As salas de aula da Faculdade de Direito de Coimbra são dignas de serem frequentadas por príncipes. A decoração manuelina de forte traço ainda barroco dão ao lugar um ar de opulência que é impossível negar. Os edifícios do complexo que se tem após a passagem pela Porta Férrea são em si a assumpção material dessa grandeza: generosidade nos espaços, sobriedade nas formas, silêncio austero a imperar pelos lados todos e no pátio o busto de um benfeitor. A faculdade de direito incorpora sua autoridade sem nenhum pudor: faz e acontece, manda e pode.
Já há muitos séculos a Faculdade de Direito de Coimbra vem servindo a Portugal e ao mundo através de sua excelência de ensino, congregação da elite intelectual portuguesa e distinta produção científica que muitos agradecimentos deve a paz social e Justiça portuguesas, européias e ocidentais.
Eu, que frequento há pouco tempo esse ambiente, mas partilho do pensamento que cá impera há muitos anos, tenho aprendido muito e ficado sempre surpreendido com essa grandeza. São inspiradoras e plenas de certeza na missão fundamental do Direito enquanto instrumento da Justiça, as aulas do Doutor Gomes Canotilho. Este senhor que é um dos maiores vultos do Constitucionalismo mundial mas que trata seus alunos com uma humildade e gentilza que por vezes falta aos mestrandos da faculdade... Com mais propósito, mesmo porque é da minha área de especialização, são as aulas de Direito das Sociedades do Doutor Coutinho de Abreu, plenas de uma inteligência e racioncínios afiados, um enfoque prático e desafios jurídicos que todo o tempo colocam-nos numa posição delicada, mas sempre voltada a provocar uma resposta relevante, um pensamento de valor, alguma produção que vá dar a volta nas trafulices amplas e necessárias que o legislador nos deixa para fazer aplicar, próprias da amplitude do Direito Privado. Isso para citar apenas dois docentes de um universo privilegiado em termos de recursos humanos.
Talvez por essa opulência toda, vinda do passado para dar num presente de prestígio e excelência, exista no ar um certo “não saber o que fazer ou como fazer” e um desconforto pelas mundanças que o futuro vem impondo, a dizer: o processo de Bolonha e o sistemático corte das verbas públicas para manutenção da Faculdade de Direito.
Trata-se, primeiramente, de uma insanidade mal planejada e mal feita e, no segundo caso, de uma imbecilidade que não merece mais aprofundamento que sua própria constatação.
O processo de Bolonha alinha-se com as demais políticas de sistematização comum que vem tomando corpo na União Européia. Pensou-se, muito impulsivamente talvez, que calharia bem dar à Europa toda um mesmo sistema universitário voltado marcadamente para a produção de mercado e que proporcionasse aos discentes uma oportunidade de experimentar activamente o ambiente do mercado de trabalho. Fica, desde já, a academia subordinada às necessidades do mercado de consumo, ela que nunca teve de abaixar a cabeça a ninguém, vê-se dobrada frente a essas incongruências.
Seguindo esta linha, quis-se trucidar a licenciatura e o mestrado, fazendo de ambos "ensino profissionalizante". Licenciatura voltada para produção de mercado e mestrado profissionalizante: mas daí pergunta-se: qual o propósito dos cursos de especialização latu-sensu?
Não houve debates com a comunidade universitária (que era quem afinal cabia mesmo opinar da relevância disso tudo), não houve período de adaptação e nem tampouco planejamento para implantação. Foi imposto, tal qual quer e faz um ditador, sem se importar com consquências.
O resultado recente dessas políticas tem devastado a Universidade de Coimbra. Não apenas na Facultade de Direito, como também na Faculdade de Medicina e muitas outras faculdades e departamentos. Impera o “não saber para onde ir”, uma confusão que aborrece e prejudica os alunos e professores: horários que não se definem, entumpimento do curso de mestrado, erros que não tem fim por parte dos serviços administrativos das faculdades...
Lado outro, como se não bastassem as irresponsáveis políticas comunitárias adoptadas sem a devida reflexão quanto à utilidade e necessidade, também temos os sistemáticos cortes orçamentários para a manutenção das universidades públicas.
Essa questão realmente não faz nenhum sentido. Afinal pretende-se cortar recursos às instituições responsáveis pela geração da mais importante mais valia nacional: os seus recursos humanos. São as pessoas que vão querer trabalhar por Portugal, fazê-lo maior e melhor, mais próspero e grandioso. São portanto as universidades portuguesas o lugar onde essas pessoas vão se formar enquanto profissionais de suas áreas e vão se animar a se empenhar em fazer cá suas vidas. Essa política orçamentária, entretanto, parece apontar para outra idéia: paga-se caro pelo ensino superior e em troca recebe-se o mínimo possível.
Enquanto até os anos de 1970 viu-se uma emigração para outros países da Europa e para o Brasil, feita mesmo pelas pessoas das aldeias e com pouca ou nenhuma instrução intelectual, hoje sofre o país outra onda de emigração: a da sua população educada. Vão-se todos procurar em França, Inglaterra, Alemanha ou Suíça os empregos que cá não encontram... Mas não precisava ser assim.
Mais que investimentos, para a grandeza de Portugal depende uma inabalável fé no seu destino manifesto, na sua força enquanto nação, na coragem de acreditar no país começando por primeiro acreditar em si mesmo!
Talvez seja preciso vermos um pouco os exemplos que nos dão o pessoal que está à frende da Faculdade de Direito: mesmo com todas as adversidades possíveis e imagináveis, mesmo rodeados de más perspectivas e de impiedosos lobos a salivar, não seriam nunca capazes de capitular às dificuldades: sabem que a verdadeira grandeza não sede, não perece e não diminue, mas resiste, regenera e renasce por ser quem é.