domingo, julho 12, 2020

A igualdade é um falso deus

Foto de Frederico Henriques

A primeira vez que assisti a uma corrida portuguesa fiquei muito impressionado: o rigoroso protocolo de atos de enfrentamento dos touros bravos, carregados de fortes emoções, contrasta com uma combinação muito exigente de perícia e coragem. Mas talvez a impressão mais forte foi a de ver que aquilo não era um espetáculo dedicado à violência, como uma visão estereotipada muitas vezes quer fazer passar, mas uma homenagem à verdade da vida, uma ilustração da dura realidade que nos afronta e que com a correta disposição de caráter, podemos vencer.
A corrida de touros à portuguesa está organizada por fases, cada qual com o seu simbolismo e significado, com diferentes graus de profundidade (o que por si só é notável: absolutamente nada nas corridas remete à banalidade). 
Tudo começa com as cortesias: cavaleiros, forcados e outros intervenientes entram na arena e cumprimentam o público e dele recebem os louvores. Esse desejo de boa sorte logo à partida não é vão: a seguir tem início um espetáculo de grandes riscos e brutalidade.
As corridas iniciam-se propriamente com as lides a cavalo. Cada cavaleiro lida com um touro e tem um determinado tempo para cravar uma certa quantidade de farpas no dorso do animal. Há diferentes técnicas de abordagem, mas de qualquer forma, o cavaleiro deve avançar contra o touro a segurar a farpa com uma das mãos e, ao posicionar-se, espetá-la no tempo e no sítio certos. 
É preciso reunir aqui uma grande habilidade, não só no domínio do cavalo e na coordenação dos próprios movimentos, mas também na leitura da disposição do touro, percebendo de que modo irá atacar e com que tipo de marcha. 
Também merece uma palavra o cavalo utilizado nas lides: trata-se do belo Puro-sangue Lusitano, um magnífico corcel de temperamento dócil e voluntarioso, desenvolvido desde antigas raças ibéricas e mouras. O cavalo é treinado desde os 3 anos de idade para as corridas de touros, sendo-lhe exigido um consistente comportamento físico e psicológico.
A corrida portuguesa terminava com a morte do animal na arena, um bocado como na corrida espanhola, em que a lide é a pé. Em 1836, entretanto, a rainha Dona Maria II proibiu esse desfecho e foi então preciso criar uma nova forma de encerrar as corridas em que se mantivesse o mesmo significado: o domínio do homem sobre o animal. 
A solução foi convocar um grupo de guardas que protegia o camarote real nas praças de touros para ir fazer as pegas: os "Moços de Forcado". Pessoalmente, tenho as pegas como a parte mais emocionante das corridas. É caso para dizer que a mudança foi para bem em todos os sentidos: também a mim parece-me excessivo abater o touro na arena; por outro lado, a pega é carregada de emoção e significado, engrandecendo os forcados e o touro, uns e outro, de bravura inquebrantável.
A pega tem lugar após a lide a cavalo, intermediada pelo peão de brega, um interveniente que usa um capote de cores fortes para posicionar o touro de modo a que os forcados tenham espaço para o pegar. 
Entram então na arena um grupo de oito forcados que ficam perfilados em fila indiana, sendo o primeiro deles o chamado "forcado da cara": é este homem que vai agarrar o touro à unha. Com as mãos à cintura, coluna reta, barrete à cabeça, o forcado da cara bate o pé direito à frente com passos curtos, pouco a pouco diminuindo a distância inicial, de cerca de 20 metros, e convoca o animal a avançar com um grito firme: "toiro!" Dentro do meu coração, esse repto traduz-se sempre por "destino!", e obviamente, ver uma pega para mim é algo sempre único e especial, como é cada momento de bravura na vida em que ousamos convocar o destino.
Avança então o touro, cheio de farpas no dorso, já cansado, coberto de sangue e suor, mas pleno de vontade de luta. A acertar a cara do touro e abraçar-lhe o pescoço, o forcado da cara leva com um impacto brutal, a que os demais forcados atrás de si tentam amenizar, fazendo de linha de contenção daquela carga de meia tonelada de músculo. Eventualmente, o grupo todo começa a formar um movimento circular, movidos pelo ciclone poderoso do touro no seu interior, e um dos forcados, o rabejador, agarra na cauda do animal para conter o movimento e fazê-lo parar. Uma vez dominado o touro, encerra-se  pega. A emoção foi contida por uma determinação capaz de domá-la.
Por fim, retiram-se os forcados, e entram os pastores com outras rezes que, junto do touro, voltam todas para os estábulos. É lá dentro, depois de tudo consumado, que o touro é abatido, com tributo à toda a dignidade que é sua.
Eu consigo compreender os meus amigos que torcem o nariz às corridas de touros: o sofrimento do animal, ou mesmo os riscos à vida e à saúde dos cavaleiros, forcados e demais elementos não lhes parece razoável. Mas evitar ver a dor não a faz deixar de existir, ao contrário, deixa-nos desprotegidos para lhe enfrentar corretamente.
Os adeptos não vão às praças de touros para ver a dor dos animais, nem aos cavaleiros causaria prazer ver um touro preso a ser espetado covardemente por umas farpas até morrer. Tudo nas corridas evoca o risco e a coragem e é por isso que elas são a ilustração de uma forma muito digna de se viver a vida.
Surgidas no Portugal profundo, ligadas eminentemente à vida no campo e às pessoas que dele sempre retiraram o seu sustento, as corridas recriam as dificuldades próprias de quem é dono do próprio destino e está exposto a triunfar ou perecer pela própria atitude. A dureza dessas condições exigem resposta de pessoas de caráter firme, responsáveis por si mesmas, que façam frente às condições rudes que a natureza por tantas vezes lhes lança, e procuram reafirmar-se com dignidade, forçando o destino à sua vontade.
A vida desses homens livres, senhores de si mesmos, é a dinâmica da hierarquia das formas que a própria natureza impõe. A nós, compete-nos nela encontrar uma inserção harmoniosa e racional. A natureza não estabelece qualquer igualdade entre os seres, a sua lei é a da dominação. Forçar uma igualdade que não existe significa introduzir distopias disfarçadas de utopias: umas e outras produto de pensamentos imaginários, descolados da realidade de si mesmos e do mundo. 
O dom da razão impõe-nos a responsabilidade de temperar a lei da dominação da natureza com a ética, prevalecendo a ética divina, a fé em Deus e na vida eterna. A dominação do homem, portanto, serve à sua auto-preservação, assim como se dá entre outras formas na natureza, e não propriamente como exercício de um totalitarismo egóico. 
Forçar a igualdade é o mais malicioso e injusto esquema de desigualdade que pode haver porque retira a iniciativa e o mérito, impondo uma moralidade relativa e, portanto, falsa. Justamente por isso, há infinitamente mais crueldade nestes comportamentos, tão bem ocultados nas bandeiras do vitimismo ideológico, que na dignidade da luta dos touros na arena. Aqui, temos a natureza a desafiar o homem, a fustigar-lhe com a sua força incansável a lhe lançar o desafio contra a própria vida. Ali, a negação das próprias capacidades naturais e a renúncia da liberdade: terríveis sacrifícios depositados no altar de um falso deus.
Para prevalecermos contra as adversidades, devemos nos apoiar primeiro em nossas capacidades: a inteligência, a perícia, a coragem; juntá-las com as de outros para vencer pela união de esforços, fazer frente ao que parece impossível e arriscar porque sabemos que fugir ou submeter-se é negar a nós mesmos. Temos de encarar o touro, ou o destino.
A corrida de touros à portuguesa, na sua mais alta instância, é uma homenagem à liberdade, ao que há em nós de mais sublime, mais humano e divino: o impulso de vencer as dificuldades da vida por nós mesmos.