Era um fim de tarde em que já revoavam os passarinhos muito sensibilizados com aquelas cores mágicas. Eu também estava muito contente naquela hora, pois havia terminado a formação do catecismo e poderia finalmente passar pela casa da minha avó e gamar uns doces.
Na ternura dos meus nove anos, a palavra de Deus rivalizava no meu pensamento com o futebol e os álbuns de cromos: a bondade era para mim uma decorrência do amor que sentia, e não propriamente doutrina.
Obviamente que conseguia ver a relação de uma coisa com a outra, mas nunca seria capaz de apreciar a verdade do fabuloso edifício ético que se me apresentava. Há lições que custam muito a aprender.
Portanto, apressado e distraído, imerso naquela doçura em antecipação, ia atravessando o jardim da Casa das Irmãs quando ouvi um sibilar discreto.
Naquele lindo, fresco e bem cuidado jardim, cheio de camélias e rosas, guardando ao fundo um pomar sempre cobiçado pelos meninos, havia um segredo.
Aproximei-me do sítio de onde parecia vir o ruído: era um banco de pedra antigo, colocado junto a um dos canteiros próximo à saída. Muito delicadamente, fui me abaixando até que vi, enrolada em si mesma e muito bonita, uma cobra de cores vibrantes: vermelha, preta e branca.
Encontrou o meu olhar muito atenta, sem reagir com nenhum movimento que não o da língua de ponta partida, sempre a sibilar para tentar perceber quem ali estava. As escamas brilhavam mesmo à pouca luz, e eu sabia, tanto pelo formato da cabeça, quanto pela coloração viva, que provavelmente as suas presas guardavam o fel da morte.
Fiquei um bocado atordoado porque nunca antes tinha visto uma cobra, e a visita à casa da minha avó começou logo pautada por esse acontecimento. Uma das minhas tias, ainda hoje muito ligada à Igreja, ao ouvir a minha história, perguntou: "Então, mas o que vocês deram hoje no catecismo?". Eu de início não tinha percebido a ligação entre a fantástica história do encontro com a cobra e o tema do catecismo, mas respondi com todo o cuidado: "Hoje aprendi sobre a graça do Espírito Santo!". A minha tia olhou para a minha avó, e as duas ensaiaram um sorriso, o que me deixou ainda mais encabulado. Disseram que a cobra era uma manifestação desse meu encontro com a verdade da presença de Deus através do Espírito Santo, o que a minha mente de criança colocou na caixinha dos contos de fada para tapear os miúdos... Um juiz inepto não pode nunca dar sentenças justas!
Ao cabo de longos anos de reflexão sobre diversas situações da vida que evocam a divina presença, o sibilar e o olhar vivo da cobra regressaram muitas vezes ao meu pensamento, sobretudo porque me pareceram um alerta que, mesmo mal compreendido na altura, eu sempre respeitei por senti-lo como justo desde fontes extra-doutrinárias: jamais pecar contra o Espírito Santo.
O evangelho de São Mateus diz que todos os pecados podem ser perdoados, mas quem peca contra o Espírito Santo não terá perdão "nem neste século, nem no futuro" (Mateus 12:31,32). Qual a razão de uma pena tão severa?
Quando Judas se enforca na figueira, fá-lo porque considera que Deus não seria capaz de perdoá-lo, mas foi justamente o seu gesto final o mais grave pecado que poderia ter cometido. Extinguiu em si a vida que é a presença de Deus: com o coração rijo e cheio de orgulho, o ato simplesmente exteriorizou a convicção de que o Espírito Santo não tinha lugar nele.
O Espírito Santo, o Senhor que dá a vida, é o convite vivo de Deus para que assumamos uma conduta de encontro com Ele. É a convocação a uma vida fundada no amor, na caridade e no perdão, não só aos outros, mas sobretudo, e em primeiro lugar, a nós mesmos. É a presença pulsante da verdade que nos sorri através de alguém que amamos, ou no sibilar de uma cobra no jardim.
Pecar contra o Espírito Santo é negar a presença de Deus, é defender que a sua intervenção não existe, é acreditar que outras coisas ocupam o lugar que é do Pai Celestial. É um pecado insidioso porque há muitas formas subtis de cometê-lo, embora o peso da sua gravidade em nada se atenue.
Um pouco ao estilo de São Tomás de Aquino, sempre consegui conciliar essa visão teológica cristã com a filosofia clássica. Para Aristóteles, os bens estão divididos por categorias de importância, sendo mais cimeiros os que se reconduzem ao nosso bem maior: a prática da virtude para se alcançar a excelência, sendo o conhecimento divino a mais sublime das excelências. Por sua vez, o conhecimento divino é a fiel inserção na ordem do Ser, é compreendermo-nos como parte integrante de um todo vivo e pulsante e que interage connosco: o raio de sol não poderia nunca ser uma parte separada do sol. Para isso, é preciso persistência em conhecer a si mesmo e à ordem do Ser, e afinal alcançar o que a filosofia perene de Huxley chamou de "conhecimento unitivo".
O convite do Espírito Santo é o convite da vida, o chamamento para se viver o que importa e não ter medo ou receio de deixar para trás o que não importa. O que Deus quer de nós é que aceitemos com coragem a presença do Espírito Santo, que não o neguemos, encondendo-nos por detrás de convenções, obrigações ou promessas falsas. Não agir quando é preciso, quando sabemos que a vida pede de nós esse passo, também é uma forma de se negar a verdade da presença de Deus, também é, de certa forma, escolher a morte.
É certo que Deus ouve as nossas orações, mas elas devem se converter em ações de reconhecimento da Sua divina presença ao reforçar em nós essa convicção, de outro modo, são apenas fórmulas vazias, apenas uma outra forma de blasfémia. O sibilar e olhar da cobra no jardim da Casa das Irmãs alertaram-me para essa verdade, embora só hoje a tenha compreendido.