quarta-feira, abril 29, 2020

Perdoas-me? Então, como?


Ela ligou-me às 23hs daquele fatídico dia. Com os músculos do braço cheios de ácido lático, do esforço repetido no ginásio, mais a cabeça trespassada pelas coisas do dia, cheguei a sua voz ao ouvido, que entrou desde as insuportáveis ondas eletromagnéticas do telefone: "Não devias deixar as coisas se arrastarem", disse para introduzir o seu discurso.
Talvez... mas o que não existe não pode ser arrastado, nem remexido, nem exaltado, e mesmo quando é recordado, só o-é porque tem alguma utilidade prática. O que resta mesmo, vamos lá dizer a verdade, é essa triste resistência em ver-se num mundo novo. Mas por quê?
A minha referência de dignidade na matéria nunca me permitiu voltar atrás e resistir às mudanças, por mais difíceis que fossem (e muitas têm sido ultimamente), e em homenagem a ela, sou flexível como uma barra de aço.
Quando terminei o curso e aceitei o meu primeiro trabalho tive de me mudar e deixar para trás a minha namorada... a minha primeira namorada. Mas não foi o trabalho que nos separou, foi a tristeza de me sentir eternamente exausto pela prudência impudica. Quando estivemos em Ouro Preto juntos, eu tentei mostrar-lhe o grafitti com a citação de Blake num tapume na Rua São José: "A prudência é uma donzelona rica e feia que habita a torre de incapacidade". Mas ela não viu, ou viu, mas não associou. Era um dos meus arroubos filosóficos... pensou. Não era, era um presságio de uma convicção que se estava formando há muito.
Os seus serenos afetos, a sua doçura e brandura incomparáveis foram para mim mais que amor, foram a própria humanidade finalmente encontrada. Não posso dizer que não recebera esses sentimentos da minha família, mas sou de uma raça fundamentalmente fria, não o posso negar, e tive o azar (ou a sorte) de trair a raça nisso. Foi com surpresa que descobri nela um doce e puro amor, e penso que ela também viu o mesmo em mim.
No entanto, eu era marcial nas posturas: punia a relutância com indiferença e o medo com desprezo. Logo, a minha ideia de devoção incondicional de que tanto me orgulhava foi sufocando, pouco a pouco, o amor por ela, ao ponto de só sobrar o convívio.
Ainda decorreram uns meses até que, num passeio ao parque Halfeld, eu acabei com aquilo. Incrédula, pediu-me uma razão, que eu articulei como pude. Dizer "já não gosto mais de ti" seria cruel e mentiroso, mas eu já não gostava do mesmo jeito, ou ao menos não da forma como se gosta de uma namorada. O amor não deve ser um suplício na identificação... já basta as agruras da vida, a tentar tirar-lhe lascas. Na identificação tem que ser por inteiro: admiração, respeito e desejo mútuos estão sempre lá.
O meu único consolo era o de que ela não se debateria muito: a vantagem em se fazer num monumento ao método e à razão é que eles substituem o conteúdo sentimental da vida até um certo ponto. Ela apaziguou-se com as justificativas: eu ia me embora e não faria sentido alongar o que já não andava bem.
Depois de muito tempo eu a vi de novo, num encontro de membros do nosso antigo clube de jovens. Sempre bonita e confiante, estava a meio do seu mestrado e namorava um conhecido meu. Davam-se muitíssimo bem. O tipo era funcionário público da universidade, acho que era assistente, e andava com um carro popular, mas muito digno. Lá estava ela, de braços dados com a vida que queria, sem qualquer mossa do relacionamento comigo... mas aquilo era só uma parte da história.
São fundos e caudalosos os rios que correm dentro de nós, as suas águas por vezes turvas de emoções reprimidas e desejos frustrados vão carregando por cima incautos passageiros nos seus barcos de veraneio.
Sem que o homem visse, ela apanhou na minha mão e olhou-me tão fundo dentro dos olhos que o meu coração gelou. Foram três segundos em que todos aqueles anos estiveram de volta em mim e o impacto da sua dor revelou-se, afinal.
Não me disse nada, e um minuto depois veio o seu namorado e foram-se embora os dois, e eu fui ter com os outros amigos. Foi a última vez que a vi, ou que falei com ela.

terça-feira, abril 21, 2020

A gratidão é a memória do coração

O mestre com a palma aberta, um símbolo de generosidade

Luiz Gonzaga da Silva foi um professor de literatura nos cursos de letras e do ensino secundário da minha terra, para minha grande sorte. Morreu há mais de um ano, prova de que o reconhecimento só é mesmo devido quando se nos impõe como um chamamento maior, de uma natureza complexa: voluntário na sua externalidade e obrigatório no sentido de valor que faz despertar em nós.
Nunca foi clara para mim a razão pela qual um poeta conhecido, homem de profundo conhecimento, um intelectual rigoroso e exigente, já com mais de cinquenta anos de idade e num tempo que já há muito era professor do ensino superior, ainda dava aulas no ensino secundário. Talvez pelo afeto pela minha escola, talvez porque ficasse mesmo a dois passos da sua casa (também a faculdade era ali ao pé, bastava atravessar a rua e subir o morro). Facto é que na rudeza dos meus 15 anos tive o gosto de aprender com quem efetivamente sabia e se importava com a aprendizagem. 
Ensinou-me a contemplação silenciosa que merecem os grandes poemas, e a necessidade de verve para dizê-los na sua inteireza... ensinou-me que o drama e o êxtase de alegria são alegorias e que o grande enredo é o de uma vida que não ignore nenhum deles e ainda assim coloque-se acima deles.
Esse homem preciso, forte, pleno de convicções, que sabia dizer "eu amo-te" em tupi-guarani e que via nas unhas das raparigas suas alunas garras afiadas para arrancar o coração dos rapazinhos apaixonados (ele muito justamente nos prevenia...), deixou uma obra grandiosa, muito para além da sua sentida, simples e verdadeira obra poética.
A testar os meus próprios dotes poéticos contra a sua profunda sabedoria (o homem sabia os Lusíadas de cor, e recitava trechos imensos da Ilíada de Homero, embora esses sejam evidência da reverência de um saber verdadeiro muito mais relevante), apresentei-lhe um dia, depois da aula, um poema meu como sendo de Vinicius de Moraes. Perguntei-lhe de maneira indireta: "Senhor professor, acha que este poema de Vinicius faz alguma concessão ao modernismo, ou é a continuação do seu estilo próprio, sem deferências de estilo?". Ele apanhou a folha em que tinha o poema "copiado" e, depois de pôr os óculos de leitura e juntar o indicador e o polegar embaixo do nariz para sem seguida separá-los ao longo do seu pequeno bigode, disse-me: "Claramente ele teima aqui também em fazer deferências ao seu estilo próprio, embora seja um poema interessante". 
Obviamente que fiquei radiante, afinal, o meu grande mestre confundiu-me com o meu poeta de predileção, para mim, um dos grandes poetas de sempre. Pus-me a escrever com mais frequência, e a ler poesia ainda com mais interesse. Logo constituí uma coleção longa de papéis esparsos com os meus poemas, o que daria sem dúvidas para um livro.
Meti aquilo tudo numa pasta e com muita coragem fui ter com o professor para pedir-lhe que lesse e desse o seu juízo. Ele recebeu-me com desconfiança. Hoje ainda mais aprecio aquela atitude. Não era um homem dado a ilusões, ou a sentimentalismos. Amava a verdade, a beleza e a bondade, mas era-lhe maçador ler os poemas dos alunos porque, primeiro, eram em geral muito ruins, depois porque tinha de o dizer a eles, e partir-lhes o coração, por último, uma razão técnica, muitos eram os que lhe davam poemas para ler escritos a lápis, e o grafite do lápis faz um traço mais difícil de ler, pela sua cor pálida. 
Foi isso mesmo o que eu fizera. Os poemas não se escrevem perfeitos logo à primeira, e para não estar a rabiscar tudo, o melhor era sempre escrever a lápis. Depois da sua chamada de atenção, no entanto, emendei essa parte. 
Quanto às outras observações gerais, apenas em parte aplicou-as a mim, felizmente. Em verdade, demorou um longo tempo para me mandar chamar e devolver os poemas com a sua crítica. Antes de me deixar ler as anotações que tinha feito em cada um, explicou com muito tato no que consistia a criação poética, e fê-lo com um brilhantismo que ainda hoje me emociona: "A construção da poesia é a construção que o próprio poeta faz em si e de si, de uma certa maneira. A poesia é uma ponte para que os outros passem. Só serás capaz de erguê-la se compreenderes essa verdade: manter um coração puro para seres capaz de colher poesia das coisas ordinárias, e depois ter sempre uma atitude de caridade para partilhar o que fores colhendo como poesia. As primeiras pontes serão arremedos improvisados, como as que os exércitos faziam para cruzar os rios e depois se desfaziam à primeira cheia. Mas se fores capaz de guardar as lições de construção poética interior, as tuas pontes manter-se-ão por séculos, como as pontes romanas ainda hoje em uso". Estas foram palavras doces que amaciaram o coração para uma pesada saraivada de críticas de estilo e de forma que ainda hoje ressoam, mas que foram fundamentais.
Penso que hoje sou capaz de edificar pontes melhores, mais duradouras, em linguagem corrente, fazer uma poesia mais sóbria, mais direta, e com estilo e beleza sempre maiores. O sentido estético do mestre era, obviamente, muito exigente, o que também contribuiu decisivamente para a formação da minha própria apreciação da beleza.
"Continua a escrever, não pares nunca. Vai chegar o dia em que terás de publicar, mas não esses primeiros escritos. Pensa neles como exercícios, guarda-os como testemunhos de afeto apenas, se quiseres. Tens em ti o que é preciso, persevera". 
E assim, com essas palavras, ele docemente me despachou, oferecendo-me um dos seus livros, (no qual já tinha preparado uma dedicatória simpática, que só fui ver em casa), e foi continuar a tratar dos seus muitos afazeres. No entanto, a presença dele em mim permanece, assim como a memória afetiva e o papel fundamental que desempenhou em minha vida e na vida de milhares de alunos que, como eu, tiveram o enorme privilégio de aprender com o melhor, com quem efetivamente sabia, com quem vivia e acreditava no que ensinava, com um homem verdadeiro, belo e bom.

sábado, abril 11, 2020

Amar sem mentir, nem sofrer

Amar é uma difícil travessia, não há dúvidas. Ontem fui ao Passeio Alegre para fazer exercício e apreciar um pouco do mundo. Como é na observação do mundo que está a verdade, como já dizia Aristóteles, vi à minha volta algumas referências do que o amor é nestes tempos em que as pandemias são muitas e as infecções pervertem a nossa natureza.

Vi um pai com uma filha e o cão, todos a brincar, ali junto a duas peças de artilharia colocadas no jardim para enfeitar (deviam ser do forte lá mais perto da foz). O pai com o semblante cansado, pesaroso, a conter as próprias aflições. A miúda completamente eufórica a correr com o cão, talvez das primeiras vezes que tinham conseguido esticar as pernas naquele dia. Depois de um longo sprint, vai ter com o pai a sorrir e ele, na maior descontração do mundo, diz-lhe: “que lenta que és! O Haroldo chegou aqui há 10 minutos!”

Eu estava a passar e sorri-lhes por um instante, ao que me cumprimentaram e continuaram as suas interações. Achei o nome do cão muito giro, mas sobretudo a forma como aquele homem levava o seu mundo às costas, a suportar as ansiedades, a oferecer afeto, a ignorar o próprio bem estar. Ele amava demais para pensar em si mesmo.

Mais à frente, com o passeio quase sempre deserto, virei-me para a natureza, e junto ao rio havia uns grandes cardumes de peixes grandes, se calhar com ao menos um quilo de peso, a pastar junto às rochas da margem o musgo ou alga que ao sabor das ondas se lhes ia oferecendo. Indiferentes ao mundo, seguiam o seu instinto, a nadar naquela água absolutamente cristalina, onde se podia ver um metro ou mais. Acho que nos animais há um amor infinito porque não são perturbados pelas coisas do mundo: não estão infectados. A sua união com tudo não chega à transcendência do homem com a filha e o Haroldo, é mais direta, mas nem por isso menos verdadeira. Amar também é colocar-se nesse estado de dignidade, de imediata participação no mundo, pois não há nele nenhuma malícia.

Mas como não somos animais irracionais e havia mais para ver, continuei o meu passeio (pelo Passeio Alegre e pelas reflexões quanto à verdade dos afetos).

Uma senhora que corria na minha direção deu-me o próximo mote. No troço a seguir à escultura de São Miguel-o-anjo (uma escultura bonita que fica no entroncamento entre a zona que vem da rua do Ouro e a parte do Passeio Alegre, mas sempre junto ao Douro) passou por mim a largos metros, retomando a seguir a margem do rio. A minha impressão foi a de que não se queria aproximar de um provável portador do COVID-19.

Foi então que percebi: o medo impede que as pontes necessárias ao amor se mantenham disponíveis para a travessia, sempre perigosa... vamos tentando contornar, ao invés de fazer o caminho que está à nossa frente.

Mas não há volta a dar... é preciso dar de si. Vejo com muita tristeza que o medo dominou aquela verdadeira e última fortaleza da convicção na grandeza das partilhas... e um individualismo atroz diminuiu tudo a um jogo de ajuntamentos vãos: posição, dinheiro, manias... que somado às convenções do conforto tornam tudo muito insano. Portanto, é justo que sejam chamadas insanas as pessoas que assim vivem, infectadas por essa doença que os divide ao levá-las para dentro de si mesmas em busca dos referenciais dos outros! Se ao menos a jornada para dentro fosse a reflexão honesta de quem quer conhecer a si mesmo, muito haveria de vir daí... mas é um eterno jogo de desviar-se do que causa dor... e refugiar-se num senso comum que não pode jamais abarcar a profundidade do que se traz cá dentro.

Gente insana, doente, pervertida... vivem vidas solitárias, com seus gatos e hamsters, e suas certezas frias, nunca questionadas. A um olhar desatento, o pai, a filha, o Harold, os peixes e a corredora são apenas figurações da vida... mas não, eles na verdade são a vida a mostrar-lhe o que ele teimosamente ignora. Eles são o estar presente... o partilhar o momento, o dar de si para algo maior que nós mesmos...

Mas será que vale a pena? Irá perguntar-se o nosso desatento amigo no seu jogo frio dos cálculos mal feitos... É uma pergunta vã: viver em si e para si é um evidente desperdício de vida. Só há vida se for para os outros e com os outros... tanto mais se forem para aqueles e com aqueles com quem partilhamos os nossos ideais, os nossos sentimentos profundos, os que fazem as nossas aflições menores e as nossas ilusões mais acesas... Para tanto, é preciso ter coragem e conhecer a verdade. Infectados pelo medo, inchados pela vaidade que obscurece a vista e impede a aprendizagem, vão vivendo vidas vãs, privados de ir e vir, de ser e de estar, para além do que essa terrível condição lhes impõe.

Sem este maldito vírus, ao invés de se converterem nessas múmias confinadas nos seus apartamentos solitários, poderiam finalmente tomar a própria liberdade, abraçar a vida e ser pessoas completas... ao escolherem completar os outros.