Ela ligou-me às 23hs daquele fatídico dia. Com os músculos do braço cheios de ácido lático, do esforço repetido no ginásio, mais a cabeça trespassada pelas coisas do dia, cheguei a sua voz ao ouvido, que entrou desde as insuportáveis ondas eletromagnéticas do telefone: "Não devias deixar as coisas se arrastarem", disse para introduzir o seu discurso.
Talvez... mas o que não existe não pode ser arrastado, nem remexido, nem exaltado, e mesmo quando é recordado, só o-é porque tem alguma utilidade prática. O que resta mesmo, vamos lá dizer a verdade, é essa triste resistência em ver-se num mundo novo. Mas por quê?
A minha referência de dignidade na matéria nunca me permitiu voltar atrás e resistir às mudanças, por mais difíceis que fossem (e muitas têm sido ultimamente), e em homenagem a ela, sou flexível como uma barra de aço.
Quando terminei o curso e aceitei o meu primeiro trabalho tive de me mudar e deixar para trás a minha namorada... a minha primeira namorada. Mas não foi o trabalho que nos separou, foi a tristeza de me sentir eternamente exausto pela prudência impudica. Quando estivemos em Ouro Preto juntos, eu tentei mostrar-lhe o grafitti com a citação de Blake num tapume na Rua São José: "A prudência é uma donzelona rica e feia que habita a torre de incapacidade". Mas ela não viu, ou viu, mas não associou. Era um dos meus arroubos filosóficos... pensou. Não era, era um presságio de uma convicção que se estava formando há muito.
Os seus serenos afetos, a sua doçura e brandura incomparáveis foram para mim mais que amor, foram a própria humanidade finalmente encontrada. Não posso dizer que não recebera esses sentimentos da minha família, mas sou de uma raça fundamentalmente fria, não o posso negar, e tive o azar (ou a sorte) de trair a raça nisso. Foi com surpresa que descobri nela um doce e puro amor, e penso que ela também viu o mesmo em mim.
No entanto, eu era marcial nas posturas: punia a relutância com indiferença e o medo com desprezo. Logo, a minha ideia de devoção incondicional de que tanto me orgulhava foi sufocando, pouco a pouco, o amor por ela, ao ponto de só sobrar o convívio.
Ainda decorreram uns meses até que, num passeio ao parque Halfeld, eu acabei com aquilo. Incrédula, pediu-me uma razão, que eu articulei como pude. Dizer "já não gosto mais de ti" seria cruel e mentiroso, mas eu já não gostava do mesmo jeito, ou ao menos não da forma como se gosta de uma namorada. O amor não deve ser um suplício na identificação... já basta as agruras da vida, a tentar tirar-lhe lascas. Na identificação tem que ser por inteiro: admiração, respeito e desejo mútuos estão sempre lá.
O meu único consolo era o de que ela não se debateria muito: a vantagem em se fazer num monumento ao método e à razão é que eles substituem o conteúdo sentimental da vida até um certo ponto. Ela apaziguou-se com as justificativas: eu ia me embora e não faria sentido alongar o que já não andava bem.
Depois de muito tempo eu a vi de novo, num encontro de membros do nosso antigo clube de jovens. Sempre bonita e confiante, estava a meio do seu mestrado e namorava um conhecido meu. Davam-se muitíssimo bem. O tipo era funcionário público da universidade, acho que era assistente, e andava com um carro popular, mas muito digno. Lá estava ela, de braços dados com a vida que queria, sem qualquer mossa do relacionamento comigo... mas aquilo era só uma parte da história.
São fundos e caudalosos os rios que correm dentro de nós, as suas águas por vezes turvas de emoções reprimidas e desejos frustrados vão carregando por cima incautos passageiros nos seus barcos de veraneio.
Sem que o homem visse, ela apanhou na minha mão e olhou-me tão fundo dentro dos olhos que o meu coração gelou. Foram três segundos em que todos aqueles anos estiveram de volta em mim e o impacto da sua dor revelou-se, afinal.
Não me disse nada, e um minuto depois veio o seu namorado e foram-se embora os dois, e eu fui ter com os outros amigos. Foi a última vez que a vi, ou que falei com ela.