terça-feira, setembro 30, 2008

A morte dos irmãos

Estávamos os três a brincar no rio que corta as terras do nosso pai. Eu devia ter uns 12 anos, o Fernão 9 e a pequenita uns 7, acho eu. Havia ali uma alegria e uma camaradagem como poucas vezes desfrutei na vida e como todo sonho que se faz lembrar, havia uma irresistível sensação de realidade.
Quando era miúdo costumava pedir insistentemente à minha mãe para ter uma irmãzinha. Aquilo de sermos só eu e meu irmão não tinha muita piada e eu sabia que uma menina traria mais leveza e suavidade à nossa casa dominada por homens. A mãe, entretanto, nunca me fez a vontade que no sonho realizou-se.
Chamava-se Lúcia, ao menos assim a tratou meu irmão e a mim pareceu natural e doce a existência dela. Tinha o mesmo sorriso da tia Joana e os lindos olhos da minha mãe. Notava-se calma nos seus gestos e candura nos seus pedidos de desculpas pelas brincadeiras... Tomava conta deles naquele dia de calor, atento aos mergulhos do Fernão e às brincadeiras da menina junto à margem.
Eis que de repente, entretanto, quando estava a lhe ensinar a nadar o meu irmão, a menina foi apanhada por uma correnteza. Atrás foi o Fernão e eu também, muito concentrado, meti-me n'água atrás deles.
Procurei-os nas profundezas. Meus dedos tocavam as folhas apodrecidas no fundo do rio e à minha alma comunicava aquele lôdo amargo e frio.
Voltei à tona, pensei em pedir ajuda. Era já tarde... haviam se afogado os dois.
As órbitas dos meus olhos voltaram-se para o céu, o meu corpo molhado tremia enrijecido. O sentimento do luto, real e devastador, fez-me a mais miserável das criaturas e a idéia de tê-los perdido foi tão esmagadora que o meu coração morreu um pouco, como da vez que perdemos o tio Roberto...
Aquela linda menina tão genuinamente da nossa raça, tão inocente nos meus braços, fruto do meu desejo de afecto... Meu irmão, meu querido e doce irmão que eu amo tanto e por quem arrisquei a vida para proteger sem nunca medir as consequências... Foi este um pensamento de percepção fácil quanto ao seu viez de nunca mais e por isso mesmo impossível de suportar.
Como nunca me tinha acontecido na vida, rompi em pranto ainda a dormir e acordei muito perturbado, sem compreender que aquilo não era real e ainda chorei um pouco.
Rezei pela alma do meu tio que já se foi e a quem eu devo tanto... Rezei pelo bem estar do meu mano. Mas ninguém lá em casa vai saber desse sonho. Nunca souberam de nenhuma vez que eu chorei.

domingo, setembro 28, 2008

Um coração puro

Recordo hoje as velhas lições sobre as virtudes como um propósito de amor. Houve um tempo em que aquilo soava algo inconcistente, quando, pela própria imaturidade, os propósitos nos serviam e não nós a eles. Entretanto, pedíamos ao Pai Celestial com muita fé: "Crie em mim um coração puro, ó Deus".
Embora à primeira vista pareça um pedido simples, não consigo pensar em nada mais grandioso para se pedir, nada mais difícil de se alcançar, nada mais bonito.
Na simplicidade dos sorrisos, quantas palavras não podem ser salvas de um destino de desperdício e cansaço? Como os actos frente às declarações, a verdade da pureza é o que nós próprios somos e fazemos da vida, não nossos receios e ambições, menos as pesadas máscaras e as mentiras convenientes.
Vendo o Israel Kamakawiwo'ole tocando o seu pequenino ukelele de frente para o mar, com seu chapeuzinho para se proteger do sol, tem-se uma idéia desse grande, imenso valor da simplicidade.
Apenas um homem, como muitos outros mas que como poucos viveu sem medos, fiel ao que sentia e a quem o amava, cantando o amor ao Havaí, às suas tradições e essa simples condição da pureza que é capaz de nos fazer ser doces por dentro.
Lamentavelmente, o Israel morreu em 1997, aos 38 anos, devido a problemas respiratórios pela obesidade mórbida.
Em algum lugar para além do arco-íris habita o nosso sonho de viver em paz, sem ter de ferir e nem ser ferido, sem a arrogância, o despotismo e crueldade. Esse sim, o verdadeiro pote de ouro que lá se encontra.

domingo, setembro 21, 2008

Céu de outono

Acabou-se o verão, a estação do rubror de um sol violeta que queima as peles, das tardes a transpirar e das manhãs da infância. À essa excitação toda, sucede o profundo e misterioso outono.

Eu nasci no outono e andei pelos caminhos onde estavam caídas as folhas das árvores. Pude já perceber uma coisa ou duas a respeito da nova estação, que para mim chegou um bocadinho mais cedo este ano.

No começo do dia o outono amanhece para o mundo as suas manhãs de beleza discreta e despretensiosa, portadoras de possíveis segredos inocentes que cabe aos olhos encontrar e ao coração descodificar. A tarde é clara e simples, com muita luz e vez ou outra alguma chuva que serve mais ao tom reflexivo da estação do que para convidar para se estar por casa. Em tardes assim, há que se ter um café ao lado e um olhar de generosidade.

Quando o dia vai terminando, o outono mostra-se mais exuberante e toma posse de tudo. No horizonte, vai deixando um rastro de laranjado e rosa e uma paz imensa cai sobre as casas. Mesmo que por todo lado haja barulho de panelas, gatos a miar, gente a cantar, carros a passar e o diabo, no coração fala tão alto essa incorporação da beleza do mundo, que não ouço e nem vejo a mais nada, só a ela.

“Tu és um céu de outono, alegre e cor de rosa!”, diz o primeiro verso das “Intimidades” do nosso estimado Charles-Pierre. Parece-me difícil imaginar outra definição para esse céu já que, em si o verso traz a simples verdade da beleza robusta dele, sua completude discreta e que basta a si mesmo.

Eu leio nas entrelinhas de suas nuvens a mágica sugestão dos sentimentos. Fala-me dos espaços para além das camadas atmosféricas onde (tão alto!) faz habitar a fascinação do seu mistério e dá abrigo à sua própria intimidade.

Lá nas cimeiras do infinito, onde não podem tocar os meus braços e nem podem ver os meus olhos, passeia o meu pensamento reflexivo e apaixonado. Imerso na alegria e na cor rosada desse céu, percebe melhor a si mesmo através dele.

Feliz aniversário, céu de outono!

:)

quarta-feira, setembro 17, 2008

Para rir

Começa o ano lectivo na universidade, mas mesmo antes dele os problemas administrativos do semestre passado acordam das férias para atormentar alguns alunos.
Não foi outro o caso de uma futura colega do mestrado (espero eu e mais ainda ela mesma) que após concluir a licenciatura, fez candidatura condicionada para o 2º Ciclo, a qual só poderia ser confirmada com a apresentação da certidão de licenciada.
Pelas dinâmicas próprias da burocracia, mas mais directamente pelo desleixo de um dos seus professores do semestre passado, a tal certidão não seria nunca expedida. Explico: os serviços académicos só emitem a certidão de licenciado uma vez que tem todas as cadeiras no currículo com as notas assinadas pelos professores e esse um "esqueceu-se" de assinar a nota da minha colega. Resultado: nada de certidão e por conseguinte, nada de mestrado.
Peço desculpa por fazer descer à guela do leitor os pormenores burocráticos, mas é preciso para que o exacto ridículo da situação fique claro: por erro da faculdade na pessoa de um seu professor, uma candidatura ao mestrado seria negada e, muito pior que isso, o próprio futuro profissional da candidata comprometido em 1 ano pelo menos, já que com as modificações introduzidas pelo processo de Bolonha, não basta mais apenas a licenciatura, é preciso também uma especialização (mais 1 ano de estudos) para fazer os exames da Ordem dos Advogados. Resumindo a missa: um erro sério e imperdoável, na visão desse modesto homem de acção.
Muito bem, estando eu nos serviços académicos para tratar dos meus próprios assuntos, aproveitei a rara chance de questionar à Doutora Maria Benedita, encarregada dos mestrados, o que poderia ser feito nessa situação, para além de compelir fisicamente o professor a assinar a nota, e foi-me dito que juntasse o currículo da candidata onde constava a integração das cadeiras que poderia confirmar a matrícula, tendo, entretanto, de juntar a certidão até o início das aulas.
Como pareceu-me uma coisa simples (tão ingénuo o menino) resolvi ver se poderia adiantar alguma coisa eu mesmo já que estava de frente para o balcão onde se faz os pedidos de currículo.
Bravo e resoluto, após alguma espera a ouvir falar ao telefone o tal que me iria atender, expliquei com clareza didática o caso. O homem abriu no seu computador o currículo da candidata e já estava tudo pronto para que o imprimisse e eu entregasse o documento na outra mesa quando, por razões que nem a fé pode explicar, questionou qual seria a cadeira que faltava o relatório da nota assinada... Eu não tinha tido a indiscrição de perguntar (já agora percebem que chamei desleixado a um professor que nem sei quem é, mas sei como trata os seus relatórios de notas). Não percebi a importância aquilo, já que o senhor tinha visto que o interesse era apanhar o currículo ali e deixar no balcão dos mestrados, onde a senhorazinha que ali atendia iria cuidar muito bem de dar baixa na anulabilidade da candidatura e resolver todo o problema... Mas não viu dessa maneira o senhor: juntou-se nessa de querer ver qual era a cadeira e como eu realmente não sabia, não pude fazer muito mais que isso.
Depois disse à minha colega qual era a providência a tomar e ela mesma fez o dito, que esperamos que baste.
Da situação toda, entretanto, para além da raiva do momento, serviu para ver que como se não bastasse a falta de organização, falta também o senso do ridículo a alguns funcionários públicos. É mesmo para rir.

terça-feira, setembro 09, 2008

A tua vida

Danae, Klimt

Canção para a amiga dormindo


Dorme, amiga, dorme
Teu sono de rosa
Uma paz imensa
Desceu nesta hora.
Cerra bem as pétalas
Do teu corpo imóvel
E pede ao silêncio
Que não vá embora.

Dorme, amiga, o sono
Teu de menininha
Minha vida é a tua
Tua morte é a minha.
Dorme e me procura
Na ausente paisagem...
Nela a minha imagem
Restará mais pura.

Dorme, minha amada
Teu sono de estrela
Nossa morte, nada
Poderá detê-la.

Mas dorme, que assim
Dormirás um dia
De um sono sem fim...
Na minha poesia.



Amanhece na capital portuguesa. Vem o sol iluminar a antiga terra banhada pelo rio Tejo e lançar as primeiras luzes sobre a residência universitária da Universidade Clássica.

Lá dentro tu habitas junto da tua consciência de estar no mundo, tuas partituras, teu lindo amor a queimar ponderadamente.

Teus óculos e teus olhos, teus cachos e tuas mãos, teus livros. Tu a ter deles e eles a ter de ti. A manhã, a tarde, a noite. A rotina dos cuidados de higiene, com o quarto, com a casa. O comer a ser feito por essas mesmas mãos, a loiça a ser lavada, a vista da janela a ser admirada num instante de contemplação das coisas do mundo. Dentro e fora um incomensurável silêncio.

Quando eu olho o horizonte da minha janela e presto bastante atenção nas cores do céu, na velocidade do vento, no cheiro do ar, eu percebo a tua presença em todas as coisas da minha vida. Tens em ti tão fortemente marcado o gênio da determinação, da força, da grandeza que se merece, que o meu sorriso vai para ti de uma maneira original e generosa, sempre, sempre...

O cancro do pai, a insensatez da irmã, o abatimento da mãe, nada disso te consome, embora não negues a reponsabilidade que tens sobre as costas. Tal como Atlas, tu não sedes e justamente por isso o mundo não cai. Compreendes, consolas, apóias. Nunca te queixaste. Nunca maldisseste ao destino, a Deus, nunca culpaste aos outros. Em todas as tuas acções há virtudes e há pureza em todas as tuas intenções, há uma beleza indescritível nos teus olhos.

Por tudo isso, pela tua lealdade, pelo teu brio, fibra e nobreza, o meu respeito e incondicional amor.

quinta-feira, setembro 04, 2008

Corre sangria nas minhas veias

Eu achei piada quando ouvi que os arcos que ficam entre o Instituto de Botânica e a Junta de Freguesia da Sé Nova eram parte do sistema de aquedutos de Salazar... Claro que eram um bocado mais antigos, mas não tinha me atrevido a considerar que vinham da ocupação romana... pois a verdade é que são tão romanos quanto nossa herança de opressão e vaidade e nosso alfabeto latino.
A história de Coimbra é tão cheia de pormenores, que passenado ali pelos arcos romanos, reparei uma bizarrice que no final das contas tinha lá sua surpreendente razão de ser.
Bem às costas da estátua do sto. padre João Paulo II, no alto dos arcos, há uma outra imagem que a princípio não pude ver bem de quem era.
Estando ao pé da Junta de Freguesia e sabedor do vasto conhecimento em termos de história coimbrã que o seu presidente possui, fui lá ter sem nenhum outro pretexto.
Após uma espera de menos de 2 minutos, o gentil senhor que já me conhece pelo primeiro nome elogiou a "perspicaz" observação e informou que a tal imagem era de São Sebastião. Isso eu bem achei que era, afinal não faltam aos olhos da imagem uma infinita expressão de dor e resignação.
Entretanto, eu logo interpus objecção: Mas então onde estão as setas?
"Bem, jovem mancebo, houve uma noite de inverno em que o frio era muito e o vento soprava suas tramadas rajadas de desconsolo. Desciam da universidade, entretanto, muitos capas-pretas com as bochechas vermelhas, traziam guitarras e de certeza eram lá alguma tuna que tinha acabado de se apresentar.
A odiosa imagem da dor que o pobre São Sebastição devia estar a sentir naquela fria noite ventosa e ainda todo espetado de setas, veio à mente de algum deles que convocou os outros.
Treparam para cima dos arcos e depois de alcançarem o santo, arrancaram-lhe as setas.
Desde esse dia, ninguém ousou restituí-las e não se sabe mesmo de nenhum outro São Sebastião que não tenha setas atravessadas ao corpo, que não o de Coimbra.
Antes de descerem, os estudantes deixaram pendurada uma placa com os dizeres: "Basta de tanto sofrer."