A minha edição da "Antologia Poética" de Vinicius de Moraes é de 1980, o mesmo ano de sua morte. Não por acaso, os direitos autorais do livro estavam direcionados ao espólio de Vinicius de Moraes, ou seja, ou ente passivo de figurar em juízo que representava os bens que seriam divididos na sua herança. O propósito dessa introdução, entretanto, não é ensinar direito de família à ninguém, mas o de lembrar o conceito de uma palavra que não é muito usada, mas que remete ao que quero discutir. Vamos além: espoliar é mesmo tirar o que havia sobrado, quase que liquidar, por isso espólio significa esse resto que sobrou depois de um grande desastre, o "repasto das feras", conforme Charles Baudelaire referia-se ao seu próprio coração.
As guerras, assim como os defuntos e os frustados sentimentalmente, também deixam o seu espólio. O espólio de guerra é precisamente das entidades mais curiosas que podem existir, todos lutam por ele destruindo-o. Uns acham que talvez não seja preciso preocupar-se mais com essa questão metafísica dos espólios de guerra, já que os conflitos são em menor escala do que no passado, mas o exemplo material do espólio de guerra serve para remissões.
Não seria uma espécie de espólio de guerra, se visto como o espólio de um esforço, o que sobra de uma amizade depois de uma discussão, ou de um amor depois de uma desilusão? Esse ranço terrível, uma espécie de gosto ruim que não sai da boca, a um apressado poeta novo talvez o gosto de um interior apodrecido, serve para atestar que houve bom sentimento, se é que ainda não há e está apenas machucado, mas é culpa na mesma e escraviza sem remorso. Talvez seja ainda mais triste sentir esse gosto porque diante dos olhos há esse monumento a lembrar ao culpado o seu crime: o espólio da sua guerra particular, não propriamente, portanto, com a outra pessoa, mas consigo mesmo.
Encará-lo todos os dias, dizer "bom dia, resto do que fui" comparar o que sobrou da vida com o que foi antes, imaginar o quotidiano da ex-namorada, se ainda chora, se o que ficou foi uma boa lembrança, os amigos se angustiam-se, se sentem medo nas madrugadas de assombro em que o orgulho ferido impede-lhes de ligar e dizer ao telefone: "o conhaque não me foi suficiente, preciso de suas idéias reacionárias pra rir um pouco, abra sua garrafa". Nostalgias cheias de tristeza tomam conta dessas conversas com amigos antigos que não mais convivem, confesso aqui que tenho pavor dessas conversas porque resta delas uma melancolia pesada, que não convém nada a quem procura os amigos para alegrar-se ou para tratar com eles. Atinge-me, exatamente, a visão do espólio de guerra, como que grandes montes de entulho do que foi o prédio em que juntos estudamos, rimos e sinceramente fomos amigos verdadeiros, a praça linda com sua tarde de inverno seca e luminosa em que a cabeça da namorada junto ao peito fez o mundo inteiro ganhar novo sentido, a lágrima de despedida que enternece com um vigor inacreditável nas assombrosas estações ferroviárias, rodoviárias, aeroviárias e portuárias se é que existem, em qualquer desses escabrosos lugares em que se abraça e beija por último aqueles que partem e são amados.
Espólios na memória, espólios da guerra particular que se trava... Talvez todo esse meu esforço em descrever esse sentimento de perda seja também um espólio na medida em que fique evidente o quanto me custa manter a coerência dessa idéia e dessa metáfora e no fim reste ao leitor que tudo isso é uma sobra impotente e não um esforço digno de ser considerado...
Mas de todos os espólios, mesmo que seguidos do ranço da perda, mesmo símbolos de uma derrota, dentro de cada um há um símbolo que eu prezo, essecial à liberdade e que redime minha tristeza melhor que o bom humor dos meus amigos: a coragem de ter tentado, a honra de não ter traído, a paz de saber que não sairá ninguém dos escombros de guerra.