sábado, abril 11, 2020

Amar sem mentir, nem sofrer

Amar é uma difícil travessia, não há dúvidas. Ontem fui ao Passeio Alegre para fazer exercício e apreciar um pouco do mundo. Como é na observação do mundo que está a verdade, como já dizia Aristóteles, vi à minha volta algumas referências do que o amor é nestes tempos em que as pandemias são muitas e as infecções pervertem a nossa natureza.

Vi um pai com uma filha e o cão, todos a brincar, ali junto a duas peças de artilharia colocadas no jardim para enfeitar (deviam ser do forte lá mais perto da foz). O pai com o semblante cansado, pesaroso, a conter as próprias aflições. A miúda completamente eufórica a correr com o cão, talvez das primeiras vezes que tinham conseguido esticar as pernas naquele dia. Depois de um longo sprint, vai ter com o pai a sorrir e ele, na maior descontração do mundo, diz-lhe: “que lenta que és! O Haroldo chegou aqui há 10 minutos!”

Eu estava a passar e sorri-lhes por um instante, ao que me cumprimentaram e continuaram as suas interações. Achei o nome do cão muito giro, mas sobretudo a forma como aquele homem levava o seu mundo às costas, a suportar as ansiedades, a oferecer afeto, a ignorar o próprio bem estar. Ele amava demais para pensar em si mesmo.

Mais à frente, com o passeio quase sempre deserto, virei-me para a natureza, e junto ao rio havia uns grandes cardumes de peixes grandes, se calhar com ao menos um quilo de peso, a pastar junto às rochas da margem o musgo ou alga que ao sabor das ondas se lhes ia oferecendo. Indiferentes ao mundo, seguiam o seu instinto, a nadar naquela água absolutamente cristalina, onde se podia ver um metro ou mais. Acho que nos animais há um amor infinito porque não são perturbados pelas coisas do mundo: não estão infectados. A sua união com tudo não chega à transcendência do homem com a filha e o Haroldo, é mais direta, mas nem por isso menos verdadeira. Amar também é colocar-se nesse estado de dignidade, de imediata participação no mundo, pois não há nele nenhuma malícia.

Mas como não somos animais irracionais e havia mais para ver, continuei o meu passeio (pelo Passeio Alegre e pelas reflexões quanto à verdade dos afetos).

Uma senhora que corria na minha direção deu-me o próximo mote. No troço a seguir à escultura de São Miguel-o-anjo (uma escultura bonita que fica no entroncamento entre a zona que vem da rua do Ouro e a parte do Passeio Alegre, mas sempre junto ao Douro) passou por mim a largos metros, retomando a seguir a margem do rio. A minha impressão foi a de que não se queria aproximar de um provável portador do COVID-19.

Foi então que percebi: o medo impede que as pontes necessárias ao amor se mantenham disponíveis para a travessia, sempre perigosa... vamos tentando contornar, ao invés de fazer o caminho que está à nossa frente.

Mas não há volta a dar... é preciso dar de si. Vejo com muita tristeza que o medo dominou aquela verdadeira e última fortaleza da convicção na grandeza das partilhas... e um individualismo atroz diminuiu tudo a um jogo de ajuntamentos vãos: posição, dinheiro, manias... que somado às convenções do conforto tornam tudo muito insano. Portanto, é justo que sejam chamadas insanas as pessoas que assim vivem, infectadas por essa doença que os divide ao levá-las para dentro de si mesmas em busca dos referenciais dos outros! Se ao menos a jornada para dentro fosse a reflexão honesta de quem quer conhecer a si mesmo, muito haveria de vir daí... mas é um eterno jogo de desviar-se do que causa dor... e refugiar-se num senso comum que não pode jamais abarcar a profundidade do que se traz cá dentro.

Gente insana, doente, pervertida... vivem vidas solitárias, com seus gatos e hamsters, e suas certezas frias, nunca questionadas. A um olhar desatento, o pai, a filha, o Harold, os peixes e a corredora são apenas figurações da vida... mas não, eles na verdade são a vida a mostrar-lhe o que ele teimosamente ignora. Eles são o estar presente... o partilhar o momento, o dar de si para algo maior que nós mesmos...

Mas será que vale a pena? Irá perguntar-se o nosso desatento amigo no seu jogo frio dos cálculos mal feitos... É uma pergunta vã: viver em si e para si é um evidente desperdício de vida. Só há vida se for para os outros e com os outros... tanto mais se forem para aqueles e com aqueles com quem partilhamos os nossos ideais, os nossos sentimentos profundos, os que fazem as nossas aflições menores e as nossas ilusões mais acesas... Para tanto, é preciso ter coragem e conhecer a verdade. Infectados pelo medo, inchados pela vaidade que obscurece a vista e impede a aprendizagem, vão vivendo vidas vãs, privados de ir e vir, de ser e de estar, para além do que essa terrível condição lhes impõe.

Sem este maldito vírus, ao invés de se converterem nessas múmias confinadas nos seus apartamentos solitários, poderiam finalmente tomar a própria liberdade, abraçar a vida e ser pessoas completas... ao escolherem completar os outros.