sábado, março 26, 2022

Um homem justo, correto e que não gostava de falsidades


Meu avô Toninho, segundo a tia Lila, o descendente mais parecido com Antônio Gomes de Paiva


"Salmos, 11
1.Do mestre de canto. De David. 
Eu abrigo-me no Senhor. 
Porque vós dizeis-me: 
«Foge para os montes, passarinho,
2.porque os injustos retesam o arco, 
ajustando a flecha na corda, 
para atirar ocultamente contra os corações rectos.
3.Quando os fundamentos se corrompem, 
que pode o justo fazer?»
4.O Senhor, porém, está no seu templo santo, 
o Senhor tem o seu trono no céu. 
Os seus olhos contemplam o mundo, 
as suas pupilas examinam os homens.
5.O Senhor examina o justo e o injusto, 
Ele odeia quem ama a violência;
6.Fará chover, sobre os injustos, brasas e enxofre, 
e um furacão violento. É a parte que lhes cabe.
7.Porque o Senhor é justo e ama a justiça, 
e os corações rectos contemplarão a sua face"


Apresentar aqui a memória do meu trisavô Antônio Gomes de Paiva, que a seguir vou chamar de vovô Antônio Gomes, não é uma tarefa fácil: ele faleceu há quase cem anos e a sua ancestralidade (ao menos aparentemente) não está ligada a São Paulo do Muriaé e suas freguesias, como os meus outros antepassados, além disso, ele teve uma vida muito reservada, livre de maledicências que a posteridade quisesse reproduzir.
Ainda assim, este pouco torna-se muito frente ao seu legado de transformação e criação, marcado pela discrição, o sinal fundamental dos amigos da verdade.
Vovô Antônio Gomes era filho de Gomes José de Paiva e Umbelina Rosa de Jesus. Muito pouco se sabe sobre Gomes e Umbelina. Os factos são que eram ambos lavradores e residiam em Rosário da Limeira, onde nasceram seus filhos. 
Tendo em conta as suas próprias declarações nas certidões de nascimento de seus filhos, o vovô Antônio Gomes nasceu na freguesia de Nossa Senhora do Rosário da Limeira, em São Paulo do Muriaé. Sua data de nascimento exata não é conhecida, mas a 29 de Abril de 1889, quando foi testemunha de um casamento em Rosário da Limeira, contava com 25 anos de idade. Daí, podemos afirmar que nasceu em 1863, ou 1864.
Gomes e Umbelina tiveram pelo menos mais três filhos: Galdino José de Paiva, falecido em um acidente com madeiras em 1876; Rita Umbelina de Paiva, que depois casou-se com Germano Alves Pereira; o irmão mais novo do vovô Antônio Gomes era João Gomes de Paiva, que ficou em Guiricema e lá formou família. Por fim, a irmã Hypólita Umbelina de Paiva, possivelmente nascida em 1865, em Rosário da Limeira, onde ela viveu por toda a sua vida. 
Hypólita foi casada com Antônio Calisto Monteiro. Hypólita e Antônio tiveram dois filhos: Gomes José Monteiro e Umbelina Monteiro. Infelizmente, Hypólita faleceu precocemente, vítima de bronquite, a 1 de Novembro de 1894.
A 28 de Setembro de 1889, aquando do nascimento e registro do neto com o seu nome, filho de Hypólita, Gomes José de Paiva ainda era vivo, sendo descrito naquela certidão com a profissão de lavrador e residente em Rosário da Limeira. Em Outubro de 1891, quando nasceu o seu outro neto, José, filho do vovô Antônio Gomes, Gomes José de Paiva já era falecido.
Já quanto a Umbelina, sabe-se que ao menos até abril de 1893, tempo do nascimento do neto Maximiano, meu bisavô, ainda era viva e descrita como residente em Rosário da Limeira.
Com a morte da irmã Hypólita em Novembro de 1894, o vovô Antônio Gomes deve se ter tornado o único apoio de sua mãe Umbelina em Rosário da Limeira. É capaz que a mudança de sua família com a vovó Augusta para Santa Rita do Glória tenha tido por condicionante a necessidade de olhar por Umbelina em Rosário da Limeira.
Contrariando o que se diz na família há algumas gerações, e mesmo o que consta na sua certidão de óbito, o vovô Antônio Gomes não era natural de Guiricema (então, freguesia dos Bagres, Visconde do Rio Branco), mas sim de Rosário da Limeira. No entanto, há curiosas e numerosas evidências que o ligam à freguesia dos Bagres.
A primeira dessas ligações prende-se a sua relação com a família Monteiro, também de Rosário da Limeira, mas com fortes ligações à Freguesia dos Bagres. Embora o seu cunhado Antônio Calisto Monteiro não fosse natural da freguesia dos Bagres (mas sim da freguesia de São Caetano do Xopotó), ele e a irmã do vovô Antônio Gomes casaram-se lá, que era também a residência dos sogros de Hypólita. Além disso, o vovô Antônio Gomes surge associado frequentemente ao cunhado, partilhando com esse a ocupação de negociante, e como residentes na povoação de Rosário da Limeira. Ademais, aquando do falecimento do pequeno José, segundo filho do vovô Antônio Gomes e vovó Augusta, Antônio Francisco Monteiro surge como uma das testemunhas de que o menino morreu de causas naturais e sem assistência médica. 
Mas as coincidências que apontam para a freguesia dos Bagres continuam. A 7 de Abril de 1889, casa-se Antônio Francisco Monteiro Júnior com Theodora Maria de Jesus, sobrinha do vovô Antônio Gomes. Theodora é órfã de pai, Germano Alves Pereira, tio da vovó Augusta, e filha de Rita Umbelina de Paiva. Já o noivo era filho de Antônio Francisco Monteiro e Ana Joaquina de Jesus. Ademais, a certidão de casamento diz que são primos: o que é verdade, já que a vovó Umbelina era da família dos Monteiro. Precisamente, Rita era sobrinha do pai do noivo, pois a sua mãe Umbelina e Antônio Francisco Monteiro eram irmãos. Os padrinhos de casamento foram  o sobrinho Antônio Gomes de Paiva e seu tio Antônio Francisco Monteiro.
Adicionalmente, aquando do falecimento de Hypólita, em 1894, a certidão de óbito foi feita por Manoel Zepherino Xavier, também da família dos Monteiros, pois surge como cunhado de Hypólita.
Por fim, numa ação judicial de 1910, em que foi feita a medição da Fazenda dos Monteiros, surgem como proprietários dos diferentes sítios Gomes José de Paiva, Francisco Antônio Monteiro, Manoel Antônio Monteiro e João Antônio Monteiro, além de Hipólito José Jesus, José Pereira da Costa, José Marciano Pereira e Matheus de Siqueira. Embora Gomes José de Paiva já fosse falecido pelo menos desde 1891, é provável que ainda não tivessem feito as partilhas daquelas terras e surge aqui uma evidente associação entre as famílias. Já a questão de saber onde ficava essa Fazenda dos Monteiros, o mais provável é que fosse em São Paulo do Muriaé, uma vez que o processo foi submetido na sua comarca.
Uma última referência à ligação a Guiricema surge já em 1944, quando é deferido o pedido de Galdino Gomes de Paiva, sobrinho do vovô Antônio Gomes, para que o seu engenho de rapadura em Guiricema fosse transferido a Onofre Vieira Ferraz. Este Galdino teve o mesmo nome do nosso tio Galdino. Um e outro, tiveram o nome em homenagem ao irmão mais velho do vovô Antônio Gomes, Galdino José de Paiva.
Gomes José de Paiva e Umbelina Rosa de Jesus tivessem as suas origens em Prados e Guarapiranga, freguesia de Mariana. Mas em um determinado momento, talvez por conta das terras dos Monteiro, mudaram-se para a freguesia do Rosário da Limeira, onde já nasceram o tio Galdino José, a tia Rita, o vovô Antônio Gomes, a tia Hypólita e o tio João.
Para ir mais a fundo na ancestralidade do vovô Antônio Gomes, é preciso recorrer à tradição familiar. Segundo o primo Paulo Afonso, por informação que obteve de sua mãe, tia Lilia, e esta da vovó Augusta, o Paiva do vovô Antônio Gomes era o mesmo de Mariana Luíza de Paiva, esposa de Belisário Alves Pereira.
Essa indicação seria muito facilitadora se "Paiva" fosse também o sobrenome dos pais de Mariana, no entanto, os seus pais se chamavam Manoel Silvério Vieira de Andrade e Maria do Carmo Fonseca e Silva. De onde, então, teria vindo aquele nome? 
Na pág. 15 do "História de Belisário, Tomo I", a prima Nina Campos diz que Mariana é descendente de Fernão Dias Paes. Os antepassados de Mariana eram de Sumidouro, uma freguesia da cidade de Mariana, portanto, na região das Minas.
Se formos ver a ancestralidade de Mariana Luíza de Paiva, vemos que a afirmação da prima Nina tem muita razão de ser: sua mãe, Maria do Carmo, era filha do português João Fonseca e Silva e de Ana Angélica Dias. 
Não se encontra ainda indicação da ancestralidade de Ana Angélica, mas tendo em conta o testemunho familiar, há razões para crer que fosse filha de Vicente Dias Paes e Marianna Luíza de Paiva. 
O casal viveu em Ouro Preto e experimentou o declínio da mineração de ouro. Ana Angélica não figurou no inventário de Vicente Dias Paes, mas o direito das sucessões da época excluía as filhas casadas das heranças necessárias, portanto, não seria algo invulgar.
Ademais, essa é a única via de ancestralidade que explicaria tanto a repetição do nome "Mariana Luíza de Paiva", dado sem relação com os sobrenomes dos pais, além de conformar a indicação de que ela seria uma descendente de Fernão Dias Paes.
Agora resta saber quem foi Marianna Luíza de Paiva, bisavó da nossa Mariana Luíza de Paiva, esposa de Belisário Alves Pereira. Essa referência é fundamental, já que o Paiva do vovô Antônio Gomes é o mesmo, ou seja, é o da mesma família Paiva, que o da avó de sua esposa Maria Augusta (Mariana Luíza de Paiva) que, por sua vez recebeu o nome em homenagem à sua bisavó (Marianna Luíza de Paiva). Assim, ao se verificar a origem do Paiva da bisavó da nossa Mariana, encontramos também a origem do vovô Antônio Gomes, mesmo sem conseguir refazer na inteireza a sua linha.
Marianna Luíza de Paiva nasceu em 1756 em Guarapiranga, freguesia de Mariana. O seu nascimento se deu no auge do período da mineração do ouro. Ela foi a terceira filha de Manoel Martins de Paiva e Thereza Maria da Silveira. O seu pai foi um rico minerador português, que emigrou do Porto para as Minas Gerais já com 40 anos de idade. Dele sabe-se que trouxe parte da família consigo, além de nunca se ter esquecido das suas origens e dos familiares que ficaram em Portugal.
Manoel Martins de Paiva teria sido, portanto, o primeiro Paiva da nossa linha no Brasil, uma vez que, segundo a vovó Augusta, o sobrenome do vovô Antônio Gomes seria o mesmo da sua avó Mariana, e esta seria descendente do referido português, ficaria então a questão respondida. Falta agora refazer a linha do vovô Antônio Gomes, ou seja, identificar quem foram os pais de Gomes José de Paiva e Umbelina Rosa de Jesus, e de onde vieram, para que se possa confirmar essa hipótese.

Forte de São João da Foz do Douro, no Porto: A freguesia onde nasceu Manoel Martins de Paiva

À parte da questão da ancestralidade, que é também a nossa, e daí evocar um profundo interesse, é devida uma palavra para se dizer, afinal, quem foi o vovô Antônio Gomes.
Muito de sua vida já foi contado quando fiz a crônica biográfica da vida da vovó Augusta: casaram-se em Rosário da Limeira por volta de 1887. Tiveram um total de 12 filhos, os primeiros em Rosário da Limeira, e os outros em Santa Rita do Glória. Para criação de seus filhos, mas suspeito que mesmo para a formação da família, muito contribuíram os tios de vovó Augusta: José Belisário Alves Pereira e Francisca Dias Paes.
Quanto ao seu casamento com a vovó Augusta, há poucos factos e algumas suposições bem fundadas, ao que me parece. Primeiro, eles tinham uma diferença de idades de ao menos 7 anos: no tempo da celebração do matrimônio o vovô Antônio Gomes tinha 23 anos e a vovó Augusta, 16. 
O enlace deve se ter dado através de um dos tios da vovó Augusta, José Belisário, sobretudo, pois ela era órfã de pai. Além disso, sua mãe casara-se com Cândido José Vicente em 1883, com ele formando uma nova família.
Em que pese poder ter havido ali um arranjo de conveniência de parte a parte, (pois a vovó Augusta precisava se casar, e o jovem vovô Antônio Gomes pode ter tido a ambição de se associar à família dela, proprietária de muitas terras na região), a verdade é que as mentalidades se alinhavam: ela era de temperamento forte e expansiva, uma mulher orgulhosa e algo dominadora; já ele parece ter sido um homem mais sutil, calmo e inclinado para uma vida reservada, portanto, de temperamento mais contido. Se fossem os dois bicudos, não se teriam beijado!
Provavelmente lá pelo fim do século XIX, ou início do século XX, vieram para Santa Rita do Glória por intermédio do tio da vovó Augusta, José Belisário Alves Pereira, que doou algumas terras ao vovô António Gomes, como foi o caso do sítio do Garganta, na fazenda Santa Cruz.
Lá o vovô Antônio Gomes deixou algum legado, pois construiu a casa sede do sítio. Não se notabilizou por grandes conhecimentos de arquitetura ou engenharia, já que a casa foi feita no meio alto das montanhas, longe de curso de água corrente ou poço de onde pudesse ser retirada, obrigando a se fazer um penoso percurso. Depois, a localização não foi bem estudada, pois ficava entre duas encostas, e daí a incidência solar ficava muito prejudicada. Assim, a casa oferecia condições que beiravam a insalubridade. 
O vovô Antônio Gomes não deve ter experimentado essas dificuldades, pois tinha casa no distrito de Santa Rita (vivia na povoação, assim como fez em Rosário da Limeira, ao menos desde 1892), a casa da Rua da ponte, com o quintal que ia ter ao rio Glória, onde ele fazia a curva. Hoje onde ficava essa casa está o Posto de Saúde batizado com o nome de um dos seus descendentes: Maximiano Gomes Martins.
Para além desse sítio do Garganta, possuiu também outras terras, como o ótimo sítio do Retiro, que fica no córrego dos Alves. Assim, continuou a viver da agricultura depois de terem vindo para Santa Rita.
Sobre a sua forma de estar na vida, era um homem reservado, como já disse. Aliás, muitos na nossa família guardam essa índole mais recatada e contida, sendo pessoas incapazes de uma brutalidade, uma feição de comportamento que só é saudável se for associada ao amor à verdade e à retidão numa vida ética.
A mansidão do comportamento, no entanto, contrasta com a forte convicção na defesa da correção. Um impulso que pode se assumir como uma cólera cega em face da injustiça e do mal entendido. Assim é porque a bondade suportada com convicção exige a defesa da justiça para ordenar com alguma estabilidade a natural ordem de sofrimento do mundo, na forma de uma vida pelas virtudes.
A tia Lila tinha 10 anos de idade quando o vovô Antônio Gomes faleceu, em 1925. Além de se lembrar da aparência dele, ao ponto de afirmar que entre as dezenas de descendentes, o meu avô Toninho seria o mais parecido de todos, também conta uma história que ilustra o seu comportamento.
Nas palavras do primo Paulo Afonso: "Mamãe contava que vovô Antônio Gomes era um homem justo, correto e que não gostava de falsidades. 
Um dia a casa do padre Zé Maria apareceu pichada, o que causou um grande alvoroço no então distrito. Um compadre do vovô o procurou para conjecturar: 
'- Tá sabendo o que aconteceu na casa do padre Zé Maria, compadre? Que absurdo! Que falta de respeito! É muita coragem fazer um trem desses! Um homem tão bom como o padre Zé Maria! Quem você acha que poderia ter feito uma barbaridade dessas, compadre?' 
'- Olha, compadre, quem fez foi fulano e quem mandou foi você!"
O vovô Antônio Gomes faleceu na sua casa na rua da Ponte, foi numa terça-feira, dia 10 de Março de 1925, às 16:30hs, de "morte natural", segundo o atestado prestado por Alcino Bicalho e a certidão de óbito em que foi declarante o seu genro, Vicente de Paula Lima. Tinha apenas 61 anos de idade. Deixou a vovó Augusta viúva ainda com quatro filhos menores de idade.
Parece que deixou boas heranças aos filhos, pois pelo relato de Paulo Afonso, o tio Afonso herdou 3 alqueires na Fazenda Santa Cruz, no sítio do Garganta, e mais metade do sítio do Retiro, ficando a outra metade para o meu bisavô Maximiano. A vovó Augusta deve ter ficado com a parte alta do sítio do Garganta, onde foi morar numa determinada altura na casa sede feita pelo vovô Antônio Gomes. Acredito que o apego à memória dele, associada àquela casa, feita por ele, tenha sido ao menos parte da razão da teimosia dela em não querer se mudar para a parte de baixo do sítio, perto da cachoeira, fonte de água corrente, e com melhor exposição solar, como queria o tio Afonso. Quando ela finalmente concordou em se mudar, o tio Afonso demoliu a casa velha e fez a nova exatamente no mesmo formato da casa antiga, para agradar à sua mãe viúva.
Embora tenha restado do vovô Antônio Gomes tão pouca memória, parece-me o suficiente para o considerar como um justo, o que muito me orgulha. Que Deus o tenha na sua infinita misericórdia.