Ontem, pela razão de ir a uma farmácia no horário de almoço, pude ver a prova do merecimento do nome dessa cidade em que estou vivendo por esses dias: da avenida Raja Gabaglia tive uma vista linda da cidade de Belo Horizonte, e linda por ser ao mesmo tempo melancólica, lívida e quieta, tudo o que a cidade parece não ser nas ruas, apesar de ser mesmo linda de fato.
Toda essa confusão de noções sobre belo, triste e belo de novo é um pouco da natureza da capital mineira: a um desavisado forasteiro sua feição de metrópole oprime e assusta, mas por trás dessa impressão surge outra mais verdadeira e menos agressiva: a da grande reunião de mineiros.
A infinidade dos bares que não se fecham às 2 da manhã (mas sempre às 3 ou 4 horas) cheios de gente rindo ou brincando uns com os outros, festejando algo que nem eles mesmos se lembram quando voltam para casa.
Outra curiosidade são as palavras mais pronunciadas nos seus bares: "galo", "cruzeiro" e vez ou outra "coelho" saem sempre com emoção, umas vezes como diminutivos, com depreciação e algum rancor tolo dos mais radicais: "o galinho perdeu a briga, levou uma esporada na fronte", ou então a batida "está aberta a temporada de caça à raposa", e tradicionalmente apelam para a gastronomia, numa metáfora cheia desses simbolismos do futebol mineiro: "frango assado" ou "coelho ao molho pardo", ou também apelo para a moda "essa raposa já apanhou tanto que nem casaco de pele se pode fazer com ela"; outras vem como aumentativos, as defesas apaixonadas, os elogios "galo forte vingador!" como diz o hino do Clube Atlético Mineiro, ou então "a estratégia, qualidade maior das raposas, garantiu-lhe a vitória sobre seus caçadores". Os bares fervilham com essas brincadeiras, que nos estádios atingem seu ponto alto, sim, os templos do esporte mineiro: Mineirão, Independência e Mineirinho, como são chamados os seus estádios.
A região em que ficam alguns desses templos é também um marco de Belo Horizonte, principalmente pelo cheiro de praia que normalmente vem da lagoa da Pampulha, lugar em que normalmente os do bairro usam para suas caminhadas pelas largas calçadas, cheias de bancos com namoradinhos, numa margem a igreja de São Francisco, ou igrejinha da Pampulha, marco do modernismo, arte aliada de Niemayer e Portinari que engrandece a lembrança montanhosa de Minas Gerais. Em frente à lagoa monumentos, gramados e um parque de diversões lá instalado há mais de 50 anos convidam para não deixar de acreditar nesse espírito de lazer e descontração da Pampulha.
Tanto assim que nos dias de clássico do futebol mineiro, a avenida que dá acesso à Pampulha fica engarrafada no sentido de vinda de veículos e quem vai no sentido contrário pode ver uma fila quase interminável de carros com bandeiras alvinegras, azuis, verdes e gente sentada na porta do carro, com metade do corpo dentro do carro e a outra metade a gritar numa empolgação cheia de paixão e de algum álcool. O melhor, entretanto, é que no fim do jogo, a cidade, metrópole nacional que é, toma ares de interior, fica tomada de torcedores do time vencedor a passear pelas ruas com o som do carro no maior volume possível, numa clara vingança ao perdedor por uma antiga derrota imposta, derrota que todos podem ter esquecido, mas que ele guardou para desforrar naquele dia, e é sempre assim, num ritual que não se cansam de repetir e de que não se dão conta. Está aí outro ponto curioso da capital mineira: o seu jeito interiorano, já que é gigantesca mas tem um jeito singelo.
Uma cidade mesmo feminina, tem mulheres atormentadas entre a feminilidade e a dureza de parecer firmes e decididas profissionalmente, fato comum a toda sociedade moderna, mas que em Belo Horizonte parece diferente: a ternura subentendida das mulheres. O mineiro da capital às vezes é desatento à ternura paralisante que guardam as suas filhas, namoradas, esposas e amigas: são naturalmente doces, mas as angústias caladas e o frêmito de competição, que brigam sem parar e não desistem de confundi-las quando se perguntam o que é preciso para ser feliz, transtornam essa natureza.
Suas mulheres são receosas de que eles não percebam o que elas não podem dizer com palavras, que guardam um amor quente e imerso em fantasias, magia, encantamentos pueris e suavidades, algo que compete a esses machos da capital verem e trazerem ao mundo, a fim de substituir o trato grosseiro que a pressa de suas vidas insiste em reprimir e ocultar e que reprimem e ocultam mais terrivelmente nas moças e só dos seus olhos é que não somem, provavelmente por quererem muitíssimo que as descubram e esse desejo é a constante de seu pensamento.
De todos os dramas velados, entretanto, transparece no povo o drama de suportar as durezas da vida profissional com dignidade: o desemprego, o destempero dos chefes, a jornada longa e insalubre dos serviços mais perigosos, isso sem contar as filas nos órgãos públicos, na lotação dos circulares, no trânsito difícil, ingratidões e vacilos, mas não reparei em reclamações substituindo sua ação e em geral sua paciência em contornar esses problemas.
Na minha parca experiência de poucas semanas é que me dei conta, com a vista da cidade a partir da avenida Raja Gabaglia, o quão cheia de detalhes e condições é essa capital, mundo dentro do mundo que se acha que vê, cheia de melancolia velada, mas também cheia de esperança e beleza nas longas avenidas com seus canteiros de árvores. O seu caráter é o seu nome.