Um ano que se vai é como um trabalho que se termina: seu começo, seu desenvolver e o seu concluir parecem unidos sob o mesmo véu que, uma vez levantado no dia 31 de Dezembro, deixa à mostra o que significou a vida naquele espaço de tempo: os projectos, os sonhos e perspectivas, as incertezas que agora se confirmaram para o bem e para o mal.
Dentre outras coisas, vou me lembrar sempre de 2008 pelo lançamento do primeiro disco solo de Marcelo Camelo, dos Los Hermanos. O "Sou" é um bocado inclassificável, mas há ali bossa nova, pop rock, marchinha de carnaval e o gênero "um banquinho e um violão" de MPB.
Numa das faixas do disco, logo ouvi uma vozinha feminina que me chamou muito a atenção: era bem afinada, corajosa (lembra até a Amália na coragem de imposição da voz) e infinitamente doce. O nome da moça é Mallu Magalhães e embora eu nunca tivesse antes ouvido falar dela, rapidamente passou a fazer parte das colectâneas que ando a escutar e em muito contribui para a alegria deste rapaz.
O convite do Marcelo para que a Mallu participasse do seu disco reverteu, como foi o meu caso, no encontro de quem gosta dos Los Hermanos com essa moça, mas mais que isso, penso eu, resultou, um pouco mais à frente, no romance dela com o barbudo.
O detalhe que os poderia afastar é que a moça tem 16 anos completados há pouco e o senhor Camelo já caminha para os seus 31. No coração, no entanto, são muito próximos... como ambos compõe o que cantam, é possível ter uma idéia de como pensam e as coisas convertem para os mesmos lados, assim como se converteram seus abraços.
Duvido muito que o Marcelo esperasse por algo assim. Grande romântico que é, o Camelo é dos que já viveram essas cenas amorosas mais intensamente e assim costumam vestir luvas antes de tocar alguém. A Mallu, entretanto, é a própria simplicidade, senso de atitute e beleza, é a musa do poeta, pequena e incorrompida, e por isso mesmo há ali aquela reciprocidade que faz as coisas darem certo, pois como bem dizia o nosso Vinicius de Moraes, nós não fazemos amigos [ou amores], mas sim reconhecemo-los.
2008 para mim foi isso: o acaso inesperado, a beleza da vida a se desenhar com o passar dos dias, a fortuna que é reservada aos que procuram ventura, mais que aventura e confiam que estarão preparados para o que quer que venha.
Nessa perspectiva e por estar contraído de frio, (pois escrevo de frente para a janela aberta do quarto, a tirar proveito da linda vista), sobe pelas entranhas o desejo do verão do ano que vem, numa sanha tão doida que só pode ser explicada pelo conforto de vestir roupas mais leves, de ver mais cores, de estar mais à vontade pelas ruas, entre outras múltiplas e quentes vantagens.
O inverno tem seu charme (menor que o do outono, de certeza), mas nos priva de muita coisa, diria até que é uma estação menos sociável, não favorece muito os convívios, senão indirectamente (é a época que se encontram nos supermercados as cervejas pretas ou stouts, que embora não sejam como as britânicas já são melhores que o resto).
A esse desejo dos dias quentes, soma-se saber o quão ensolarada anda a linda América do Sul, seus vales e montanhas, rios e praias, suas cidades e aldeias, inundadas de sol, calor e boas promessas: o sul americano é um optimista por natureza e para esse espírito contribui muito a fartura de beleza e calor que o circunda por toda a vida. Ademais, diga-se que os últimos três verões desse que vos escreve foram tipicamente ingleses: nebulosos, cheios de chuva e malogrados dias de sol.
Há uma fome de calor, de sorriso, de bem-estar, de respirar fundo, há mais que tudo a esperança na renovação de tudo de belo que envolve a vida, os amigos, os lugares, a fé, o ideal, as lutas.
Lembro-me ainda vivamente do soturno Finsbury Park no inverno, as caveiras saltadas para junto do pêlo dos esquilos, as folhas apodrecidas na calçada, assim como dos fogos junto ao rio Tâmisa na noite de fim de ano, quando aquele milhão e tal de pessoas, originárias de todos os cantos do mundo, uniram-se num (mais ébrio do que fraterno) abraço à espera do que viria em seguida ao espetáculo pirotécnico. Nada mais substituiu as luzes do que o fumo. De tudo, resta no coração mais o caminho do que o destino.
O fumo a encobrir o horizonte do futuro parece o mesmo que aquele feito do queimar de roupas do falecido: de onde se acaba uma tarefa já adiante toma forma uma outra que, ano a ano, aprendi a chamar de "o verão do ano que vem".