terça-feira, abril 21, 2020

A gratidão é a memória do coração

O mestre com a palma aberta, um símbolo de generosidade

Luiz Gonzaga da Silva foi um professor de literatura nos cursos de letras e do ensino secundário da minha terra, para minha grande sorte. Morreu há mais de um ano, prova de que o reconhecimento só é mesmo devido quando se nos impõe como um chamamento maior, de uma natureza complexa: voluntário na sua externalidade e obrigatório no sentido de valor que faz despertar em nós.
Nunca foi clara para mim a razão pela qual um poeta conhecido, homem de profundo conhecimento, um intelectual rigoroso e exigente, já com mais de cinquenta anos de idade e num tempo que já há muito era professor do ensino superior, ainda dava aulas no ensino secundário. Talvez pelo afeto pela minha escola, talvez porque ficasse mesmo a dois passos da sua casa (também a faculdade era ali ao pé, bastava atravessar a rua e subir o morro). Facto é que na rudeza dos meus 15 anos tive o gosto de aprender com quem efetivamente sabia e se importava com a aprendizagem. 
Ensinou-me a contemplação silenciosa que merecem os grandes poemas, e a necessidade de verve para dizê-los na sua inteireza... ensinou-me que o drama e o êxtase de alegria são alegorias e que o grande enredo é o de uma vida que não ignore nenhum deles e ainda assim coloque-se acima deles.
Esse homem preciso, forte, pleno de convicções, que sabia dizer "eu amo-te" em tupi-guarani e que via nas unhas das raparigas suas alunas garras afiadas para arrancar o coração dos rapazinhos apaixonados (ele muito justamente nos prevenia...), deixou uma obra grandiosa, muito para além da sua sentida, simples e verdadeira obra poética.
A testar os meus próprios dotes poéticos contra a sua profunda sabedoria (o homem sabia os Lusíadas de cor, e recitava trechos imensos da Ilíada de Homero, embora esses sejam evidência da reverência de um saber verdadeiro muito mais relevante), apresentei-lhe um dia, depois da aula, um poema meu como sendo de Vinicius de Moraes. Perguntei-lhe de maneira indireta: "Senhor professor, acha que este poema de Vinicius faz alguma concessão ao modernismo, ou é a continuação do seu estilo próprio, sem deferências de estilo?". Ele apanhou a folha em que tinha o poema "copiado" e, depois de pôr os óculos de leitura e juntar o indicador e o polegar embaixo do nariz para sem seguida separá-los ao longo do seu pequeno bigode, disse-me: "Claramente ele teima aqui também em fazer deferências ao seu estilo próprio, embora seja um poema interessante". 
Obviamente que fiquei radiante, afinal, o meu grande mestre confundiu-me com o meu poeta de predileção, para mim, um dos grandes poetas de sempre. Pus-me a escrever com mais frequência, e a ler poesia ainda com mais interesse. Logo constituí uma coleção longa de papéis esparsos com os meus poemas, o que daria sem dúvidas para um livro.
Meti aquilo tudo numa pasta e com muita coragem fui ter com o professor para pedir-lhe que lesse e desse o seu juízo. Ele recebeu-me com desconfiança. Hoje ainda mais aprecio aquela atitude. Não era um homem dado a ilusões, ou a sentimentalismos. Amava a verdade, a beleza e a bondade, mas era-lhe maçador ler os poemas dos alunos porque, primeiro, eram em geral muito ruins, depois porque tinha de o dizer a eles, e partir-lhes o coração, por último, uma razão técnica, muitos eram os que lhe davam poemas para ler escritos a lápis, e o grafite do lápis faz um traço mais difícil de ler, pela sua cor pálida. 
Foi isso mesmo o que eu fizera. Os poemas não se escrevem perfeitos logo à primeira, e para não estar a rabiscar tudo, o melhor era sempre escrever a lápis. Depois da sua chamada de atenção, no entanto, emendei essa parte. 
Quanto às outras observações gerais, apenas em parte aplicou-as a mim, felizmente. Em verdade, demorou um longo tempo para me mandar chamar e devolver os poemas com a sua crítica. Antes de me deixar ler as anotações que tinha feito em cada um, explicou com muito tato no que consistia a criação poética, e fê-lo com um brilhantismo que ainda hoje me emociona: "A construção da poesia é a construção que o próprio poeta faz em si e de si, de uma certa maneira. A poesia é uma ponte para que os outros passem. Só serás capaz de erguê-la se compreenderes essa verdade: manter um coração puro para seres capaz de colher poesia das coisas ordinárias, e depois ter sempre uma atitude de caridade para partilhar o que fores colhendo como poesia. As primeiras pontes serão arremedos improvisados, como as que os exércitos faziam para cruzar os rios e depois se desfaziam à primeira cheia. Mas se fores capaz de guardar as lições de construção poética interior, as tuas pontes manter-se-ão por séculos, como as pontes romanas ainda hoje em uso". Estas foram palavras doces que amaciaram o coração para uma pesada saraivada de críticas de estilo e de forma que ainda hoje ressoam, mas que foram fundamentais.
Penso que hoje sou capaz de edificar pontes melhores, mais duradouras, em linguagem corrente, fazer uma poesia mais sóbria, mais direta, e com estilo e beleza sempre maiores. O sentido estético do mestre era, obviamente, muito exigente, o que também contribuiu decisivamente para a formação da minha própria apreciação da beleza.
"Continua a escrever, não pares nunca. Vai chegar o dia em que terás de publicar, mas não esses primeiros escritos. Pensa neles como exercícios, guarda-os como testemunhos de afeto apenas, se quiseres. Tens em ti o que é preciso, persevera". 
E assim, com essas palavras, ele docemente me despachou, oferecendo-me um dos seus livros, (no qual já tinha preparado uma dedicatória simpática, que só fui ver em casa), e foi continuar a tratar dos seus muitos afazeres. No entanto, a presença dele em mim permanece, assim como a memória afetiva e o papel fundamental que desempenhou em minha vida e na vida de milhares de alunos que, como eu, tiveram o enorme privilégio de aprender com o melhor, com quem efetivamente sabia, com quem vivia e acreditava no que ensinava, com um homem verdadeiro, belo e bom.