Eis a frase escrita no paredão em frente à entrada do jardim botânico e já a envelhecer junto de todas as outras coisas que sofrem com o tempo: "Gepeto: faz para mim essa mulher".
Quem a escreveu não assinou e é melhor que seja assim, esse desejo que não se comunica a ninguém e que quando é feito, é feito no segredo do anonimato.
Quando o Gepeto fez o Pinóquio foi porque queria ter um filho. O velho marceneiro via os bambini a correr felizes pelas ruas e a ele a solidão de uma casa vazia. Depois de se esmerar e terminar o mais bonito de todos os bonecos de madeira já feitos, chorou frente a sua obra ao sentir no fundo da alma a sua miséria, e deu-lhe o nome de Pinóquio, lamentando-se que não fosse que um inanimado objecto.
No decorrer daquela noite que se seguiu, entretanto, coisas se passaram. Uma fada madrinha apareceu, a Fada Azul, e sensibilizada com as lágrimas do velhote, resolveu dar vida ao boneco. Com um toque da varinha mágica, Pinóquio veio à vida, falador e deslumbrado com tudo. A fada explicou-lhe que ele era filho de um homem muito bom chamado Gepeto e que deveria obedecer-lhe e ser um bom menino, do que o boneco concordou entusiasticamente, prometendo ainda que não iria nunca mentir, sob pena de ter o nariz espichado cada vez que o fizesse.
Na manhã seguinte Gepeto foi à oficina logo cedo e, para sua surpresa, Pinóquio estava vivo, a dar saltinhos animados e muito bem disposto. Uma grande alegria invadiu o coração do velho senhor, como a chegada de uma primavera por muito esperada, a vingar um desolador inverno que lhe deixara vincos no belo coração, mas que não o massacrara a ponto de virar-lhe para a maldade. Alegrou-se tão sinceramente como uma criança experimenta a alegria, sem dela suspeitar nenhuma ponta de futura mágoa. Pinóquio adorou seu paizinho, sempre lembrando de sua promessa à Fada Azul.
Logo surgiu na alma do boneco vivo, entretanto, um grande desejo de ser um menino de verdade - não mais andar descalço como se de sapatos estivesse, não mais olhos pintados crispados, mas sim carne macia e pele morna, cabelos ao vento e uma linguinha para sentir o sabor das coisas do mundo. Sim, o mundo. Pinóquio ia desenvolvendo uma gigantesca curiosidade sobre as coisas do mundo, a primeira fonte de seu triste fado. O velhote, entretanto, não tinha fantasias tolas a lhe tirar o foco da situação das coisas: estava feliz em não ser mais só e se o Pinóquio era só um boneco de madeira, pronto, tal importava pouco ou nada... o importante é que tinha saúde!
Vê-se que mais que vida ao boneco de madeira, a fada madrinha deu-lhe uma alma humana.
"Gepeto: faz para mim essa mulher", não é exactamente uma encomenda de uma mulher toda gira e bem disposta... (embora não haja nada de errado nisso). É, antes e com muito mais razão, o desejo de ter ao lado a que nos perceba completamente, a que mereça aquele amor mítico a que os poetas louvam como incondicional, coroado na amizade, ratificado pela intensidade recíproca, o único que enobrece a condição humana e da a ela sua verdadeira e mais bela razão de ser e existir.
Será que esse profundo nível de entrega é mesmo possível quando o ouro de tolo que nos é apresentado como valor maior (o fugaz, genérico e obtuso termo "felicidade" pode designar esse prémio) manda não dar muita atenção ao que lhe compromete?
Não consigo conceber nada a não ser essa profunda e incondicional fé no sentimento pela pessoa que se quer para estar conosco como digna de ser chamada "amor". Todo o resto são expressões menores ou simulacros dele, tentativas de corações perseverantes que vão por vezes perecer, ou um desporto mórbido praticado por tolos que gostam de mentir para os outros e para si mesmos.
Nesse nosso mundo de tão pouca fé, entretanto, ainda existem bons Gepetos a acreditar no amor verdadeiro. Umas inventivas e generosas pessoas que querem ir além de si mesmas e que deixam o mundo tão melhor do que era antes delas existirem.
Quanto aos mentirosos, embora não tenham o nariz na cara crescido para desmascarar seus falsos, têm na alma alguma coisa diminuída... Encarrega-se o tempo e as próprias circunstâncias da vida de dar-lhes a volta, dando-lhes miséria pela miséria que aos que neles confiaram deram, privando-lhes da grande alegria que é a participação da poesia na coragem no amor, relegando-os a uma vida sem nortes maiores que os pequenos fins egoísticos e plena de uma sólida e definitiva solidão.
Por isso, meus bons leitores, cuidadinho com isso de gostar de alguém: muito zelo, muita paixão e muita, mas mesmo muita coragem. Nada pelo que se vão arriscar na vida vale tanto.