terça-feira, maio 17, 2005

Marcha do tempo

Talvez por saber o ritmo que o tempo tem, decidi imprimir-lhe a marcha que eu desejo, afim de prolongar (tanto quanto possível à minha habilidade) as horas de alegria, ou ao menos de paz, e fazer correr mais ligeiro as de tédio, maquinez no agir, discussões vazias e as dedicadas à pura burocracia e atividades correlatas que não representam em absoluto algo que interesse muito a alguém.
Assim, consegui afinal não fazer novos aborrecimentos das longas esperas, quando a ansiedade costuma agir de maneira traiçoeira, criando sonhos inverossímeis e tolos, ou angustiando e provocando idéias toscas de julgamentos apressados, as famosas "tragédias anunciadas" para quem acompanha de fora com a cabeça fria. Percebo a inutilidade de isso tudo e detenho-me em deixar passar o tempo agindo maquinalmente e não empenhando em nenhuma ação qualquer sentimento, qualquer cortesia além do que exige o trato social, qualquer esperança ou consideração verdadeira, apenas abro mão de mim mesmo, de quem sou e assumo a beca de quem deve cumprir um objetivo visando um fim maior, como a águia que empurra o filhote do ninho, não para derrubá-lo no chão, mas para que vença o medo e voe, também assim, suportar os dias vazios e sem sentido é um sacrifício que se justifica pela esperança de enfim salvar alguém no futuro, quem sabe alguém que poderá finalmente não ter que apertar botões simplesmente, girar maçanetas e gritar o nome da secretária, mas alguém que não se sinta culpado de fazer tudo isso, pois faz com um propósito que não é mesquinho.
Da mesma maneira, deixo-me entreter com as coisas lúdicas, e desligo a minha perspicácia analítica de tudo e de todos para simplesmente deixar os cheiros, toques, gostos, sons e paisagens tomarem o formato que a realidade lhes deu, o formato puro que a nossa civilização não tocou e transformou num objeto de valor menor que esse absoluto e puro valor que tem por natureza. Nesses momentos, inclusive, sinto os ombros leves e leves as mãos que não se ocupam de outras coisas, a não ser de ficarem quietas num afago, de escrevem se o coração pedir clementemente que escrevam, de se meter por longos momentos debaixo dos braços em algo que lembra um auto-abraço, e ali são mesmo mãos e não um instrumento vulgar para essas ações do dia-a-dia.
Fato é que o tempo maquinal, como chamo esse tempo sem sentido que se dedica às coisas que não se acredita, tem passado rápido, com um ou outro revés. Precisamente irrita imenso a maçada de ouvir as bobagens que se diz gratuitamente, a prepotência e a arrogância de quem se aliena num mundo de regras frágeis e combinadas, a injustiça e a soberba levantando-se agressivamente contra tudo de sincero que lhe dê algum espaço. As horas de alegria, entretanto, tenho bem guardadas na memória e me alegro e existo quando me lembro delas, como se fizesse dois dias virarem dez quando houve algo realmente bom a ser lembrado. Como se abrisse bem as narinas depois de vários minutos prendendo a respiração, encho realmente o coração nesses momentos depois de grandes jejuns, daí sinto pena dos pobres, lembro da família, sinto culpa, raiva, carinho, lembro-me de mim mesmo e até escrevo crônicas. Às vezes é tão bom, que sinto vontade de voltar para a medida do tempo maquinal, só para não fazer dessa alegria uma coisa vulgar ou ordinária. No fim das contas é realmente assim, há sempre duas vidas separadas e não há como uni-las completamente sem prejudicar uma ou ambas.
O segredo é fazer o tempo passar de acordo com os pedidos de clemência do coração para escrever essas idéias ou então embrutecer por dentro, mas apenas o necessário e sempre provisoriamente, essa é a marcha do meu caminho.