sexta-feira, março 31, 2006

Uma moça mira o mar

À beira do mar chega uma brisa que muito viajou antes de encontrar o continente, foram milhas e milhas onde a pressão atmosférica fez o ar mover-se a uma tal velocidade e sem nenhum obstáculo, que enfim encontrou o continente encorpado de sal, umidecido pela água, bem disposto para inspirar.

Olhar o mar... ver que a imensidão não tem limite, que o limite o mundo é que tem, na fronteira da curvatura da terra. Mas os olhos não se detêm às fronteiras, vêem além.

Como se houvesse uma torre imensa à beira do mar, no topo da qual fosse possível ver todos os reinos do mundo, insistem os olhos em perseguir o horizonte de onde segue oculto o mar.

Pois digo que não há horizonte mais bonito.

Vivamente me lembro de uma vista no campus da Universidade Federal de Juiz de Fora onde era possível contemplar um horizonte aberto. Ficava na praça cívica, próximo à Biblioteca Central, um grande vão aberto onde não se intrometia montanha nenhuma, nem prédio nenhum, era apenas um largo rebaixado de bosque com o lago do campus no fundo e mais abaixo, há uns 3 quilômetros, a cidade de Juiz de Fora. O sol se põe bem à frente de quem admira a paisagem, de modo que a linha da cidade fica dourada e com pigmentos alaranjados as folhas das árvores e o lago.

Ao fim do dia, via-se o pôr-do-sol mais bonito do mundo acadêmico, engrandecido pelo fato de que quem vive nas montanhas não tem horizontes abertos: há sempre algo à frente para interromper a vista, como se vivéssemos numa liberdade cercada, além de tardia.

Era ali que o coração liqüidava as mesquinhas preocupações e um bom vento livre, vindo talvez do litoral, soprava os cabelos, esfriava o corpo e convidava a um café na cantina da biblioteca. Havia filosofia demais para aquela vista.

Considerávamos, eu e os demais miradores, que valia morrer olhando para algo assim, que se fosse para ter fixada na alma uma última lembrança da vida, eternamente cristalizada, que fosse uma como aquela boa vista.

Não fosse a morte o argumento preferido dos poetas fatalistas, não fosse o morrer a mirar o mar a final sutileza da balada da Moça do Miramar, de entristecida poesia com essa mesma figura de linguagem, teria entre os meus sentimentos o desejo dessa morte, evidentemente secreto. Mas não é exatamente assim comigo.

Do fundo do coração, sei de uma coisa: meu último olhar não será para um livre horizonte sem fim, onde supostamente significaria ver liberdade, ou onde questionaria a metafísica do mundo... Será para dentro dos olhos do meu amor, donde colherei minha gota de transbordo da coragem, minha bandeira altaneira da esperança, minha alegria perene.

Não preciso estar em lugar nenhum para ver o infinito, senão perto deles, pois tenho nestes olhos o meu mar.

quarta-feira, março 29, 2006

Leve balanço

Vi Belo Horizonte pequena a desaparecer atrás de mim de dentro de um avião de élices: pequenino e bastante barulhento, mas que nas curvas fazia um leve balanço e cessava de tremer tanto.
Não supunha que houvesse linha aérea entre Belo Horizonte e outras cidades assim tão próximas, mas a prosperidade do Triângulo Mineiro fez sugir essa escala ao destino chamado Uberlândia, enquanto a nossa Manchester mineira, Juiz de Fora, continua com uma única linha regular para São Paulo: saudade do tempo em que era pioneira, pois agora há estudantes de mais e dinheiro de menos!
Nunca tinha vindo a Araxá, aqui tudo é muito plano e as ruas em geral bem largas: uma satisfação para quem está acostumado a ladeiras e curvas bem fechadas. É a terra de "Dona Beja" do Grande Hotel de águas termais, mas atraiu-me para cá o serviço: amanhã há uma audiência, a colhida de um testemunho.
Aterrissei distraído quando do avião tive um encontro quase aéreo, mesmo sem acreditar logo de início. Talvez pelo whisky servido à bordo, talvez pela docuça de curvar àquela velocidade e altura, desvencilhei-me do cinto aparentemente inútil num acidente aéreo, e encontrei em pleno vôo, desta vez sem élices barulhentas, mas de braços abertos e em frente a um horizonte lindo e aberto, um passarinho.
Desencantado de sua própria liberdade, planava bem longe, rumava a um destino desimportante e perseguido por puro instinto, rezava secretamente afeto, fomentava dentre as asas ensebadas amor, dava de comer no biquinho. Enfim sorri, depois de tantos dias tristes, meu melhor e mais franco sorriso para aquela desenvoltura nas acrobacias.
O que fazia esse bicho em Araxá, meu Deus? Não sei. Mas está por aqui. Eu que já o vi tantas vezes e conheço tão bem a sua natureza, eu que de um bicho desses fui companheiro e dono por longos anos, senti o peito espremer angústia, a garganta apertar sozinha e os olhos marejarem...
Voou depois para um lugar impercebido, sem dar um pio, sem qualquer sinal maior. Mas esteve aqui perto de mim, disse-me o seu "olá" e tão lindo fez-me lembrar de si com todo mérito que fazem por merecer os pássaros, criaturinhas muito livres e muito objetivas nos seus propósitos e alguns deles, como esse amiguinho, gloriosamente leal, desgraçadamente inesquecível.
Queria ter um bico como o dele, asas coloridas como as dele, queria mesmo era voar como ele quando fosse voltar para casa... mas não sou passarinho, vôo em aviões de élices, por vezes melancolicamente deselegantes.

segunda-feira, março 27, 2006

Minha crônica favorita

Susana, flor de agosto

A redação seria a coisa mais triste do mundo, não fosse a presença inesperada de Susana. Susana com seus 13 anos em flor, sua sábia beleza, seu doce e triste olhar castanho e sua perfeita desenvoltura encheram a redação de uma vida inesperada, fazendo-me por alguns instantes esquecer a mesquinhez do cotidiano. Ela entrou nos amplos espaços do meu tédio com passos graciosos de dançarina e ficou a girar por ali, balançando os cabelos longos sobre os ombros firmes de adolescente. Pus-me a adorá-la como nunca dantes, àquela menina a quem dei vida, e nunca senti mais forte, doce, secreto, o elo que a ela me prende.Talvez para os outros sua jovem figura trouxesse apenas o encanto uma flor em desabrochamento. Para mim, seu pai, trouxe uma sensação de indizível amor, de um triste, fatal e pacífico amor sem remédio. Revia-a pequenina em meus braços diante de um branco céu crepuscular olhar para o alto anunciando-me que as estrelinhas estavam acordando. Revi-a a me olhar do seu modo sério quando lhe contava histórias, longas histórias por vezes inventadas e que nunca eram bastantes para a sua imaginação insone. Revi-a crescendo diante de mim qual planta misteriosa, estirando o caule, distendendo os ramos numa ânsia saudável de crescer. Agora ali estava ela a dançar sua maravilhosa dança ritual só para mim, nos infinitos espaços do meu silêncio – Susana, uma vida tirada de mim, uma menina que eu fiz para amar com a maior doçura do mundo: Susana, flor de agosto, filha minha muito amada, para quem eu cantei meus mais sentidos cantos e sobre cujo pequenino rosto adormecido despetalei as mais lindas pétalas do meu carinho.

Vinicius de Moraes
10.1953
in

domingo, março 26, 2006

Dialética

Não é raro que a madrugada queime nos meus olhos, doce e bem vinda, embora no dia seguinte os mesmos olhos de contemplação tornem-se olhos arenosos, pesados e imprecisos.
É da própria essência da madrugada o mistério e o envolvimento, a sutileza e a plena consciência da falta de perenidade que lhe informa.
Calha bem respirar a brisa fria ao silêncio do mundo que dorme, sonhando acordado que o dia seguinte trará entendimentos mais inteligentes, que faltará aquela má-fé habitual, que se atrasará dormindo mais cinco segundos por preguiça aquela desgraçada inveja, filhinha dileta da vaidade e do orgulho.
Vem o dia com sol forte, e com olhos cheios de areia vejo as mesmas cenas: "não falamos o mesmo idioma", é normal pensar então, pois o entendimento é sempre difícil!
Segue o dia da rotina comum com apenas um rastro desses pensamentos, quase esquecida aquela sensação boa da madrugada. Um ceticismo sempre sarcástico e disciplinador é o vencedor habitual. Desacredita o mundo e tudo mais, como se colocasse os livros que já leu na estante rindo com confiança, enfim, também ele um tanto orgulhoso.
Vêm os colegas de hábito desejar "bom dia", comentamos do fim de semana, dos copos que esvaziamos, do futebol e da pena de não ter ido no estádio - que jogo fantástico! Sorrimos, vamos ao trabalho, concentramo-nos, afligimo-nos por qualquer prazo próximo, almoçamos, trabalhamos mais um tanto para o êxito do escritório e em casa finalmente, cansado e aborrecido com qualquer coisa pequena, levanto a alma para o alto com um banho bom, e com os pensamentos finalmente vagos de novo, já posso desacreditar tudo dentro do meu particular modo de pensar, achando graça do absurdo do mundo e não vertendo pra dentro nada que venha dele.
Venho aqui por uma curiosidade, a mesma talvez que tenho quando concorro - não pela vitória, mas pela incerteza do resultado - se consigo descobrir alguém que saiba ler no idioma em que escrevo.
Fora essas surpresas e o modo delicado como sorri minha avó, tudo no mundo é vão.

quarta-feira, março 22, 2006

Num copo de café

Passei em frente a uma vitrine da Savassi, tinham chegado peças novas da coleção de inverno. Acho que as mais caras, já que o verão finalmente está a passar.
Muito bem montada a vitrine. Tinha lá uns três manequins, um sofá, um abajour, uma mesinha de centro bem pequena e uns outros adornos elegantes. Parei e fiquei a olhar. Os manequins nus não pareciam envergonhados e se toda gente fosse assim era muito melhor, refleti mais por hábito do que por ter chegado a uma conclusão brilhante.
Logo entrou o rapaz que organizava as roupas. Tavam amarrotas. Ele vestiu os manequins mesmo assim. Achei engraçado pois, afinal, eles não se importam muito em vestir roupas naquele estado, ao menos não ficava à mostra aquele simulacro de sexo que os seus criadres inspirados imaginaram para reproduzir fielmente o corpo humano.
Finalmente, depois de agasalhar a todos os bonecos, deu comigo de frente pra cena toda. Sorriu e perguntou se estava bom. Respondi que sim, mas sem entusiasmo. O rapaz notou e convidou-me para entrar na loja.
Era um rapaz, mas nem tão novo assim, tinha 33 anos, chama-se Artur, e é vendedor há uns 4 naquela mesma loja. Naquela manhã trocava as roupas dos manequins. Perguntou como faria. Disse-lhe que não colocaria o rapaz a olhar para a moça, deixando-os de lado para a rua, daí as pessoas não veriam a estampa das blusas, que eram bonitas. Outra coisa que sugeri foi que colocasse a outra moça deitada no sofá, já que tinha boas pernas falsas e a pose iria chamar atenção. Ele concordou. Isso passou-se há 3 dias.
Encontrei com o rapaz no centro da cidade hoje. Tomava um café antes de seguir para o Fórum. Aproximou-se e disse que a vitrine tava fazendo sucesso, que as blusas e jaquetas tinham se esgotado e encomendavam outras e agradeceu de novo. Fiquei contente e ri devagar. Era pai de uma boa estratégia de vendas, tinha lá direito a uma comissão! Mas valeu mesmo pelo divertimento daquilo.
Veio à lembrança o modo como fazia batalhas na infância com soldadinhos de chumbo. Bolava estratégias, armava grandes confrontos! Emboscadas surpreendentes eram a prova de um exército bem disposto para o combate, que não perde de vista o ideal da vitória! Mas só havia um soldado na brincadeira, e era eu mesmo.
Na loja também só havia um manequim, e era o Artur. Ao me convidar para ir até lá dar a minha opinião e mudar tudo, acho que estava me convidando para tomar parte na sua brincadeira e fez de mim um rapaz que mostrava como as pessoas deviam fazer pose com as novas roupas da estação mais fria do ano, isso, é claro, através dos meus representantes inanimados!
Vertendo um e outro gole daquele café de depois do almoço, que serve mais para despertar da sesta do que para agradar o paladar, achava-me muito bem vestido para a nova estação, com a expressão multiplicada pela representação da minha vontade, orgulhoso da minha liderança, segui com os meus trajes formais de inverno por sobre o corpo, senhor dos soldadinhos de chumbo e agora também de manequins de lojas de grife.