sábado, março 05, 2022

Tirem esta pedra de cima da minha cabeça

Carolina com a sua avó Maria Augusta - finais dos anos 1940

Com o falecimento do vovô Antônio Gomes em 1925, vovó Augusta, ainda com filhos pequenos para terminar de criar, teve de recorrer ainda mais à ajuda dos seus tios José Belisário e Chiquinha, já com idades à volta dos 70 anos, além dos seus filhos mais velhos, embora estes já tivessem seus próprios filhos e dificuldades com que lidar. Tio Augusto tinha 36 anos nessa altura, e o vovô Miano, 32. 
Acredito que os seus velhos tios tenham sido das maiores ajudas. Não se tem notícia do ano em que faleceu o tio José Belisário. Sabe-se que a tinha Chiquinha ainda lhe sobreviveu por alguns anos. A prima Nina Campos ainda conheceu a tia Chiquinha.
Seu irmão Luciano Alves Pereira, um bem-sucedido comerciante em Belo Horizonte, na altura, também tentou ajudá-la nos primeiros anos de viuvez, acolhendo o tio Afonso em sua casa na capital do estado, para que fizesse os seus estudos. Mesmo que a temporada em Belo Horizonte não tenha sido das mais felizes para o tio Afonso, que ficava à margem de uma vida familiar muito movimentada, o gesto demonstra a iniciativa para aliviar as acrescidas responsabilidades da vovó Augusta, agora viúva.
A ida do tio Afonso para Belo Horizonte não deve ter sido uma decisão fácil para a vovó Augusta. Como filho mais novo, mais desprotegido, portanto, frente àquelas mudanças e por ter ficado órfão com apenas 10 anos de idade, havia ali um cuidado especial.
Tio Afonso ainda não era rapazito quando começou a namorar com a tia Lila, com quem estudava nas Escolas Reunidas, na sede do distrito, sendo ambos da mesma idade. Mas quando chegaram à adolescência, a tia Lila ficou mais inclinada para arranjar um casamento, enquanto o tio Afonso ainda era considerado novo para dar esse passo. Em consequência, a tia Lila terminou o namoro, e o tio Afonso ficou desconsolado. 
A processar aquela tristeza, o tio Afonso escreveu um poema muito bonito, chamado "Poema do Primeiro Amor". Em quatro estrofes, ele partilha os conselhos da vovó Augusta para lidar com aquilo:

(...)
Em meu peito se escondia 
As mágoas que então sentia
Sufocando o coração.
Minha mãe que observava
Perguntou-me como eu 'tava'
E por que tanta aflição?

E dela não ocultei,
Em desabafo contei
Todo o sofrido drama.
Enquanto tudo eu narrava
Ela me ouvia calada
Quanto ardia o peito, a chama.

E me disse firmemente:
"Não fique assim descontente.
Tens nas veias sangue nobre,
Bravo sangue altaneiro
Grandes forças de um guerreiro
Que de amor jamais foi pobre!

Se ela foge de você
E não quer dizer porquê
Dela deve se afastar.
Ninguém quer sentir-se preso.
Se for do destino o desejo
Ela um dia vai voltar."
(...)

Depois dessa desilusão, o tio Afonso foi para o Seminário, com ideias de abraçar a vocação religiosa, mas depois de poucos anos regressaria à Santa Rita para retomar o namoro com a tia Lila.
Com a partilha das heranças do vovô Antônio Gomes, a vovô Augusta em algum momento deixou a casa na rua da Ponte e foi viver na fazenda Santa Cruz, no sítio chamado Garganta, onde viviam da pecuária de corte. 
O "principado do Garganta" foi um sítio que o tio José Belisário doara ao vovô Antônio Gomes. A casa sede desse sítio foi construída pelo vovô Antônio Gomes, ficando no meio alto das montanhas. A localização entre duas encostas e o facto de não haver mina de água ali perto, impunha condições de vida difíceis, já que a incidência de sol era pouca, além de fazer com que fosse preciso ir buscar água à mina mais próxima.
Em 1933, quando o tio Afonso deixa o seminário e regressa a Santa Rita do Glória, ele foi viver para essa casa com a vovó Augusta e com o tio Thimóteo. Mas logo iria se mudar para a parte de baixo do sítio da Garganta, ao se casar com a tia Lila.
Tio Afonso havia herdado 3 alqueires de terra à margem da cachoeira da Garganta. Mais à frente, adquiriu mais 10 alqueires da Fazenda Santa Cruz, principalmente, às suas irmãs. Ali, com a ajuda de seu grande amigo José Rosa de Jesus, construiu a sua "casinha", como ele a chamava, no tombo da cachoeira do córrego Conceição, dispondo de água limpa e farta.
Enquanto o tio Afonso constituiu a sua família na parte de baixo do sítio da Garganta, a vovó Augusta e o tio Thimóteo continuavam na sede, na parte alta, em condições cada vez piores.
Em 1940, a vovó Augusta pede para o tio Afonso ir viver com ela: Eu não estou aguentando mais nada. Thimóteo cada vez mais sem expediente, mais nervoso e esquisito. Se você não me acudir, quando meu gadinho acabar eu vou morrer à míngua.
O tio Afonso respondeu com uma contraproposta, argumentando que o melhor seria que ela e Thimóteo fossem morar com eles na parte de baixo da Garganta, onde havia abundância de água e as áreas eram mais abertas. Trariam tudo lá de cima e construiriam uma casa nova para todos morarem juntos. A vovó Augusta não concordou, teimando com a sua ideia de que fosse o tio Afonso e família a irem morar na velha sede. 
Não se sabe bem a razão, talvez por reverência filial, a obedecer o mandamento da lei de Deus que manda honrar pai e mãe, talvez pelo apego sentimental que tinha à mãe, talvez porque sabia que ela e Thimóteo não podiam mesmo continuar sozinhos... talvez, ainda, por uma combinação dessas razões, o facto é que o tio Afonso concordou com a proposição da vovó Augusta.
Foram todos lá para cima morar juntos, mas a contragosto. Rapidamente, as crianças começaram a ficar doentes. Tio Afonso e tia Lila, obviamente, muito chateados com a situação, prejudicada ainda pelo ambiente pesado provocado pelas constantes brigas entre vovó Augusta e Thimóteo.
Tio Afonso diversas vezes pedia à vovó Augusta para fazerem as mudanças para a parte de baixo do sítio, mas ela teimava em lá permanecer, por vezes usando argumentos falaciosos: Criei os meus filhos aqui e nenhum morreu! Não era muito bem verdade, já que muitos dos filhos foram criados pelos tios José Belisário e Chiquinha, ou mesmo na casa na rua da Ponte, na sede do distrito. Além disso, nos primeiros tempos da família que formou com o vovô António Gomes, o segundo filho, José, faleceu com apenas dois meses de vida, na altura em que viviam num sítio do Rosário da Limeira, chamado Vargem Alegre.
Aquela teimosia, direta ou indiretamente, custou anos de vida muito duros para os tios Afonso e Lila. 
O tio Afonso ficou doente, sentindo o peito apertado, com problemas para dormir e, mais tarde, com dores de estômago. Desde então, segundo o mesmo, perdera a saúde. Essas dificuldades impuseram muitos problemas ao tio Afonso e, consequentemente, a toda a família, obrigando-o a procurar médicos para se tratar, principalmente, no Rio de Janeiro. Nessa cidade, era carinhosamente recebido pelo seu tio Luciano e, após a sua morte em 1944, pela sua prima Maria Angélica, e contava com a ajuda do primo Luciano Agliberto.
A tia Lila deu à luz o primo José Costa em um parto muito difícil, tendo que ser chamado um médico às pressas. A partir desse evento, passou a sofrer da moléstia conhecida como "queda do útero", sendo operada apenas muito mais tarde, em 1959, impondo-lhe um sofrimento acrescido às muitas dificuldades com que tinha de lidar, valendo-se do seu caráter amoroso e conciliador para que aqueles problemas não se tornassem ainda maiores.
Para piorar a situação, o tio Thimóteo também não estava bem. Havia passado por uma crise nervosa muito séria, assustando a todos. O tio Afonso não estava, mas ao regressar, foi falar com ele, perguntando o que se tinha passado. Respondeu-lhe que tinha sido uma situação da lida com o gado e que não era nada que o irmão tivesse de se preocupar.
O tio Thimóteo era uma pessoa inteligente e interessada nas coisas do mundo, procurando sempre se informar. Tinha um livro de aritmética que usava para estudar à luz da lamparina. No entanto, era muito sistemático e temperamental. Sentia-se revoltado por ter sido criado pelos tios José Belisário e Chiquinha, quando já eram idosos, e não se dava com a mãe, vovó Augusta, que também tinha um gênio difícil.
Poucos dias depois do evento em que teve a tal crise nervosa, estando o tio Afonso fora novamente, o tio Thimóteo trancou-se por dentro no paiol, lá tirando a própria vida. Tinha cerca de 45 anos de idade. O vovó Miano foi quem tratou de tudo, mas a situação delicada provocou um trauma nas crianças e, em verdade, em toda a família. O corpo ainda esteve na casa, deitado na cama, à espera das autoridades, o que também causou forte impressão nas crianças. 
Anteriormente à morte do tio Thimóteo, falava-se muito que ele possuía uma mala cheia de jóias e objetos de valor que teriam sido da sua família de adoção, talvez, a herança que recebeu do tio José Belisário e da tia Chiquinha. Sobre esse boato, o tio Thimóteo não desmentia, nem confirmava, apenas ria-se. No entanto, aquando do seu desaparecimento, as suas posses foram verificadas pelo vovô Miano e o tio Tonico, na presença da tia Lila e dos demais familiares, ficando evidente que não havia lá nada de valor.
Além de José, falecido aos 2 meses de idade, em 1892, e Thimóteo, a vovó Augusta ainda sobreviveu ao seu filho Galdino Gomes de Paiva. "Sô Dino", como o tio Afonso o tratava, morreu solteiro, não se sabe com que idade, mas não chegou a envelhecer. Ao que parece, vivia sozinho. Sabe-se que era de 1905, pois tinha 20 anos aquando do falecimento do vovô António Gomes. Há ainda um registro da transferência de um engenho de rapadura em seu nome, situado em Guiricema, autorizado a 9 de Agosto de 1944, em favor de Onofre Vieira Ferraz. Morreu na casa dos 40 anos de idade, provavelmente consumido pelo vício do álcool. Ficava de tal modo embriagado, que caia de seu cavalo e ficava pela estrada, e ninguém sequer o conseguia levar para uma sombra, já que tinha um cão que não permitia que ninguém chegasse perto.
Quando tudo parecia desandar, em meio a essas situações dramáticas, finalmente a vovó Augusta consentiu em fazer a mudança, dizendo ao tio Afonso que de outra maneira ele não conseguiria acabar de criar os seus filhos. Tudo isso se passou aí pelo ano de 1948.
Tio Afonso cumpriu a velha proposta que fizera à vovó Augusta muitos anos atrás: demolir a "casinha" que havia no tombo do córrego da cachoeira Conceição, lá construindo uma réplica da casa da sede, em que viviam, lá no alto.
Com alegria e ânimo, depois de muitos anos de sofrimento, a obra foi feita com grande esperança. A empreitada do tio Afonso, mais uma vez, contou com a prestimosa ajuda de seu amigo e compadre, (já que era padrinho no nosso querido primo Paulo Afonso), José Rosa, além de muitos parentes e amigos. Aproveitou-se a base da "casinha" e se aproveitou tudo quanto possível da casa antiga. A nova casa agora tinha água encanada direto da mina, além de receber muita luz natural. Foi também construído um pequeno curral com barracão. Depois também tratou-se do moinho e de uma pequena usina elétrica.
Todos acompanhavam as obras muito animados, inclusive a vovó Augusta. Prefiro acreditar que estava inconsciente de todo o mal que causara aos que tanto lhe estimavam. Em redenção, a sua famosa teimosia foi vencida unicamente pelo persistente amor do tio Afonso e de tia Lila.
Quando a casa na parte de baixo ficou pronta, todos se mudaram, e foi uma imensa alegria. O primo Ludolfo diz que esse foi o dia mais feliz da sua vida: acordou de manhã e viu a luz do sol a entrar pela janela.
Em 1953, o vovô Miano e a vovó Sinhá ofereceram uma grande festa para toda a família, que consistiu numa missa e num almoço, na sede da Fazenda Santa Cruz. É dessa ocasião que temos a maior parte das fotos de vovó Augusta: uma velhinha sorridente e animada com aquilo tudo.
No ano seguinte, precisamente, no dia 14 de Dezembro, a vovó Augusta faleceu. 
Ao agonizar, proferiu as suas últimas palavras, na forma de uma ordem: "Tirem esta pedra de cima da minha cabeça". O tio Afonso estava novamente no Rio de Janeiro a tratar da sua saúde. Quem estava com ela nesse momento foi a sua filha, tia Francisca Angélica, tratada por Chichica, a tia Lila, e o pai dela, Ludolfo Costa Lima, que pediu à filha para trazer uma vela para vovó Augusta. O primo Paulo Afonso, na altura com pouco mais de 2 anos de idade, tem lembrança de aparecerem muitas pessoas em casa naquela noite. O tio Tonico, Antônio Gomes de Paiva Júnior, foi quem tratou da certidão de óbito, em que consta a data e o local do falecimento da vovó Augusta, todos os filhos e respetivos cônjuges que lhe sobreviveram, e os bens que deixara.
Esta recoleção biográfica da vovó Augusta jamais teria sido possível sem os contributos fundamentais do primo Paulo Afonso, organizados no seu "Memórias". Com carinho e cuidado, comprometido com a verdade, Paulo Afonso tem sido o mais empenhado zelador das preciosas memórias de nossa família. A ele devo a nova consciência que ganhei sobre os nossos antepassados, além de lhe dedicar grande carinho e admiração.
Finalmente, resta-me concluir com um sentimento de gratidão por compreender a vida de vovó Augusta, enxergando-a como um elemento determinante para toda a nossa família. 
Não me parece justo julgar sem termos todos os elementos objetivos da realidade para o fazer. Em verdade, mesmo quando assim é, ainda podemos ser injustos. Por isso, não vou dar sentenças sobre a vida da nossa vovó Augusta, deixando para cada um as reflexões que achar úteis. Peço a Deus, com a intervenção da Virgem Maria, no entanto, que tenha piedade de sua alma e das alminhas de todos os meus antepassados; que na Sua infinita bondade e misericórdia possa acolhê-los como seus filhos, como uma pequena parte de Si, da mesma forma que os raios de sol são uma parte desse magnífico astro.