sábado, novembro 30, 2019

Rapariga da Foz



Chovia bastante no início da manhã daquele dia. Quando me meti no carro para ir à universidade já havia amainado, mas ainda assim estava composto o cenário de Outono do Porto: chuva fina, pouco vento e frio. Não era um dia feio, no entanto e ao contrário do que a sugestão indica: as árvores coloriam as ruas de vermelho e laranja, e mesmo as folhas caídas, já podres no seu castanho a indicar a morte, tinham o seu encanto harmonioso. Como é natural, estava muito alinhado e bem disposto com aquela forma do mundo e fui também eu à minha vida para fazer parte dela.
A meio do caminho, na altura em que temos o mar à esquerda, naquele dia a rebentar umas ondas furiosas, vi a caminhar na calçada oposta uma rapariga com uma linda parka de cor amarelada, semelhante à lã no estado natural. Não levava guarda-chuvas e, por isso mesmo, tinha o capucho a cobrir a cabeça. Ainda assim não tinha a cabeça baixa: olhava o horizonte de frente e levava com a chuva fina no rosto. Uns cabelos de um louro escuro, soprados pelo vento, terminavam de apresentar aquela figura inusitada, a marchar em direção às suas aulas na Universidade Católica Portuguesa.
Parado a esperar que o sinal finalmente apontasse para o green go, distraí-me com a resolução da rapariga em apreciar a chuva... Não parecia nada imersa nos próprios pensamentos, como está todo o resto desta linda e sonâmbula cidade do Porto. Sem surpresa, ela virou a cabeça para o meu lado e reparou no meu olhar fixo, o que me deixou um bocado constrangido. 
Depois de trabalhar na primeira parte da manhã, já a contemplar as minhas construções jurídicas e muitíssimo envolvido com os artigos e a prova de doutoramento, esqueci-me daquilo completamente, para o meu azar. 
Entrei no bar a pensar na minha meia de leite, pus-me na fila e ensaiei um sorriso para o rapaz atrás da caixa, com quem já tinha feito amizade devido ao gosto dele pelo Boavista. Fui me sentar e só ao pousar a chávena reparei que à minha esquerda, no fundo do bar, olhava-me discretamente a rapariga. Junto com uma amiga, já sem a parka para lhe ocultar a figura, com os cabelos soltos e perfeitamente maquiada, falava pausadamente e dobrava e desdobrava as pontas do guardanapo de papel reciclado, como se estivesse a ilustrar os seus pontos de vista. Quando furtivamente ia buscar os meus olhos, vez por outra mexia no cabelo, rasgando uns sorrisos muito naturais e bonitos. Afinal também havia apreciado o nosso "encontro" mais cedo.
Quando ia saindo e passou por mim, finalmente pude ver que tinha uns olhos verdes acastanhados, de uma cor muito diferente. Como um prisma mágico, brilharam intensamente o mistério que vive em si e que desesperadamente lhe pede para ser partilhado com o resto do mundo.
Uns olhos como as folhas deste Outono que cumprem o seu ciclo de vida. Não quer nada além do seu momento. A rapariga ficou-me no pensamento com aquela decisão de sentir a chuva no rosto, e naquele instante ela esteve presente no mundo, inserida em todo o grande quadro das coisas e dos seres. Que grande presença!
Os anos talvez lhe retirem esse viçoso encanto. Poderá ter desilusões de amor, poderão lhe fazer promessas que serão descumpridas, poderá perder pessoas e posições que agora considera partes fundamentais da sua vida. Espero mesmo que ela não se torne uma dessas balzaquianas ressentidas, cheias de suspeição e incapazes de dar nada de verdadeiro aos outros.
Tanta vez vi o afeto verdadeiro se dissolver em mágoa, e a mágoa escorrer para dentro do espírito, sendo aceita e, assim, enegrecendo aquelas cores vivas de um outono que elas também um dia foram... Depois disso, não há mais uma mulher completa, mas sim uma versão distorcida da sua grande feminilidade, a simular uns sorrisos capazes de enganar os incautos, mas que nunca me conseguiram cativar. Em segredo, a se autossabotar e a lançar culpas com grande velocidade, cultuam seus corações rotos sem nada mais ter para oferecer. Fingem que podem amar enquanto lhes paira por cima o medo e o ego. Os fingidores são sempre figuras tristes.
A menina da Foz ainda não tem nenhum desses vícios: o sorriso é espontâneo, os gestos são simples e despretensiosos, e arrisco dizer que poderia se comprometer sem necessidade se sentisse que havia ali a naturalidade em ser e estar que ela aprecia e incorpora. Que os dias futuros conheçam sempre a virtude dela!
No entanto, para a realidade que importa, especular o que será é uma perda de tempo. Naquele momento em que nos ligamos, a rapariga da Foz e eu partilhamos a beleza e o significado profundo das coisas e seres do mundo.