortos não sorriem, tanto mais com a nossa tristeza...' E tentando consolar com esses clichês cansados, que ao sair da boca já me irritavam, mas não conseguia ver outro caminho, fui tendo dela algumas reações, suspiros fundos e disse por fim 'Chega de chorar'. Sua mãe também estava doente, e na perspectiva de sua alma generosa e desprendida, não tinha o luxo de ficar sofrendo, alguém que amava precisava dela.
Desejou-me felicidades, agradeceu a ligação e dando "um beijo na minha covinha", sorriu enfim, lembrando-se desse nosso poderoso laço. Eu desejei-lhe paz, tranqüilidade e fé que tudo se acertava, que ela amava muito e sem nenhum interesse e que Deus não ignoraria jamais esse fato. Então ela disse aquelas últimas palavras que desde o preciso instante que entraram pelos meus ouvidos não fazem senão passear por todos os pensamentos: "sim, meu anjo, eu amei muito".