sábado, junho 17, 2023

O Velho Gomes: um herói esquecido

Rosário da Limeira - a terra em que o Velho Gomes viveu e morreu

As nossas majestosas e imponentes montanhas, só as vemos inteiras se muito ao longe. Ao pé delas, não vemos nada para além do colosso que elas são. Dão-nos simultaneamente um sentido de grandeza e de pequenez. Este sentimento é o da mineiridade, no meu modo de ver, segundo a minha experiência de vida e a da minha família, tanto próxima, quando antepassada.
O belo mar de montanhas que se advinha como um impossível sonho de vislumbre, foi um horizonte aberto para o meu 4.º avô na linha varonil, Gomes José de Paiva. 
Ele viu para além do muro de dificuldades da vida uma determinação de justiça. O seu mérito não está só no que a tradição familiar nos legou na honrosa descrição de seu filho, meu trisavô, Antônio Gomes de Paiva (um "homem justo, correto e que não gostava de falsidades", como dizia a tia Lila), mas principalmente por um ato altruísta que o faz levantar do esquecimento para ser recordado como herói.
Muito pouco sabia sobre o Velho Gomes (como passo a tratá-lo a partir de agora, para facilitar) até poucos anos atrás. A informação fundamental era basicamente o seu nome completo: Gomes José de Paiva.
Esse registo foi colocado em dúvida algumas vezes, tendo havido muita gente que acreditava que a ordem dos nomes havia sido trocada, ou seja, ele se chamaria na verdade "José Gomes de Paiva". Mas isso não é verdade.
Há três anos o Velho Gomes começou a se revelar desde a pesquisa no registro civil e nos tribunais, tendo surgido discreto e firme em direção a uma memória digna de ser recordada.
Quando finalmente reabriu o cartório de Rosário da Limeira, fui confirmar afinal quando havia nascido o meu bisavô Maximiano Gomes de Paiva. 
No registro de nascimento do menino Maximiano, do dia 23 de Abril de 1893, consta como avós paternos: Gomes José de Paiva, falecido, e Umbelina Rosa de Jesus, lavradora, moradora de Rosário da Limeira.
Por ali retirei duas informações: a mais importante era a confirmação do nome do 4.º avô: era mesmo Gomes José de Paiva! Depois, fiquei a saber que naquele ano de 1893 ele já havia desaparecido. O vovô Miano nunca conheceu o seu avô paterno!
Depois de muito andar a espirrar por conta do pó naqueles livros de registro antigos, há muito sem serem abertos, lá encontrei um registro de nascimento de 1889: Gomes José Monteiro. Aquele primeiro nome me chamou a atenção, já que "Gomes" como nome próprio não é muito comum!
Ao ler o registro, descobri que o bebê Gomes era neto do Velho Gomes! O trisavô Antônio Gomes de Paiva (a partir daqui, chamo-o de vovô Antônio Gomes) tinha uma irmã: Hipólita Umbelina de Paiva.
A 28 de Setembro de 1889, quando nasceu o bebê Gomes, o seu avô Gomes ainda era vivo, sendo referido como lavrador e residente em Rosário da Limeira.
Depois ainda encontrei um registro de nascimento de um irmão mais velho do vovô Miano que infelizmente faleceu ainda bebê: José Gomes de Paiva. No registro de 29 de Outubro de 1891, o Velho Gomes já surgia como falecido.
Basicamente, até há poucos meses atrás, era isso que se sabia do Velho Gomes: o seu nome, que tinha sido lavrador, e que falecera entre 1889 e 1891. Quanto aos pais, a naturalidade, ou o que teria feito da sua vida... nada disso se sabia.
No entanto, como hoje o Tribunal de Justiça de Minas Gerais faculta um serviço de digitalização de processos históricos, e na lista desses processos em Muriaé surgiam alguns com o nome de Gomes José de Paiva, resolvi pedir a sua digitalização.
Foi a partir daí que mais informações apareceram: em um processo da divisão de terras da fazenda dos Monteiros, já de 1910, aparecia o Velho Gomes como um dos herdeiros de Domingos Francisco Monteiro, seu sogro. Dali colhi a informação de que tinha terras na Fazenda Boa Vista, entre Rosário da Limeira e Guiricema.
Foi ainda possível localizar o testamento do seu sogro, datado de 1846. No documento, em que a avó Umbelina era ainda solteira (tinha 15 anos), o Velho Gomes assina como testemunha, mostrando a sua proximidade com a família de sua futura esposa, embora ainda muito jovem, com apenas 17 anos.
Esses poucos documentos foram apenas uma faísca da grande luz que ainda viria surgir sobre a vida do meu antepassado! A grande notícia ainda estava por vir.
Havia um processo criminal de tentativa de assassinato em que o Velho Gomes surgia como testemunha. Sabia também de antemão que a vítima, Amália Maria da Conceição, era sobrinha dele. Ali já surgia uma indicação inédita: uma parente do Velho Gomes que remetia para gerações anteriores.
Quando finalmente chegou o processo (por alguma razão estava repartido em diferentes arquivos, tendo surgido aos poucos), uma história incrível veio à tona.
O jovem casal Inocêncio e Amália não se dava muito bem. 
Ela era muito provavelmente de São Caetano do Xopotó, (hoje, Cipotânea), Piranga. Filha de uma irmã do Velho Gomes que se chamava Ana Maria da Conceição, segundo sugere o processo. Para além disso, diferentes relatos mostram Amália como uma mulher um bocado avoada, teimosa e dada a mexericos e a convívios com mulheres de má fama. Dito por outras palavras: não era santa!
Já Inocêncio era de São Paulo do Muriaé. Tendo ficado órfão de pai muito novo, a mãe o colocou como aprendiz de seleiro. Depois abandonou o seu mestre e andou um bocado sem rumo na vida, errando pela província até regressar à sua terra. Foi daí que a família lhe arranjou o casamento com Amália.
Casaram-se quando Inocêncio tinha 22 anos de idade e Amália apenas 20 anos, fixando residência em Rosário da Limeira. Foi um casamento infeliz pelo conflito de mentalidades: um rapaz revoltado, de temperamento difícil, juntado com uma moça tola e teimosa... os dois muito jovens e sem saber lidar com as suas próprias limitações: tudo apontava para um desastre.
No dia de São João de 1879, havia um casamento para o qual Inocêncio e Amália haviam sido convidados. Segundo ele, Amália recusou o convite, tendo ficado em casa de um casal amigo, e ele foi ao casamento sozinho. Já ela diz que no dia dessa festa de casamento, ao engomar o paletó de Inocêncio, colocou-o por baixo de outro paletó. Ao apanhar o paletó de cima, Inocêncio deixou cair ao chão o que tinha sido engomado, sujando-o um pouco. E foi aí (supostamente) que as desavenças escalaram. Inocêncio irritou-se e saiu de casa sozinho, ameaçando-a ao dizer que Amália lhe iria pagar por aquilo quando ele voltasse.
Ao regressar da festa no dia seguinte, Inocêncio não encontra Amália em casa e sai à sua procura. Descobre que ela já não estava na casa do casal amigo, que informou que ela fugira. 
Com receio de que o marido lhe fizesse mal, Amália refugia-se na casa de Pedro Thereza e, depois, de João Luciano, homens de bem de Rosário da Limeira. No entanto, receosos da vingança de Inocêncio, foram ter com o Velho Gomes a pedir que ele acolhesse a sobrinha, o que o meu antepassado assentiu prontamente.
O último refúgio de Amália foi a fazenda de propriedade do seu tio Gomes. Na fazenda do Pombal, o Velho Gomes vivia com a sua esposa Umbelina e três de seus filhos: Antônio Gomes de Paiva (o vovô António Gomes), de 18 anos de idade, a tia Hipólita Umbelina de Paiva, de 15 anos de idade, e o tio João Gomes de Paiva, de apenas 12 anos. 
Curiosamente, é o tio João (uma criança) que sorteia o juri popular que julgou o desgraçado do Inocêncio! 
A tia Hipólita provavelmente também vivia com eles, pois era ao menos três anos mais nova que o vovô António Gomes. Ela, no entanto, não é referida no processo.
Descobri por documentos no cartório de Rosário da Limeira, confrontando com outras informações, que Gomes e Umbelina tiveram ao menos ainda mais uma filha: Rita Umbelina de Paiva. Ela, no entanto, era provavelmente 3 ou 4 anos mais velha que o vovô António Gomes, sendo já casada ao tempo dos eventos aqui narrados, em que deveria ter de 20 a 22 anos de idade. Já agora, outra curiosidade: foi através do casamento da tia Rita com Germano Alves Pereira que, mais à frente, o vovô Antônio Gomes irá conhecer e se casar com a vovó Augusta, sobrinha de Germano!
Acredito que Gomes e Umbelina possam ter tido mais filhos, mais velhos que a tia Rita. Isso porque quando ela nasceu em 1856, os seus pais tinham já 27 e 25 anos de idade, sendo muitíssimo provável que se casaram bastante mais cedo.
Pela composição do nome dos filhos (em que as filhas receberam o nome próprio da mãe como nome do meio, e os filhos o nome próprio do pai a seguir ao seu primeiro nome: um método típico daquele tempo e sem variação neste caso), também se descobre que "Gomes" nunca foi um sobrenome na nossa família, mas sempre uma homenagem ao Velho Gomes, mesmo que impercebida desde há pelo menos 100 anos!
Era essa portanto a casa do Velho Gomes na fazenda do Pombal, em Rosário da Limeira, em 1879: Gomes, Umbelina, Antônio, Hipólita e João.

Cachoeira do Pombal, em Rosário da Limeira, na região da Fazenda do Pombal


No dia 8 de Julho, Inocêncio finalmente encontra Amália na Fazenda do Pombal. Ao chegar à sede, dá com o Velho Gomes a ferrar um animal no terreiro, e de forma amistosa e tranquila, ajuda-o a fazer o serviço. Depois disso, pergunta sobre Amália e ao ser informado que ela está dentro da casa, pede ao Velho Gomes para levá-lo ao encontro dela.
Ao entrar na sala da casa, estava Amália noutra repartição, mas já em prantos, acompanhada da avó Umbelina e da moça Edviges, uma vizinha que frequentava a casa. Ao ser chamada pelo Velho Gomes, Amália surge na sala já alterada.
Inocêncio então manda que ela se sente. A esposa resiste de início, mas depois acaba por sentar-se. Daí começa uma sucessão de acusações: diz para que ela apanhe nas coisas comuns da casa deles que entretanto desapareceram e as devolva. Depois de ouvir de Amália que já as tinha distribuído a amigas, diz que ela o havia desgraçado. Amália responde que ele é que a desgraçou... No ponto alto dessa miséria, Inocêncio saca de uma garrucha de dois canos que diz haver comprado para a matar, e que só não o faria ali por respeito à casa. 
No entanto, Amália continua a acusá-lo, e ele arma o cão da garrucha, no que grita a avó Umbelina: "O que é isso, senhor Inocêncio? Em minha casa?" E saiu o tiro que atingiu Amália abaixo do seio esquerdo. O covarde mirou mesmo no coração da mulher!
Neste momento, em risco de sua própria vida, o Velho Gomes lança-se para cima de Inocêncio e consegue expulsá-lo da casa e tomar a garrucha, que tinha o segundo cão já armado. Entretanto, as mulheres levam Amália para dentro da casa, a presumir que ela já estava morta.
Do terreiro da casa, Inocêncio ainda bradou para lhe entregarem a Amália em até 24 horas, e que se não o fizessem, ninguém naquela casa poderia se queixar do mal que lhes viesse a acontecer.
Em meio à confusão, algumas horas depois, chega o cunhado de Gomes, Antônio Francisco Monteiro, que era subdelegado do Distrito de Rosário da Limeira, e faz a prisão de Inocêncio.
Por intervenção divina, as balas de chumbo penetraram o corpo de Amália e saíram do outro lado, tendo ela sobrevivido ao evento lamentável.
Já Inocêncio, amargou uma condenação de 20 anos nas "galés" (como ainda se chamava a prisão) e multa. 
Alguns anos depois, na cadeia de Ouro Preto, onde cumpria a sua pena, enviou um sofrível poema para um jornal, que o achou merecedor de publicação. Nos versos da sua infelicidade, culpa a Amália, aos tribunais, à fortuna... só não assume as próprias culpas! Na mesquinhez daquela alma, não havia limites para a humilhação.

Poema do desgraçado do Inocêncio publicado pelo jornal "Província de Minas", em 1885

O triste evento entre Inocêncio e Amália, no entanto, tem hoje um efeito redentor: foi graças aos seus registros que a memória do Velho Gomes pode ser aqui reabilitada!
No processo ainda foi possível colher mais algumas informações muito preciosas sobre o meu antepassado: era alfabetizado (ao menos sabia assinar o nome, tendo uma bonita assinatura), a sua idade e a sua naturalidade. Em 1880 ele contava com 50 anos de idade, portanto, era nascido em 1829 ou 1830. Na sua qualificação consta ainda a sua naturalidade: o distrito de Piranga, município de Mariana.
Essa última informação é muito importante, pois ela posiciona o Velho Gomes no movimento de povoação da Zona da Mata Mineira: com o declínio da mineração desde o início do século XIX, as famílias marianenses migraram para ocupar a nova fronteira de Minas Gerais. A avó Umbelina também era de Piranga, daí presume-se que vieram para Rosário da Limeira já casados.
De tudo o que foi possível apurar, a verdade é que o Velho Gomes foi um homem simples, mas digno. Um lavrador que ousou desbravar um mundo novo, esforçando-se para construir um legado para a sua família. Mais importante: quando foi preciso intervir para proteger uma pessoa indefesa de uma agressão injusta, não pensou na sua própria vida, mas em fazer o que era certo,  segundo a sua fé e os seus valores.
"Para ser grande, sê inteiro", escreveu Fernando Pessoa. O Velho Gomes teve grandeza o suficiente para ver o mar de montanhas, elevado pela sua integridade. 
A sua nobreza transparece na forma como seus filhos batizaram a própria prole: todos os muitos filhos do vovô Antônio Gomes e do tio João receberam "Gomes" como sobrenome (todos nascidos depois do desaparecimento do avô, com exceção do tio Augusto, nascido em 1889), e o único filho da tia Hipólita foi batizado mesmo de Gomes. Tais gestos só se justificam pelo amor, pela gratidão e pela saudade.
Gomes José de Paiva: um herói esquecido da nossa família nas gerações mais recentes, mas favoravelmente recuperado aqui desde documentos poeirentos e luminosos.
Paz à sua alma.

Assinatura de Gomes José de Paiva no testamento do seu sogro Domingos Francisco Monteiro



sábado, março 26, 2022

Um homem justo, correto e que não gostava de falsidades


Meu avô Toninho, segundo a tia Lila, o descendente mais parecido com Antônio Gomes de Paiva


"Salmos, 11
1.Do mestre de canto. De David. 
Eu abrigo-me no Senhor. 
Porque vós dizeis-me: 
«Foge para os montes, passarinho,
2.porque os injustos retesam o arco, 
ajustando a flecha na corda, 
para atirar ocultamente contra os corações rectos.
3.Quando os fundamentos se corrompem, 
que pode o justo fazer?»
4.O Senhor, porém, está no seu templo santo, 
o Senhor tem o seu trono no céu. 
Os seus olhos contemplam o mundo, 
as suas pupilas examinam os homens.
5.O Senhor examina o justo e o injusto, 
Ele odeia quem ama a violência;
6.Fará chover, sobre os injustos, brasas e enxofre, 
e um furacão violento. É a parte que lhes cabe.
7.Porque o Senhor é justo e ama a justiça, 
e os corações rectos contemplarão a sua face"


Apresentar aqui a memória do meu trisavô Antônio Gomes de Paiva, que a seguir vou chamar de vovô Antônio Gomes, não é uma tarefa fácil: ele faleceu há quase cem anos e a sua ancestralidade (ao menos aparentemente) não está ligada a São Paulo do Muriaé e suas freguesias, como os meus outros antepassados, além disso, ele teve uma vida muito reservada, livre de maledicências que a posteridade quisesse reproduzir.
Ainda assim, este pouco torna-se muito frente ao seu legado de transformação e criação, marcado pela discrição, o sinal fundamental dos amigos da verdade.
Vovô Antônio Gomes era filho de Gomes José de Paiva e Umbelina Rosa de Jesus. Muito pouco se sabe sobre Gomes e Umbelina. Os factos são que eram ambos lavradores e residiam em Rosário da Limeira, onde nasceram seus filhos. 
Tendo em conta as suas próprias declarações nas certidões de nascimento de seus filhos, o vovô Antônio Gomes nasceu na freguesia de Nossa Senhora do Rosário da Limeira, em São Paulo do Muriaé. Sua data de nascimento exata não é conhecida, mas a 29 de Abril de 1889, quando foi testemunha de um casamento em Rosário da Limeira, contava com 25 anos de idade. Daí, podemos afirmar que nasceu em 1863, ou 1864.
Gomes e Umbelina tiveram pelo menos mais três filhos: Galdino José de Paiva, falecido em um acidente com madeiras em 1876; Rita Umbelina de Paiva, que depois casou-se com Germano Alves Pereira; o irmão mais novo do vovô Antônio Gomes era João Gomes de Paiva, que ficou em Guiricema e lá formou família. Por fim, a irmã Hypólita Umbelina de Paiva, possivelmente nascida em 1865, em Rosário da Limeira, onde ela viveu por toda a sua vida. 
Hypólita foi casada com Antônio Calisto Monteiro. Hypólita e Antônio tiveram dois filhos: Gomes José Monteiro e Umbelina Monteiro. Infelizmente, Hypólita faleceu precocemente, vítima de bronquite, a 1 de Novembro de 1894.
A 28 de Setembro de 1889, aquando do nascimento e registro do neto com o seu nome, filho de Hypólita, Gomes José de Paiva ainda era vivo, sendo descrito naquela certidão com a profissão de lavrador e residente em Rosário da Limeira. Em Outubro de 1891, quando nasceu o seu outro neto, José, filho do vovô Antônio Gomes, Gomes José de Paiva já era falecido.
Já quanto a Umbelina, sabe-se que ao menos até abril de 1893, tempo do nascimento do neto Maximiano, meu bisavô, ainda era viva e descrita como residente em Rosário da Limeira.
Com a morte da irmã Hypólita em Novembro de 1894, o vovô Antônio Gomes deve se ter tornado o único apoio de sua mãe Umbelina em Rosário da Limeira. É capaz que a mudança de sua família com a vovó Augusta para Santa Rita do Glória tenha tido por condicionante a necessidade de olhar por Umbelina em Rosário da Limeira.
Contrariando o que se diz na família há algumas gerações, e mesmo o que consta na sua certidão de óbito, o vovô Antônio Gomes não era natural de Guiricema (então, freguesia dos Bagres, Visconde do Rio Branco), mas sim de Rosário da Limeira. No entanto, há curiosas e numerosas evidências que o ligam à freguesia dos Bagres.
A primeira dessas ligações prende-se a sua relação com a família Monteiro, também de Rosário da Limeira, mas com fortes ligações à Freguesia dos Bagres. Embora o seu cunhado Antônio Calisto Monteiro não fosse natural da freguesia dos Bagres (mas sim da freguesia de São Caetano do Xopotó), ele e a irmã do vovô Antônio Gomes casaram-se lá, que era também a residência dos sogros de Hypólita. Além disso, o vovô Antônio Gomes surge associado frequentemente ao cunhado, partilhando com esse a ocupação de negociante, e como residentes na povoação de Rosário da Limeira. Ademais, aquando do falecimento do pequeno José, segundo filho do vovô Antônio Gomes e vovó Augusta, Antônio Francisco Monteiro surge como uma das testemunhas de que o menino morreu de causas naturais e sem assistência médica. 
Mas as coincidências que apontam para a freguesia dos Bagres continuam. A 7 de Abril de 1889, casa-se Antônio Francisco Monteiro Júnior com Theodora Maria de Jesus, sobrinha do vovô Antônio Gomes. Theodora é órfã de pai, Germano Alves Pereira, tio da vovó Augusta, e filha de Rita Umbelina de Paiva. Já o noivo era filho de Antônio Francisco Monteiro e Ana Joaquina de Jesus. Ademais, a certidão de casamento diz que são primos: o que é verdade, já que a vovó Umbelina era da família dos Monteiro. Precisamente, Rita era sobrinha do pai do noivo, pois a sua mãe Umbelina e Antônio Francisco Monteiro eram irmãos. Os padrinhos de casamento foram  o sobrinho Antônio Gomes de Paiva e seu tio Antônio Francisco Monteiro.
Adicionalmente, aquando do falecimento de Hypólita, em 1894, a certidão de óbito foi feita por Manoel Zepherino Xavier, também da família dos Monteiros, pois surge como cunhado de Hypólita.
Por fim, numa ação judicial de 1910, em que foi feita a medição da Fazenda dos Monteiros, surgem como proprietários dos diferentes sítios Gomes José de Paiva, Francisco Antônio Monteiro, Manoel Antônio Monteiro e João Antônio Monteiro, além de Hipólito José Jesus, José Pereira da Costa, José Marciano Pereira e Matheus de Siqueira. Embora Gomes José de Paiva já fosse falecido pelo menos desde 1891, é provável que ainda não tivessem feito as partilhas daquelas terras e surge aqui uma evidente associação entre as famílias. Já a questão de saber onde ficava essa Fazenda dos Monteiros, o mais provável é que fosse em São Paulo do Muriaé, uma vez que o processo foi submetido na sua comarca.
Uma última referência à ligação a Guiricema surge já em 1944, quando é deferido o pedido de Galdino Gomes de Paiva, sobrinho do vovô Antônio Gomes, para que o seu engenho de rapadura em Guiricema fosse transferido a Onofre Vieira Ferraz. Este Galdino teve o mesmo nome do nosso tio Galdino. Um e outro, tiveram o nome em homenagem ao irmão mais velho do vovô Antônio Gomes, Galdino José de Paiva.
Gomes José de Paiva e Umbelina Rosa de Jesus tivessem as suas origens em Prados e Guarapiranga, freguesia de Mariana. Mas em um determinado momento, talvez por conta das terras dos Monteiro, mudaram-se para a freguesia do Rosário da Limeira, onde já nasceram o tio Galdino José, a tia Rita, o vovô Antônio Gomes, a tia Hypólita e o tio João.
Para ir mais a fundo na ancestralidade do vovô Antônio Gomes, é preciso recorrer à tradição familiar. Segundo o primo Paulo Afonso, por informação que obteve de sua mãe, tia Lilia, e esta da vovó Augusta, o Paiva do vovô Antônio Gomes era o mesmo de Mariana Luíza de Paiva, esposa de Belisário Alves Pereira.
Essa indicação seria muito facilitadora se "Paiva" fosse também o sobrenome dos pais de Mariana, no entanto, os seus pais se chamavam Manoel Silvério Vieira de Andrade e Maria do Carmo Fonseca e Silva. De onde, então, teria vindo aquele nome? 
Na pág. 15 do "História de Belisário, Tomo I", a prima Nina Campos diz que Mariana é descendente de Fernão Dias Paes. Os antepassados de Mariana eram de Sumidouro, uma freguesia da cidade de Mariana, portanto, na região das Minas.
Se formos ver a ancestralidade de Mariana Luíza de Paiva, vemos que a afirmação da prima Nina tem muita razão de ser: sua mãe, Maria do Carmo, era filha do português João Fonseca e Silva e de Ana Angélica Dias. 
Não se encontra ainda indicação da ancestralidade de Ana Angélica, mas tendo em conta o testemunho familiar, há razões para crer que fosse filha de Vicente Dias Paes e Marianna Luíza de Paiva. 
O casal viveu em Ouro Preto e experimentou o declínio da mineração de ouro. Ana Angélica não figurou no inventário de Vicente Dias Paes, mas o direito das sucessões da época excluía as filhas casadas das heranças necessárias, portanto, não seria algo invulgar.
Ademais, essa é a única via de ancestralidade que explicaria tanto a repetição do nome "Mariana Luíza de Paiva", dado sem relação com os sobrenomes dos pais, além de conformar a indicação de que ela seria uma descendente de Fernão Dias Paes.
Agora resta saber quem foi Marianna Luíza de Paiva, bisavó da nossa Mariana Luíza de Paiva, esposa de Belisário Alves Pereira. Essa referência é fundamental, já que o Paiva do vovô Antônio Gomes é o mesmo, ou seja, é o da mesma família Paiva, que o da avó de sua esposa Maria Augusta (Mariana Luíza de Paiva) que, por sua vez recebeu o nome em homenagem à sua bisavó (Marianna Luíza de Paiva). Assim, ao se verificar a origem do Paiva da bisavó da nossa Mariana, encontramos também a origem do vovô Antônio Gomes, mesmo sem conseguir refazer na inteireza a sua linha.
Marianna Luíza de Paiva nasceu em 1756 em Guarapiranga, freguesia de Mariana. O seu nascimento se deu no auge do período da mineração do ouro. Ela foi a terceira filha de Manoel Martins de Paiva e Thereza Maria da Silveira. O seu pai foi um rico minerador português, que emigrou do Porto para as Minas Gerais já com 40 anos de idade. Dele sabe-se que trouxe parte da família consigo, além de nunca se ter esquecido das suas origens e dos familiares que ficaram em Portugal.
Manoel Martins de Paiva teria sido, portanto, o primeiro Paiva da nossa linha no Brasil, uma vez que, segundo a vovó Augusta, o sobrenome do vovô Antônio Gomes seria o mesmo da sua avó Mariana, e esta seria descendente do referido português, ficaria então a questão respondida. Falta agora refazer a linha do vovô Antônio Gomes, ou seja, identificar quem foram os pais de Gomes José de Paiva e Umbelina Rosa de Jesus, e de onde vieram, para que se possa confirmar essa hipótese.

Forte de São João da Foz do Douro, no Porto: A freguesia onde nasceu Manoel Martins de Paiva

À parte da questão da ancestralidade, que é também a nossa, e daí evocar um profundo interesse, é devida uma palavra para se dizer, afinal, quem foi o vovô Antônio Gomes.
Muito de sua vida já foi contado quando fiz a crônica biográfica da vida da vovó Augusta: casaram-se em Rosário da Limeira por volta de 1887. Tiveram um total de 12 filhos, os primeiros em Rosário da Limeira, e os outros em Santa Rita do Glória. Para criação de seus filhos, mas suspeito que mesmo para a formação da família, muito contribuíram os tios de vovó Augusta: José Belisário Alves Pereira e Francisca Dias Paes.
Quanto ao seu casamento com a vovó Augusta, há poucos factos e algumas suposições bem fundadas, ao que me parece. Primeiro, eles tinham uma diferença de idades de ao menos 7 anos: no tempo da celebração do matrimônio o vovô Antônio Gomes tinha 23 anos e a vovó Augusta, 16. 
O enlace deve se ter dado através de um dos tios da vovó Augusta, José Belisário, sobretudo, pois ela era órfã de pai. Além disso, sua mãe casara-se com Cândido José Vicente em 1883, com ele formando uma nova família.
Em que pese poder ter havido ali um arranjo de conveniência de parte a parte, (pois a vovó Augusta precisava se casar, e o jovem vovô Antônio Gomes pode ter tido a ambição de se associar à família dela, proprietária de muitas terras na região), a verdade é que as mentalidades se alinhavam: ela era de temperamento forte e expansiva, uma mulher orgulhosa e algo dominadora; já ele parece ter sido um homem mais sutil, calmo e inclinado para uma vida reservada, portanto, de temperamento mais contido. Se fossem os dois bicudos, não se teriam beijado!
Provavelmente lá pelo fim do século XIX, ou início do século XX, vieram para Santa Rita do Glória por intermédio do tio da vovó Augusta, José Belisário Alves Pereira, que doou algumas terras ao vovô António Gomes, como foi o caso do sítio do Garganta, na fazenda Santa Cruz.
Lá o vovô Antônio Gomes deixou algum legado, pois construiu a casa sede do sítio. Não se notabilizou por grandes conhecimentos de arquitetura ou engenharia, já que a casa foi feita no meio alto das montanhas, longe de curso de água corrente ou poço de onde pudesse ser retirada, obrigando a se fazer um penoso percurso. Depois, a localização não foi bem estudada, pois ficava entre duas encostas, e daí a incidência solar ficava muito prejudicada. Assim, a casa oferecia condições que beiravam a insalubridade. 
O vovô Antônio Gomes não deve ter experimentado essas dificuldades, pois tinha casa no distrito de Santa Rita (vivia na povoação, assim como fez em Rosário da Limeira, ao menos desde 1892), a casa da Rua da ponte, com o quintal que ia ter ao rio Glória, onde ele fazia a curva. Hoje onde ficava essa casa está o Posto de Saúde batizado com o nome de um dos seus descendentes: Maximiano Gomes Martins.
Para além desse sítio do Garganta, possuiu também outras terras, como o ótimo sítio do Retiro, que fica no córrego dos Alves. Assim, continuou a viver da agricultura depois de terem vindo para Santa Rita.
Sobre a sua forma de estar na vida, era um homem reservado, como já disse. Aliás, muitos na nossa família guardam essa índole mais recatada e contida, sendo pessoas incapazes de uma brutalidade, uma feição de comportamento que só é saudável se for associada ao amor à verdade e à retidão numa vida ética.
A mansidão do comportamento, no entanto, contrasta com a forte convicção na defesa da correção. Um impulso que pode se assumir como uma cólera cega em face da injustiça e do mal entendido. Assim é porque a bondade suportada com convicção exige a defesa da justiça para ordenar com alguma estabilidade a natural ordem de sofrimento do mundo, na forma de uma vida pelas virtudes.
A tia Lila tinha 10 anos de idade quando o vovô Antônio Gomes faleceu, em 1925. Além de se lembrar da aparência dele, ao ponto de afirmar que entre as dezenas de descendentes, o meu avô Toninho seria o mais parecido de todos, também conta uma história que ilustra o seu comportamento.
Nas palavras do primo Paulo Afonso: "Mamãe contava que vovô Antônio Gomes era um homem justo, correto e que não gostava de falsidades. 
Um dia a casa do padre Zé Maria apareceu pichada, o que causou um grande alvoroço no então distrito. Um compadre do vovô o procurou para conjecturar: 
'- Tá sabendo o que aconteceu na casa do padre Zé Maria, compadre? Que absurdo! Que falta de respeito! É muita coragem fazer um trem desses! Um homem tão bom como o padre Zé Maria! Quem você acha que poderia ter feito uma barbaridade dessas, compadre?' 
'- Olha, compadre, quem fez foi fulano e quem mandou foi você!"
O vovô Antônio Gomes faleceu na sua casa na rua da Ponte, foi numa terça-feira, dia 10 de Março de 1925, às 16:30hs, de "morte natural", segundo o atestado prestado por Alcino Bicalho e a certidão de óbito em que foi declarante o seu genro, Vicente de Paula Lima. Tinha apenas 61 anos de idade. Deixou a vovó Augusta viúva ainda com quatro filhos menores de idade.
Parece que deixou boas heranças aos filhos, pois pelo relato de Paulo Afonso, o tio Afonso herdou 3 alqueires na Fazenda Santa Cruz, no sítio do Garganta, e mais metade do sítio do Retiro, ficando a outra metade para o meu bisavô Maximiano. A vovó Augusta deve ter ficado com a parte alta do sítio do Garganta, onde foi morar numa determinada altura na casa sede feita pelo vovô Antônio Gomes. Acredito que o apego à memória dele, associada àquela casa, feita por ele, tenha sido ao menos parte da razão da teimosia dela em não querer se mudar para a parte de baixo do sítio, perto da cachoeira, fonte de água corrente, e com melhor exposição solar, como queria o tio Afonso. Quando ela finalmente concordou em se mudar, o tio Afonso demoliu a casa velha e fez a nova exatamente no mesmo formato da casa antiga, para agradar à sua mãe viúva.
Embora tenha restado do vovô Antônio Gomes tão pouca memória, parece-me o suficiente para o considerar como um justo, o que muito me orgulha. Que Deus o tenha na sua infinita misericórdia.

sábado, março 05, 2022

Tirem esta pedra de cima da minha cabeça

Carolina com a sua avó Maria Augusta - finais dos anos 1940

Com o falecimento do vovô Antônio Gomes em 1925, vovó Augusta, ainda com filhos pequenos para terminar de criar, teve de recorrer ainda mais à ajuda dos seus tios José Belisário e Chiquinha, já com idades à volta dos 70 anos, além dos seus filhos mais velhos, embora estes já tivessem seus próprios filhos e dificuldades com que lidar. Tio Augusto tinha 36 anos nessa altura, e o vovô Miano, 32. 
Acredito que os seus velhos tios tenham sido das maiores ajudas. Não se tem notícia do ano em que faleceu o tio José Belisário. Sabe-se que a tinha Chiquinha ainda lhe sobreviveu por alguns anos. A prima Nina Campos ainda conheceu a tia Chiquinha.
Seu irmão Luciano Alves Pereira, um bem-sucedido comerciante em Belo Horizonte, na altura, também tentou ajudá-la nos primeiros anos de viuvez, acolhendo o tio Afonso em sua casa na capital do estado, para que fizesse os seus estudos. Mesmo que a temporada em Belo Horizonte não tenha sido das mais felizes para o tio Afonso, que ficava à margem de uma vida familiar muito movimentada, o gesto demonstra a iniciativa para aliviar as acrescidas responsabilidades da vovó Augusta, agora viúva.
A ida do tio Afonso para Belo Horizonte não deve ter sido uma decisão fácil para a vovó Augusta. Como filho mais novo, mais desprotegido, portanto, frente àquelas mudanças e por ter ficado órfão com apenas 10 anos de idade, havia ali um cuidado especial.
Tio Afonso ainda não era rapazito quando começou a namorar com a tia Lila, com quem estudava nas Escolas Reunidas, na sede do distrito, sendo ambos da mesma idade. Mas quando chegaram à adolescência, a tia Lila ficou mais inclinada para arranjar um casamento, enquanto o tio Afonso ainda era considerado novo para dar esse passo. Em consequência, a tia Lila terminou o namoro, e o tio Afonso ficou desconsolado. 
A processar aquela tristeza, o tio Afonso escreveu um poema muito bonito, chamado "Poema do Primeiro Amor". Em quatro estrofes, ele partilha os conselhos da vovó Augusta para lidar com aquilo:

(...)
Em meu peito se escondia 
As mágoas que então sentia
Sufocando o coração.
Minha mãe que observava
Perguntou-me como eu 'tava'
E por que tanta aflição?

E dela não ocultei,
Em desabafo contei
Todo o sofrido drama.
Enquanto tudo eu narrava
Ela me ouvia calada
Quanto ardia o peito, a chama.

E me disse firmemente:
"Não fique assim descontente.
Tens nas veias sangue nobre,
Bravo sangue altaneiro
Grandes forças de um guerreiro
Que de amor jamais foi pobre!

Se ela foge de você
E não quer dizer porquê
Dela deve se afastar.
Ninguém quer sentir-se preso.
Se for do destino o desejo
Ela um dia vai voltar."
(...)

Depois dessa desilusão, o tio Afonso foi para o Seminário, com ideias de abraçar a vocação religiosa, mas depois de poucos anos regressaria à Santa Rita para retomar o namoro com a tia Lila.
Com a partilha das heranças do vovô Antônio Gomes, a vovô Augusta em algum momento deixou a casa na rua da Ponte e foi viver na fazenda Santa Cruz, no sítio chamado Garganta, onde viviam da pecuária de corte. 
O "principado do Garganta" foi um sítio que o tio José Belisário doara ao vovô Antônio Gomes. A casa sede desse sítio foi construída pelo vovô Antônio Gomes, ficando no meio alto das montanhas. A localização entre duas encostas e o facto de não haver mina de água ali perto, impunha condições de vida difíceis, já que a incidência de sol era pouca, além de fazer com que fosse preciso ir buscar água à mina mais próxima.
Em 1933, quando o tio Afonso deixa o seminário e regressa a Santa Rita do Glória, ele foi viver para essa casa com a vovó Augusta e com o tio Thimóteo. Mas logo iria se mudar para a parte de baixo do sítio da Garganta, ao se casar com a tia Lila.
Tio Afonso havia herdado 3 alqueires de terra à margem da cachoeira da Garganta. Mais à frente, adquiriu mais 10 alqueires da Fazenda Santa Cruz, principalmente, às suas irmãs. Ali, com a ajuda de seu grande amigo José Rosa de Jesus, construiu a sua "casinha", como ele a chamava, no tombo da cachoeira do córrego Conceição, dispondo de água limpa e farta.
Enquanto o tio Afonso constituiu a sua família na parte de baixo do sítio da Garganta, a vovó Augusta e o tio Thimóteo continuavam na sede, na parte alta, em condições cada vez piores.
Em 1940, a vovó Augusta pede para o tio Afonso ir viver com ela: Eu não estou aguentando mais nada. Thimóteo cada vez mais sem expediente, mais nervoso e esquisito. Se você não me acudir, quando meu gadinho acabar eu vou morrer à míngua.
O tio Afonso respondeu com uma contraproposta, argumentando que o melhor seria que ela e Thimóteo fossem morar com eles na parte de baixo da Garganta, onde havia abundância de água e as áreas eram mais abertas. Trariam tudo lá de cima e construiriam uma casa nova para todos morarem juntos. A vovó Augusta não concordou, teimando com a sua ideia de que fosse o tio Afonso e família a irem morar na velha sede. 
Não se sabe bem a razão, talvez por reverência filial, a obedecer o mandamento da lei de Deus que manda honrar pai e mãe, talvez pelo apego sentimental que tinha à mãe, talvez porque sabia que ela e Thimóteo não podiam mesmo continuar sozinhos... talvez, ainda, por uma combinação dessas razões, o facto é que o tio Afonso concordou com a proposição da vovó Augusta.
Foram todos lá para cima morar juntos, mas a contragosto. Rapidamente, as crianças começaram a ficar doentes. Tio Afonso e tia Lila, obviamente, muito chateados com a situação, prejudicada ainda pelo ambiente pesado provocado pelas constantes brigas entre vovó Augusta e Thimóteo.
Tio Afonso diversas vezes pedia à vovó Augusta para fazerem as mudanças para a parte de baixo do sítio, mas ela teimava em lá permanecer, por vezes usando argumentos falaciosos: Criei os meus filhos aqui e nenhum morreu! Não era muito bem verdade, já que muitos dos filhos foram criados pelos tios José Belisário e Chiquinha, ou mesmo na casa na rua da Ponte, na sede do distrito. Além disso, nos primeiros tempos da família que formou com o vovô António Gomes, o segundo filho, José, faleceu com apenas dois meses de vida, na altura em que viviam num sítio do Rosário da Limeira, chamado Vargem Alegre.
Aquela teimosia, direta ou indiretamente, custou anos de vida muito duros para os tios Afonso e Lila. 
O tio Afonso ficou doente, sentindo o peito apertado, com problemas para dormir e, mais tarde, com dores de estômago. Desde então, segundo o mesmo, perdera a saúde. Essas dificuldades impuseram muitos problemas ao tio Afonso e, consequentemente, a toda a família, obrigando-o a procurar médicos para se tratar, principalmente, no Rio de Janeiro. Nessa cidade, era carinhosamente recebido pelo seu tio Luciano e, após a sua morte em 1944, pela sua prima Maria Angélica, e contava com a ajuda do primo Luciano Agliberto.
A tia Lila deu à luz o primo José Costa em um parto muito difícil, tendo que ser chamado um médico às pressas. A partir desse evento, passou a sofrer da moléstia conhecida como "queda do útero", sendo operada apenas muito mais tarde, em 1959, impondo-lhe um sofrimento acrescido às muitas dificuldades com que tinha de lidar, valendo-se do seu caráter amoroso e conciliador para que aqueles problemas não se tornassem ainda maiores.
Para piorar a situação, o tio Thimóteo também não estava bem. Havia passado por uma crise nervosa muito séria, assustando a todos. O tio Afonso não estava, mas ao regressar, foi falar com ele, perguntando o que se tinha passado. Respondeu-lhe que tinha sido uma situação da lida com o gado e que não era nada que o irmão tivesse de se preocupar.
O tio Thimóteo era uma pessoa inteligente e interessada nas coisas do mundo, procurando sempre se informar. Tinha um livro de aritmética que usava para estudar à luz da lamparina. No entanto, era muito sistemático e temperamental. Sentia-se revoltado por ter sido criado pelos tios José Belisário e Chiquinha, quando já eram idosos, e não se dava com a mãe, vovó Augusta, que também tinha um gênio difícil.
Poucos dias depois do evento em que teve a tal crise nervosa, estando o tio Afonso fora novamente, o tio Thimóteo trancou-se por dentro no paiol, lá tirando a própria vida. Tinha cerca de 45 anos de idade. O vovó Miano foi quem tratou de tudo, mas a situação delicada provocou um trauma nas crianças e, em verdade, em toda a família. O corpo ainda esteve na casa, deitado na cama, à espera das autoridades, o que também causou forte impressão nas crianças. 
Anteriormente à morte do tio Thimóteo, falava-se muito que ele possuía uma mala cheia de jóias e objetos de valor que teriam sido da sua família de adoção, talvez, a herança que recebeu do tio José Belisário e da tia Chiquinha. Sobre esse boato, o tio Thimóteo não desmentia, nem confirmava, apenas ria-se. No entanto, aquando do seu desaparecimento, as suas posses foram verificadas pelo vovô Miano e o tio Tonico, na presença da tia Lila e dos demais familiares, ficando evidente que não havia lá nada de valor.
Além de José, falecido aos 2 meses de idade, em 1892, e Thimóteo, a vovó Augusta ainda sobreviveu ao seu filho Galdino Gomes de Paiva. "Sô Dino", como o tio Afonso o tratava, morreu solteiro, não se sabe com que idade, mas não chegou a envelhecer. Ao que parece, vivia sozinho. Sabe-se que era de 1905, pois tinha 20 anos aquando do falecimento do vovô António Gomes. Há ainda um registro da transferência de um engenho de rapadura em seu nome, situado em Guiricema, autorizado a 9 de Agosto de 1944, em favor de Onofre Vieira Ferraz. Morreu na casa dos 40 anos de idade, provavelmente consumido pelo vício do álcool. Ficava de tal modo embriagado, que caia de seu cavalo e ficava pela estrada, e ninguém sequer o conseguia levar para uma sombra, já que tinha um cão que não permitia que ninguém chegasse perto.
Quando tudo parecia desandar, em meio a essas situações dramáticas, finalmente a vovó Augusta consentiu em fazer a mudança, dizendo ao tio Afonso que de outra maneira ele não conseguiria acabar de criar os seus filhos. Tudo isso se passou aí pelo ano de 1948.
Tio Afonso cumpriu a velha proposta que fizera à vovó Augusta muitos anos atrás: demolir a "casinha" que havia no tombo do córrego da cachoeira Conceição, lá construindo uma réplica da casa da sede, em que viviam, lá no alto.
Com alegria e ânimo, depois de muitos anos de sofrimento, a obra foi feita com grande esperança. A empreitada do tio Afonso, mais uma vez, contou com a prestimosa ajuda de seu amigo e compadre, (já que era padrinho no nosso querido primo Paulo Afonso), José Rosa, além de muitos parentes e amigos. Aproveitou-se a base da "casinha" e se aproveitou tudo quanto possível da casa antiga. A nova casa agora tinha água encanada direto da mina, além de receber muita luz natural. Foi também construído um pequeno curral com barracão. Depois também tratou-se do moinho e de uma pequena usina elétrica.
Todos acompanhavam as obras muito animados, inclusive a vovó Augusta. Prefiro acreditar que estava inconsciente de todo o mal que causara aos que tanto lhe estimavam. Em redenção, a sua famosa teimosia foi vencida unicamente pelo persistente amor do tio Afonso e de tia Lila.
Quando a casa na parte de baixo ficou pronta, todos se mudaram, e foi uma imensa alegria. O primo Ludolfo diz que esse foi o dia mais feliz da sua vida: acordou de manhã e viu a luz do sol a entrar pela janela.
Em 1953, o vovô Miano e a vovó Sinhá ofereceram uma grande festa para toda a família, que consistiu numa missa e num almoço, na sede da Fazenda Santa Cruz. É dessa ocasião que temos a maior parte das fotos de vovó Augusta: uma velhinha sorridente e animada com aquilo tudo.
No ano seguinte, precisamente, no dia 14 de Dezembro, a vovó Augusta faleceu. 
Ao agonizar, proferiu as suas últimas palavras, na forma de uma ordem: "Tirem esta pedra de cima da minha cabeça". O tio Afonso estava novamente no Rio de Janeiro a tratar da sua saúde. Quem estava com ela nesse momento foi a sua filha, tia Francisca Angélica, tratada por Chichica, a tia Lila, e o pai dela, Ludolfo Costa Lima, que pediu à filha para trazer uma vela para vovó Augusta. O primo Paulo Afonso, na altura com pouco mais de 2 anos de idade, tem lembrança de aparecerem muitas pessoas em casa naquela noite. O tio Tonico, Antônio Gomes de Paiva Júnior, foi quem tratou da certidão de óbito, em que consta a data e o local do falecimento da vovó Augusta, todos os filhos e respetivos cônjuges que lhe sobreviveram, e os bens que deixara.
Esta recoleção biográfica da vovó Augusta jamais teria sido possível sem os contributos fundamentais do primo Paulo Afonso, organizados no seu "Memórias". Com carinho e cuidado, comprometido com a verdade, Paulo Afonso tem sido o mais empenhado zelador das preciosas memórias de nossa família. A ele devo a nova consciência que ganhei sobre os nossos antepassados, além de lhe dedicar grande carinho e admiração.
Finalmente, resta-me concluir com um sentimento de gratidão por compreender a vida de vovó Augusta, enxergando-a como um elemento determinante para toda a nossa família. 
Não me parece justo julgar sem termos todos os elementos objetivos da realidade para o fazer. Em verdade, mesmo quando assim é, ainda podemos ser injustos. Por isso, não vou dar sentenças sobre a vida da nossa vovó Augusta, deixando para cada um as reflexões que achar úteis. Peço a Deus, com a intervenção da Virgem Maria, no entanto, que tenha piedade de sua alma e das alminhas de todos os meus antepassados; que na Sua infinita bondade e misericórdia possa acolhê-los como seus filhos, como uma pequena parte de Si, da mesma forma que os raios de sol são uma parte desse magnífico astro.

quarta-feira, fevereiro 23, 2022

De Rosário da Limeira para Santa Rita do Glória


Vovó Augusta com idade entre os 30 e os 35 anos

Não nos chegou informação de como se deu o seu casamento com o trisavô Antônio Gomes de Paiva, que chamarei aqui de vovô Antônio Gomes.
Presumo que para o casamento interferiram, além de sua mãe, vovó Heduviges, seus tios da família Alves Pereira que ainda residiam em Santo Antônio do Onça (atual Belisário), e sua avó paterna Mariana Luísa de Paiva. Isso por conta de Antônio Gomes de Paiva ser muitas vezes qualificado no registo civil com a profissão de negociante, ocupação que era também a de sua avó Mariana, que passou a cuidar dos negócios do seu finado marido Belisário Alves Pereira. Sabe-se ainda que o vovô Antônio Gomes sabia ler e escrever (ao menos, assinava o próprio nome de forma bastante legível e com uma caligrafia bonita), e era razoavelmente bem relacionado no povoado de Rosário da Limeira, pois aparece como testemunha em diversos atos de registro, residindo no próprio povoado e, naturalmente, muito próximo do cartório. 
O casamento se deu em 1887 ou 1888, quando ela tinha apenas 16 ou 17 anos de idade. Isso porque o tio-bisavô Augusto Gomes de Paiva, primeiro filho do casal, era possivelmente nascido em 1889. Também se pode afirmar com certeza que casaram na freguesia de Rosário da Limeira, pois assim surge declarado nas certidões de nascimento dos filhos. E não podemos especular mais que isso: vovó Augusta casara órfã de pai, sem grande dote e, ao que se sabe, portanto, o vovô Antônio Gomes também não era rico.
Logo a seguir ao casamento, os registros sugerem que foram viver na zona rural, para um lugar chamado Vargem Alegre, na freguesia de Rosário da Limeira, e ficava a 3/4 de légua de distância do cartório, o que equivale a quase 4 quilômetros. 
Vovó Augusta e vovô Antônio Gomes tiveram 12 filhos. Ao menos os primeiros nasceram em Rosário da Limeira: Augusto em 1889, José em 1891 (que faleceu antes de completar 1 ano de idade) e Maximiano em 1893. 
A escolha dos nomes foi alternada entre vovó Augusta e vovô Antônio Gomes: o primeiro, foi ela quem escolheu, afinal, pôs o seu próprio nome: Augusto. O segundo, José, foi o vovô Antônio Gomes quem escolheu, pois seu pai se chamava Gomes José e falecera recentemente (entre 1889 e 1891). Já o terceiro filho, Maximiano, foi obviamente uma escolha da vovó Augusta, pois era o nome de seu pai, sendo outra homenagem póstuma.
O segundo filho, José Gomes de Paiva, nasceu em 1891, tendo sido registrado no dia 29 de Outubro desse ano. Na altura, a jovem família vivia na zona rural, em Vargem Alegre. Infelizmente, o pequeno José veio a falecer consumido por febre às 10hs da noite do dia 18 de Janeiro de 1892, com apenas dois meses e vinte dias de idade. 
Talvez por conta disso, buscando melhores condições de vida ou de tratamento, a família já vivia na povoação de Rosário da Limeira, próximo ao cartório, quando nasceu o terceiro filho, Maximiano, em abril de 1893.
Eu suponho que as filhas Edwiges (1894), Umbelina (1896) e possivelmente Maria Joana (1898) e Francisca Angélica (1900) também tenham nascido em Rosário da Limeira. 
No entanto, o mais provável é que com o crescimento da família e as naturais dificuldades para criar tantos filhos, tenha havido um convite do tio José Belisário e da tia Francisca (Chiquinha) que já viviam em Santa Rita do Glória, para que a família de Augusta e Antônio Gomes também fossem para lá, onde teriam a ajuda dos tios para criar os filhos.
Como o tio José Belisário e a tia Chiquinha não tinham filhos e possuíam muitos recursos, a aceitação do convite e a mudança da família para Santa Rita do Glória deve ter sido algo bastante natural. Além disso, os tios eram pessoas muito amorosas e dedicadas aos sobrinhos. Terão sido, sem dúvida, um apoio fundamental na vida de vovó Augusta e de toda a sua família, sendo que as referências dessa dedicação amorosa existem ainda hoje na própria memória familiar.
Embora os filhos José Thimóteo (1903), Galdino (1905) e Luciano (1908) possam ter nascido tanto em Rosário da Limeira como em Santa Rita do Glória, o mais provável é que tenham vindo ao mundo em Santa Rita. Já os filhos mais novos, Antônio Júnior (1910) e Afonso (1914) certamente nasceram em Santa Rita do Glória.
A vinda de Rosário da Limeira para Santa Rita foi sem dúvida um momento decisivo na vida de vovó Augusta. Eu suponho que o evento tenha se dado entre 1895 e 1900. Uma visita aos livros de registro de nascimento em Rosário da Limeira iria clarificar isso. 
Como já dei a entender, o marco inicial para a mudança aconteceu muito antes, com o precoce falecimento de Belisário Alves Pereira, ainda em 1870. Os filhos mais velhos tiveram de lançar-se prematuramente à gestão das muitas fazendas, entre elas, as de Santa Rita do Glória. Para Santa Rita foi enviado Germano, que tinha por volta de 18 anos de idade e era o filho homem mais velho, tendo ido para Monte Alverne. Já José Belisário, apenas com 16 anos de idade, deve se ter casado pouco depois de 1870 e também rumado para Santa Rita. Também para as fazendas de Santa Rita veio um dos genros de Belisário, Raymundo Dias Paes, casado com Rita, sendo que estes ficaram com as terras mais próximas a São Francisco do Glória.
Ao que me parece por pesquisas nas certidões, Germano faleceu prematuramente, já sendo extinto em 1889. No entanto, há mais de uma fonte que diz ter sido casado, e numa certidão de casamento de Theodora Maria de Jesus (quase o mesmo nome de uma das irmãs de Germano: Maria Theodora de Jesus) com Antônio Francisco Monteiro Júnior, os pais da noiva são citados como Germano Alves Pereira (embora o prenome tenha sido escrito com jota), referido como falecido, e Rita Umbelina de Paiva. 
Com o desaparecimento de Germano já por volta de 1889, é natural que o tio José Belisário tenha visto na vinda do vovô Antônio Gomes uma ajuda preciosa para se tratar daqueles negócios em Santa Rita do Glória. Mas a mudança só se terá consumado entre 1895 e 1900, embora não possa precisar para já.
Pelo relato do primo Paulo Afonso, José Belisário teria dado para o vovô Antônio Gomes as terras que depois seriam herdadas pelo filho mais novo deste (e pai de Paulo Afonso), o meu tio-bisavô Afonso Gomes de Paiva.
Acredito que outras terras antes disso teriam já sido doadas ao vovô Antônio Gomes por José Belisário, pois a quantidade de terras que tinha era imensa, assim como casas de moradia no distrito. Quando o meu bisavô Maximiano casou-se em 1912, recebeu 10 alqueires de terra de presente de José Belisário, que eram uma propriedade na Fazenda Santa Cruz.
Quando vieram para Santa Rita, assim como já se dava em Rosário da Limeira, Antônio Gomes e Augusta foram morar na povoação sede do distrito. Conforme conta Paulo Afonso, que passo a citar: "Moravam naquela casa cujo fundo do quintal faz a curva do Rio Glória, depois que ele passa a atual ponte. Ali Papai [Afonso Gomes de Paiva] nasceu. Frequentei muito aquela casa e brinquei muito naquele quintal, sempre imaginando a presença de meus avós, meu pai criança e meus tios por ali. Papai dizia que vovó não ligava muito, por isso, ele cresceu dentro daquele rio".
Nessa mesma casa, situada na Rua da "Ponte", no dia 10 de Março de 1925, pelas 16:30hs, o vovô Antônio Gomes faleceu. Depois de ter perdido o pai com menos de 6 anos de idade, vovó Augusta ficava agora viúva com apenas 54 anos de vida, e ainda quatro filhos menores de idade, além do filho José Thimóteo, ainda solteiro. José Thimóteo, inclusivamente, nunca chegaria a se casar, e teria uma relação muito difícil com a mãe.

domingo, janeiro 09, 2022

As origens da nossa matriarca


Vovó Augusta e Maria do Rosário (neta da tia Manzica) na grande festa de 1953, na fazenda Santa Cruz

Dona Augusta foi uma mulher de personalidade forte. Foi a primeira filha de Heduviges Augusta Dias de Andrade e Maximiano Alves Pereira, tendo nascido a 20 de Setembro de 1871, e batizada Maria Augusta Alves Pereira, mas foi sempre tradada por dona Augusta. Veio ao mundo na fazenda Serra da Floresta, originalmente propriedade do seu avô materno, Manuel Vieira de Andrade, em Rio Branco, hoje Visconde do Rio Branco. 
A informação sobre essa naturalidade está na página 114 do livro História de Belisário, tomo I, de Nina Campos. A autora é uma sobrinha de segundo grau da vovó Augusta, já que ambas descendem do casal Belisário Alves Pereira e Mariana Luísa de Paiva, mas enquanto a vovó Augusta era filha de Maximano, a senhora Nina Campos é neta de Manuel Mariano, irmão um do outro e filhos do referido casal.
Note-se que Heduviges e Maximiano teriam vivido com os pais dela nos primeiros tempos de casados, tendo depois se mudado para Santo Antônio do Onça, atual Belisário, após o nascimento de Maria Augusta, segundo o História de Belisário. Mas os pais em questão eram Luciano Dias Paes e Ana Angélica de Andrade. Supõe-se que Ana Angélica tenha herdado parte das terras de seu pai, Manuel Vieira de Andrade, que passaram a ser cultivadas então por Luciano, seu marido.
Por essa pequena introdução já se nota como a dona Augusta foi uma pessoa fundamental para os Gomes de Paiva de Santa Rita do Glória (ainda vamos lá chegar, no entanto): os nomes Maximiano, Luciano e, obviamente, Augusta foram depois dados à descendência por homenagem a esses antepassados e a forte influência de dona Augusta.
Tendo por significado do seu nome o adjetivo "divino", vovó Augusta era uma mulher que lhe fazia jus se formos considerar que era muito orgulhosa das suas origens heroicas, tendo tido também muito bom berço. 
Quanto à sua ancestralidade, era comprovadamente uma descendente do bandeirante Fernão Dias Paes. Seu avô materno Luciano Dias Paes era 5.º neto do bandeirante: filho de Gregório Dias Paes, neto de Vicente Dias Paes, bisneto de Gregório Dias Paes, 3.º neto de  Maria Garcia de Abreu, 4.º neto de Mariana Dias Paes e, finalmente, 5.º neto de Fernão Dias Paes, uma figura central na história do Brasil e de Portugal.
Note-se que as suas origens fidalgas não se extinguem no Governador das Esmeraldas pois aquela ancestralidade do século XVII e XVIII em Vila Rica ainda inclui importantes bandeirantes e figuras de relevo na aristocracia mineira: um primo seu foi o magistrado e poeta Cláudio Manoel da Costa, licenciado em direito pela Universidade de Coimbra. Cláudio tomou parte na inconfidência mineira, tendo sido um dos seus principais líderes intelectuais. Segundo os autos da devassa, teria sido em sua casa em Vila Rica que se desenhou a bandeira da república que se fundaria em Minas Gerais e que serviu de modelo para a bandeira atual do estado brasileiro.  Preso por ordem da coroa portuguesa, teria a seguir tirado a própria vida no vão das escadas da Casa dos Contos, embora a tese do suicídio seja disputada. Cláudio e dona Augusta tem no paulista Bernardino Chaves Cabral o seu antepassado comum. Bernardino era pai do bandeirante paulista Bernardo de Chaves Cabral, que alcançou a posição de Guarda Mor em Vila Rica, sendo este o antepassado de dona Augusta, como seu 5.º avô. Bernardino também foi o pai de Isabel Rodrigues Cabral de Alvarenga, avó materna de Cláudio, sendo, portanto, seu bisavô. 
Essas ligações à aristocracia mineira também a ligam a outro primo famoso: Tancredo Neves, pois tanto o presidente do Brasil quanto a vovó Augusta descendiam diretamente de Vicente Dias Paes: o trisavô de Maria Augusta e 7.º avô de Tancredo.
O parentesco com esses primos é largamente desconhecido na família hoje. As relações com o inconfidente Cláudio Manoel da Costa poderiam ser conhecidas por dona Augusta, mas não se tem notícia que delas soubesse. Já as relações com Tancredo só assumem relevância depois da sua ascensão política, posterior ao desaparecimento de dona Augusta.
No entanto, há muitos relatos do grande orgulho que ela tinha de ser descendente direta de Fernão Dias Paes. Esses relatos foram tão consistentes, que me recordo de ouvir a referência deles quando ainda era criança, tendo sido referido pela minha avó Ziza, meus tios-avós irmãos do meu avô Toninho, neto da dona Augusta, e mesmo por meus tios e primos de 2.º e 3.º graus, tudo num tempo em que seria muito difícil comprová-los.


Fotografia de dona Augusta com 30-35 anos de idade que foi animada

Dona Augusta nasceu numa família de posses, tanto do lado de sua mãe, como de seu pai. 
Pelo lado de dona Heduviges, tinha por avó Ana Angélica de Andrade, da família dos Vieira de Andrade, de Rio Branco. Pelo lado de Luciano Dias Paes, ligava-se às famílias de Guarapiranga, então vila de Mariana, que na altura em que nasceu Luciano experimentavam uma grande decadência, tendo sido obrigadas a fazer a transição da exploração das minas para a agricultura e a pecuária, desbravando e ocupando a zona da mata mineira.
Pelo lado de Maximiano, era neta de Belisário Alves Pereira, o celebrado tropeiro e desbravador que fundou o arraial de Santo Antônio do Onça, atual Belisário, distrito de Muriaé. Belisário foi criado num orfanato dirigido pelo padre português Joaquim Rodrigues, de São Januário de Ubá, hoje Ubá. Recebeu uma educação esmerada, mas as habilidades com cavalos, a inclinação à vida ao ar livre e a facilidade de comunicação levaram-no para a profissão de tropeiro, em que se destacou amplamente, tendo amealhado uma imensa quantidade de terras. Era também neta de Mariana Luísa de Paiva, irmã da sua avó Ana Angélica, portanto, da mesma família Vieira de Andrade, de Rio Branco.
A sua infância guarda um evento dramático: o seu pai Maximiano morreu quando ela tinha pouco menos de 6 anos de idade, em Junho de 1877. 
Maximiano Alves Pereira era dos filhos mais novos de Belisário e Mariana, e tinha a profissão de negociante. A vovó Augusta dizia que se dedicava aos comércio de produtos como relógios de parede, louças, talhares, além de atacadista: "Meu pai foi o primeiro homem da região a ir à Corte".

Maximiano Alves Pereira

O primo Paulo Afonso relata uma história que certamente ouviu da tia Lila, que conviveu por quatorze anos com a vovó Augusta:
Numa noite, Maximiano chegou transtornado, contando para sua esposa que tinha perdido grande quantidade de dinheiro no jogo. Não sei onde esse fato aconteceu. (Tenho motivos para suspeitar que tenha sido no Rio de Janeiro). Heduviges, que deveria ser meio largada e atirada (não à toa era da família de Fernão Dias), o acalmou dizendo que na noite seguinte ela iria com ele lá, recuperariam o que ele havia perdido e ainda ganhariam mais. Resultado: perderam mais dinheiro. Ele entrou em desespero, ficando inconsolável. Rapidamente, foi-se definhando. Num complexo de culpa muito grande, passou seus últimos dias repetindo: "Que vergonha! Meus irmãos nunca cometeriam um erro tão grande!"
Possivelmente, esse episódio esteve associado à tuberculose, uma doença que grassava na altura, abreviando a vida de muitos jovens.
A morte do pai faz cair fundamentalmente sobre a viúva Heduviges, mas também sobre a filha mais velha, Augusta, a obrigação de cuidar das crianças mais novas: os irmãos Maria Angélica e Antônio, assim como do que ainda nasceria: Luciano. O irmãozinho Antônio infelizmente adoeceu e morreu. Segundo o Memórias, penso eu que por relatos da tia Lila que conviveu por 14 anos com a vovó Augusta e sabia de muitas histórias que depois contou para o seu filho Paulo Afonso, o pequeno Antônio teria morrido de tristeza, por saudades do pai falecido. Chorando constantemente, ele ainda bebê calçava as botas do pai e chamava por ele.
A ajuda dos irmãos de Maximiano foi pronta em acolher e ajudar a cunhada e os sobrinhos. O cunhado José Belisário e a cunhada Francisca, que não tiveram filhos, foram especialmente atenciosos com os sobrinhos, ajudando no que era preciso.
Em 1883, a mãe de dona Augusta casa-se novamente. Essas segundas núpcias eram fundamentais para que a dona Heduviges conseguisse criar os seus filhos. O padrasto de vovó Augusta chamava-se Cândido José Rodrigues, tendo sido ele o pai de seus dois meios-irmãos: Ana Angélica de Andrade e Maximiano Rodrigues Vicente.
Com a constituição dessa nova família e por já se estar tornando mocinha, o casamento da vovó Augusta deve se ter tornado uma preocupação para sua mãe. Aqui começaria uma nova fase de sua vida, marcada pela constituição da sua própria família desde o casamento com Antônio Gomes de Paiva.

quinta-feira, dezembro 09, 2021

Réquiem à minha juventude ou lamento ao teu sofrimento



Numa acepção exagerada do significado da vida, amplio a consideração do pensamento para imaginar os teus dias vazios... e o meu coração rasga-se violentamente, como se fora puxado em simultâneo por diferentes forças... e como Santa Catarina na roda, eu aceito o destino que se abate sobre o meu corpo como uma penitência pelo amor desprendido da identificação com Deus... 
Quantas vezes eu estive embriagado pelos sonhos de sucesso que partilhamos, meu irmão? Que seara maligna prendeu-te nessas mentiras enquanto eu fui libertado, quiçá pela sorte combinada com a coragem e os sacrifícios empenhados para viver os meus próprios anseios de grandeza? Não sei.
Mas sei que esse caminho vincado na mentalidade de validação rima em tudo com danação. Um grande espírito procura os sentidos da transcendentalidade como escopo e relevo, e não facilidades aparentes que nos trazem conforto. 
Há muitos anos, numa tarde de calor em Londres, estive doidamente entretido numa conversa sobre a felicidade. Houve ali quem levantasse o prazer e a liberdade bem alto, o que fez o meu coração saltar e a boca abrir-se num sorriso. No entanto, qual prazer e qual liberdade? Faltou dizer... e faltou pensar. As presunções deixam-nos nus sem que nos apercebamos disso.
Foi-me concedido muito tempo para meditar sobre tudo aquilo. Não foi o tempo o ferreiro que malhou as grades de uma prisão interior em mim! Foi, antes disso, o rio que diluiu o gosto de ferrugem ou morte na minha boca, com as águas a correr no leito da verdade. Então fui capaz de provar novamente os sabores autênticos: eu vi as coisas como efetivamente são, e não conforme os dramas da minha vida achavam por bem apresentá-los de modo a que eu não assumisse as minhas culpas.
O prazer não é senão um momentâneo bem-estar, por muito intenso que seja. É sempre instrumental a algo maior: o prazer da mesa é pela satisfação da fome; o prazer da bebida é o relaxamento das repressões internas; o prazer do corpo é a satisfação de idealizações de corpos... e assim por diante: todos eles servem a algum tipo de preservação ou promoção da vida. Não são esses indícios suficientes para que se veja na vida o verdadeiro valor a impor-se a esses subterfúgios? É preciso ser cego pela vontade para não ver, mas há quem escolha a cegueira!
A liberdade não é apenas a ausência de opressão... Fosse a liberdade a ausência de tiranias, não seria o seu valor um imperativo nos espíritos que nunca foram escravizados. Mesmo esses entendem que precisam de espaço para serem. Nós que crescemos e fomos ensinados a aceitar um mundo que nos conforma de muitas formas, olhamos a liberdade com suspeição... como se fora um instrumento para o abuso! Não é.... isso é a sua contra-face: a opressão. A liberdade é o espaço essencial para que sejamos, é o tempo suficiente para que nos compreendamos a nós mesmos, é o espaço-tempo bastante para que nos encontremos a nós mesmos. Cada um saberá dizer quanta liberdade é preciso para ser e estar. Para mim, é preciso muita! Não porque não me saiba ou me tenha encontrado ainda... mas porque esse encontro é mais que isso: é fundamentalmente um reencontro com os outros, uma forma de vê-los novamente, de percebê-los sem as constrições de validação e mentira que os fazem ser outros, vendo-os como quem são, na nudez despudorada dos seus impulsos e enganos... ridículos como são os nossos próprios.
Daí a vida e a liberdade serem um só elemento, indivisível por quaisquer conveniências ou justificativas. Eis o que eu quero para ti: essa vida plena em liberdade. Abraça-a recusando essas fantasias todas, esses signos do exagero e do mau-gosto... Levanta alto as convicções em quem és: um homem completo e cheio de vigor e inteligência: encontra-te com Deus e forma a tua família. Faz-te útil!
Ainda há tempo, embora não muito. Dá valor à vida. A nossa juventude já lá foi. Tens a oportunidade de fazer-lhe valer aplicando o aprendido, nas salas de aula e na vida vivida. Há manhãs de sol... há tardes em que o arco-íris vai mostrar-se no seu símbolo de redenção! Agarra-o! Lá ao fim há o pote de ouro em que brilhará o teu espírito, finalmente redimido de tantas banalidades, finalmente reunido ao nosso espírito.
A vida e a liberdade não se prestam a receber a validação de babuínos exuberantes. Quem for a esse desfile de vaidades, certamente vai terminá-lo digno de ridicularizações sem exagero... a superar as merecidas pelos seus validadores.

segunda-feira, maio 31, 2021

Brother to brother


Uma luz celestial - Gustavo Doré, 1875

Choraste sobre o meu ombro o desfazer-se dos teus sonhos de amor, meu querido irmão. Nos teus olhos, aquela mesma verde paixão de viver e de vencer estava perdida, a rodar em vão e em alta velocidade dentro do teu espírito.
Pediste-me respostas, mas à falta de palavras próprias, que nos momentos decisivos da vida muito poucas vezes conseguem ser suficientes para expressão dos grandes significados, ofereci-te uns versos do maior dos poetas, ditos em voz serena: [...] mais serviria, se não fora/Para tão longo amor tão curta a vida.
Hoje, depois de passado o tempo e vivida a vida, tenho, enfim, palavras próprias para te dedicar, palavras que, embora atrasadas, não deixam de fazer-se signos de sentimentos verdadeiros e razões nobres, e são agora humildemente oferecidas a ti.
Ainda miúdos vimos, lado a lado, o futuro a se abrir para nós. Foi um céu azul e limpo de primavera com cheiro a verão que recebeu a ti e aos futuros irmãos na minha terra para uma tarde fatídica em minha vida: o 8 de Dezembro de 1996.
Tu, com teus óculos fundos, a tua gravata borboleta e o teu livro debaixo do braço (uma poderosa palavra-passe para a nossa amizade), lançava dúvidas sagazes sobre a conveniência daquelas convenções, talvez porque também para ti aquilo era um mundo novo, em que tentavas encaixar os sentidos. Logo vi que havia ali um espírito inquieto, cheio de brilhantismo e de força, uma impressão que a vida alegremente confirmou-me muitas vezes, para o júbilo do meu próprio espírito.
Passados largos meses, depois de uma experiência em aprendizagem, mesmo que o estatuto não o indicasse, uni-me a ti e aos irmãos de Juiz de Fora já consciente de onde estava e de onde queria chegar.
Como para ti, o futuro estava ao alcance das mãos e estava pronto para tomá-lo.
Foi aquela sala de reuniões semanais para nós o palco de grandes encontros, não de embates. Embora esses também tenham havido, para nós importava fazer, construir e alcançar. E identificados nos propósitos grandes, muito ajudamos um ao outro. Já tive a oportunidade de partilhar contigo, mas volto a repetir: foi para mim uma imensa honra ter servido ao teu lado, pois em muito dignificaste a minha contínua aprendizagem. 
O meu sentimento de lealdade e gratidão contigo é dos mais antigos e maciços no meu coração. Nasceu em um momento, mas não se manteve só por ele. É tributo da tua força e carisma, da tua dignidade e perseverança, mesmo quando já não há mais nada para se fazer.
Estivemos depois juntos noutras paragens, em que novamente fomos lançados a empresas ingratas e, por ambição de crescer, fomos dizendo sempre que sim. Eu ainda transpus para Portugal um pouco daquela ilusão, que ainda há poucos anos foi parte integrante de minha vida, como tu mesmo pudeste testemunhar pessoalmente.
Enfim já formados, já lançados à nossa vida profissional, fui-me embora da nossa Juiz de Fora e para longe de ti também. Cometi o grave pecado de dizer adeus... e tenho penado doidamente, desde então. Mas para mim, sabes bem, não havia alternativa. Eu precisava de ir cumprir as promessas feitas pela minha ilusão, e tu precisavas de ficar para que igualmente pudesses viver as tuas.
A distância, no entanto, nunca se fez no meu pensamento ou no meu coração. A lembrança viva do teu sorriso, a presença marcante da tua voz e do teu riso, a tua inabalável e furiosa confiança nas tuas decisões, estiveram presentes em diversos dos meus gestos diários, sem que os meus interlocutores então presentes suspeitassem minimamente.
Saltamos para o infinito de relações amorosas que, cada um ao seu modo, vimos desfazer-se sem que pudéssemos fazer muita coisa. Talvez estivéssemos a buscar o que não havia naquelas senhoras, para ser honesto. Eu tenho uma piedade infinita do amor malfadado, e rezo pela paz daquelas alminhas, e das nossas, obviamente.
No entanto, o curioso é que até no desaire estivemos unidos. Aquelas partilhas dolorosas foram um grande consolo e, se não tinham o poder de fazer desvanecer culpas e arrependimentos, ao menos mantiveram a solidão dois passos mais distante. Foram lágrimas quentes e verdadeiras, como as que marcaram o nosso mais recente encontro.
Em retribuição (obviamente desnecessária, mas bela por nascer da vontade do teu coração), vieste ao Portugal antigo para dessa vez seres tu a assistir a minha prova de doutoramento. Depois de tantos anos de trabalho, tanta distância, sobretudo, tanto estudar o direito que nós cultuamos desde os anos mais verdes, a tua presença e o teu elogio foram uma das gemas mais valiosas da coroa que naquela noite eu recebi.
Se nos cumpre agora recordar, passados tantos e tantos anos, mais que a nostalgia, sinto e vejo reluzir com grande fascínio a verdade desse nosso caminho como a verdade das nossas virtudes. Por doce que às vezes se pareça a vida, temos de ter a maturidade e a frieza de recordar que a adversidade virá ter connosco, como já veio antes. E então contamos primeiro com a nossa boa capacidade de decidir, com a serenidade e honestidade próprias de quem quer o bem antes de querer o bem de si mesmo. Se falharmos aí, ninguém mais, por muito que nos ame, nos poderá ajudar, e o dragão nos irá confrontar para encontrar um inimigo vencido, e não o soldado que tu e eu fomos armados para ser.
Hoje é dia de reconhecer e agradecer por seres parte de quem eu sou. As pequeninas luzes que iluminam a sala capitular de minha vida foram acesas também por ti.

sexta-feira, maio 07, 2021

Os galos cegos

Salva a humanidade - Tom Zé

Há uma sátira brasileira muito popular que explora a demência de um mendigo de Curitiba chamado Daniel Orivaldo da Silva, vulgo "Galo Cego".
Em 2011, o sujeito ocupava-se de serviços de limpeza dos pára-brisas dos carros parados junto ao semáforo. Um dia, por ter supostamente sofrido um "judiamento" por ter a pele ressecada por "uma mulher e um moreno", arremessou uma pedra de 3 Kg contra a viatura da sua ofensora, estilhaçando o vidro da janela esquerda do banco de trás, onde estava um bebé.
Por intervenção do anjo da guarda do miúdo, nada lhe aconteceu, mas o Galo Cego acabou preso, obviamente. 
Já na cadeia, foi entrevistado por um repórter que questionava o que se tinha passado. E então, para surpresa do entrevistador e da audiência, ouviu-se a uma catadupa de ideias desconexas, apenas muito sutilmente ligadas umas às outras. Ainda assim, o seu autor tinha uma dicção bastante boa e falava com clareza, exibindo uma boa pronúncia das palavras. Obviamente, os humoristas não resistiram àquelas loucuras, como dizer que tinha um corpo "estadual, legal e bonito", ou quando disse que "eu não se posso ser ameaçado". 
Depois dessa primeira entrevista, que obviamente tornou-se um imenso sucesso popular, seguiu-se uma segunda, mais ou menos no mesmo tom, com a diferença que teve por objetivo singular, desta vez, expor ainda mais o Galo Cego e gozar com a cara dele. O repórter, que aqui esteve mal, pois também aproveitou-se, tal qual os humoristas, da deficiência mental e moral do Galo Cego, ofereceu-lhe R$ 5,00 e perguntou-lhe o que iria fazer com o dinheiro. A resposta do homem foi das partes mais exploradas: "vou comprar alimento."
Não sei quantas manifestações doentias diferentes estão reunidas nesses episódios, em que o mendigo, não sendo inocente, tem a vantagem de ao menos não ter explorado as fragilidades de ninguém, foi antes a vítima desse comportamento deplorável.
Restou no meu imaginário, no entanto, aquele liame sutil entre a loucura e a verdade do seu discurso, entregue com clareza nas unidades semânticas e completa confusão na sintaxe.
Esse distúrbio, num certo sentido, assemelha-se ao de muitos Galos Cegos que andam por aí, tentando convencer as pessoas usando de formas agradáveis e simpáticas ou, como se tem dito mais recentemente, com "prudência e sofisticação". No entanto, o seu discurso não tem fundamento na verdade, ou preocupação de fidelidade com o que é real, induzindo, com culpa ou dolo, em erro.
Há poucas coisas que me provocam mais asco que a manipulação ardilosa das palavras, sobretudo se são signos de grandes conceitos, como é o caso da prudência. Assim, a dissonância cognitiva desses Galos Cegos merece um forte repúdio: como na oração de São Bento, devemos aconselhar o dragão, neste caso, o galo, a beber ele mesmo do seu veneno.
Fico a pensar que o mesmo prazer maldoso em rir-se da deficiência mental de um mendigo é irmão da ignorância em identificar a loucura (embora, de outro tipo) nas palavras desses Galos Cegos "prudentes e sofisticados".
Desde presunções absurdas, consolidadas na reafirmação pelos pares de premissas falsas, os Galos Cegos vão mais longe e, como arautos da salvação da humanidade, pretendem ridicularizar todo aquele que contrarie a sua cartilha de ilusões.
Por fim, quando são confrontados com a falsidade das suas alegações, não se dão ao trabalho de contra-argumentar com a razão, recorrendo a falácias de vários tipos (apelo ao ridículo, comparação, autoridade, lei das médias, etc.) para não ter de reconhecer o que está diante dos seus olhos e que ameaça a imagem que tem de si mesmos: a verdade.
Feridos na sua vaidade, vão reunir os outros galináceos congéneres para rebelarem-se contra a realidade e tentarem perceber juntos como tanta gente pode defender a verdade e querer usar da razão para apurar a percepção do real, em detrimento do seu discurso que promete nos levar a todos para o mundo dos sonhos. Na sua ilusão, se a realidade afronta o futuro prometido, ela tem de ser mudada, não importa a que custo, não importa o que se tenha de destruir, reservando para si a infundada autoridade moral de saber qual é o futuro prometido e de fazer o cálculo de proveito que justifica os sacrifícios para (supostamente) lá chegarmos.
Como a alcunha já sugere, estão todos cegos, sem dúvida alguma. E curá-los dessa cegueira exige um remédio amargo para os Galos Cegos: a humildade de reconhecer seus equívocos. Mas como para eles baixar a crista é morrer, o caminho da salvação lhes está fechado. 
Enclausurados no seu discurso, rodeados de convenções inconsistentes validadas pelos pares (também eles, corrompidos na tarefa de validar), resta no fundo de seu espírito um grito bestial.
Sufocados, oprimidos, vexados pela humilhação do seu ego, vão desferir um golpe covarde quando o seu suposto agressor lhes der as costas.
Assim como o nosso mendigo paranaense, os outros Galos Cegos também "não se podem ser ameaçados".