sábado, dezembro 24, 2011

O natal que eu te dou

Cá faz frio e o natal assim parece algo mais correcto à nossa matriz cultural... mas as experiências do natal para mim estão associadas também ao início das férias grandes e, aqui já como para os outros, das reuniões familiares.
As minhas férias grandes de verão, a começar com o natal, eram também um longo tempo de convívio com os meus primos que no resto do ano não estavam na terra, por isso, ao lembrar daquele tempo penso um pouco nisso.
Hoje é completamente diferente e, como não poderia deixar de ser, penso de uma forma mais ampla nessas celebrações. É uma época de doação e de esperança. Nada mais bonito.
Doação, pois nada faz com que tenhamos uma conexão mais sentida com o divino do que quando abrimos mão de algo que é para nós para dar ao outro. A este sentimento é que se deve dar o nome de amor.
Esperança, pois é véspera do início de mais um círculo da vida onde teremos novamente a oportunidade de sermos bons e demonstrar caridade e perdão. Esperança não puramente nos nossos êxitos, que são legítimos de se ambicionar, mas esperança sobretudo em sermos pessoas melhores para connosco e para com os outros.
Para mim o natal não é nem a fórmula vazia dos centros comerciais e nem puramente uma celebração religiosa, é uma comunhão de sentimentos que vão dar mesmo no amor e na caridade. Acho que o cunho religioso é muito útil pois nos ajuda a refletir sobre isto: a chegada de um menino rei que iria redimir a todos. Que é esta boa nova senão esperança? A redenção aqui não é uma redenção mágica e instantânea, mas sim é a redenção pela conversão na fé de que só há salvação dentro da humilde reverência a um Deus maior do que nós próprios e na celebração deste divino amor que dele emana, uma redenção no perdão, uma redenção na caridade. Eis o convite da religião.
Deixo-vos o meu convite: abram o coração e o encham de bondade. Esqueçam as desavenças, as discussões tolas que não levaram a lado nenhum, esqueçam todas as coisas que nos separam e lembrem-se com o grato sorriso dos felizardos que sóis amados. Celebrem este amor no natal. É só com base no amor que todas as outras coisas podem existir. É só com muita fé nesta redenção que o nosso messias vai nascer novamente e orientar a nossa vida pelo bom caminho neste novo, florescente ano de 2012.
Um bom natal e um ano novo de muita paz e muita saúde.

terça-feira, dezembro 13, 2011

Os que gozam a vida na velhice

Sereno, como o sino do mosteiro abandonado, um olhar parado não se aflige. Não procura com ansiedade as razões das coisas, não conta mentiras por interesse ou por medo, não levanta questões irrelevantes. Olha, vê passar à sua frente.
É desta maneira que penso ser com estes muitos senhores de idade que tantas vezes vejo na baixa durante o dia, a conversar e a ver o tempo passar. É bem verdade que também muitos deles são vistos no Parque Verde do Mondego a jogar as cartas sob as árvores, junto ao Museu da Água, uns mais aventureiros pescam à beira do rio, mais à frente.
Sem pressa de viver, meus amigos. Que belo exemplo nos dão estes senhores reformados! Não correm em desespero, não se afligem demasiado, não se esgotam em preocupações e ansiedades e - digo-vos isso com convicção - são felizes, ou ao menos são mais felizes do que no tempo do trabalho, ou melhor, são felizes de outra maneira, pois que livres da obrigação de prover para si e para os seus.
Arrisco ir mais longe. Acho que se pode ver nesta sua serenidade, mais que o conforto pela despreocupação com o prover, a experiência que vão ganhando com os anos e que os ensinou a ser assim mais brandos, a saber ouvir até o fim antes de dar o palpite ou a sentença apressada.
Penso que, se chegar mesmo à velhice, seria assim como eles. É capaz que não. Acho que é muito difícil ter este estado de calma e de espera (que não é bem espera, é mais uma forma diferente de apreciar a vida).
Todavia, por ter aprendido a não brigar demasiado com a vida e saber aceitar as circunstâncias que vão se impondo contra a minha vontade, acredito também que poderia me adaptar a isto.
Seria assim: sairia cedo de manhã para o meu primeiro passeio, ia ver a rua, como estava a praça assim cedo, depois voltava a casa às 9 horas para um bom e rico pequeno almoço, com ovos, torradas, café e tudo mais sem pressa nenhuma. Às 10:30hs de volta à rua para me encontrar com os meus colegas de reforma e pôr a conversa em dia. O assunto pode ser qualquer um: política, futebol, festas da cidade, o que for - desde que seja uma conversa amena. Às 12 horas de volta à casa para o almoço e posterior descanso da tarde (que vou bem merecer, depois de tantos anos de trabalho!). Às 15:30 horas é sair de novo para o convívio que pode ser de vários tipos, como jogar as cartas ou fazer algum trabalho voluntário, ou uma sessão de dança de salão: o que apetecer! E se o convívio não for boa pedida em alguma altura, de certeza que sempre vai haver boa leitura para fazer, mais uma vez, sem pressas. À noitinha o jantar e o sagrado descanso no conforto do lar.
Assim, depois de um dia tão à vontade, à minha maneira, vou poder espreguiçar à vontade e feliz por ver que a velhice, afinal, não é assim tão ruim como lhe pintam.

quinta-feira, novembro 03, 2011

Feitas as contas


Passado o tempo, revejo nas folhas amareladas de mim mesmo o reflexo da minha época e daqueles que me tocaram a alma.
Sou um homem de pensamentos e sentimentos vastos, nunca tive medo deles.
Aventurei-me junto deles para me ver em seguida metido em labirintos de dúvidas, perdido e sozinho no mundo, algumas vezes. Tinha então apenas a convicção pálida de que os meus guias não me iriam trair, de que me orientara por bons propósitos.
É talvez como esta grande centelha de amor que queima em mim. É um perdigão que teima em não perder a pena, não importa o mal que lhe venha. Ama, pobre coraçãozinho iludido, estes tons de dourado e de bege do outono como uns anjos a anunciar a estação da minha vida: não tem o calor e a estupidez do verão, também não traz em si a inexperiência e nem a novidade da primavera, nem tampouco confunde-se com a rudeza e a maldade implacável do inverno, traz em si uma temperança, um desanuviar de preocupações injustificadas, é maduro e forte, impõe-se quando é preciso, mas sabe acolher sem magoar. Mais que tudo: não quer para si, mas quer dar de si.
Com o outono o meu coração encontra-se na estação certa. Ama muito, tem sede e fome, tem necessidades de homem, quer ter em si o mundo inteiro, quer perceber o mundo inteiro e achar razoabilidade nesta incrível selva de medricas, corsários, palhaços, lambe-botas, putas, ladrões e uns poucos tolos que, como ele, insistem em remar contra esta grande onda de indiferença e mediocridade.
Ama muito este meu coração. Ama a Deus como um bom e amoroso pai que muito o mima. Ama as montanhas da sua terra, de um amor louco e feroz. Conhece-as como se as tivesse andado todas, pelo caminho velho e pelo caminho novo. Ama respeitosamente a família e suas heróicas origens, com uma devoção discreta e quase nunca declarada. Ama a mulher, pois nada no mundo reúne tanto mistério, tanto encanto, tanta beleza e tanta treta. Amo até a Eva, que feita da costela do Adão, não hesitou em tentar o pobre homem a comer o fruto proibido. Cada uma delas é uma caminho para a vida de nós homens e qual fez Adão, também nós hoje mordemos a maçã cheios de convicção de que estamos a ir pelo bom caminho. Que culpa têm as mulheres, Deus meu? Eu não lanço culpas, eu prefiro amar.
E de tanto amar, amar assim como um exagerado disfarçado em comedido, já fui até acusado de não amar! Como se fosse possível...
Feitas as contas, deixo na contabilidade muito mais ganhos que perdas. De todo o amor que eu dei, tão grande e tão imenso amor recebi. Um amor que me aquece até às pontas dos dedos, um amor que rasga o peito, que quer acolher, que inspira o risco e a ventura, que leva à frente, que é forte, que compreende e sofre, que quer mesmo é amar, amar até não mais poder.
E se de todas as minhas contas posso ainda deixar um conselho, eu diria para por tudo no amor e de lá não tirar nada, nem que falte o comer. Assim pretendo fazer e que Deus me ajude.
Deste modo, ao fim do exercício da vida, saberei feliz que deixo esta grande fortuna que é o amor daqueles que eu amo.

sexta-feira, outubro 28, 2011

Viva a aristocracia!

Aldous Huxley

Sou um animal político, como todos nós somos, e como tal interesso-me pelos sistemas que informam a distribuição do poder.
Atualmente vivemos um tempo de democracia, em Portugal desde 1974 e no Brasil desde 1985. Não que esta seja a primeira experiência democrática destes países... Mesmo no tempo dos reis ela existia e era bem exercitada, nalguns (poucos) períodos da vida republicana também.
Os seus defensores dizem que é o melhor dos sistemas, pois consagra a legitimação popular e todas as outras alternativas não são melhores.
Acredito que essa ideia comummente aceita e quase nunca desafiada é uma mentira das grossas.
A democracia é uma branda maneira de favorecer a corrupção, a ineficiência e a infelicidade.
Através do regime democrático grandes charlatães e demagogos alcançam posições de grande poder e influência para distribuírem favores aos seus e causarem grandes prejuízos aos cofres públicos.
Pela democracia o povo se anestesia e evita discutir pois a decisão popular consagrou aquele governo e toda contestação cai sempre nessa falácia.
Este nefasto sistema é o que proporciona as muitas perdidas horas de trabalho dos parlamentos do mundo todo, com seus grupos inconciliáveis a morderem-se uns aos outros por um pedaço maior do bolo, formados quase sempre por políticos de carreira, formados nas maliciosas juventudes partidárias para se converterem em políticos de carreira, pessoas incapazes e muitas vezes mal intencionadas e cuja produção não reverte minimamente o custo que consome. A aristocracia é bem diferente.
Posso afirmar que nenhum outro sistema garante tanta eficiência, transparência ou felicidade quanto este de premiar o talento, o esforço e o gênio individual, pois parte do princípio de que os seres humanos são diferentes, o que é uma verdade incontornável e que os que defendem a democracia teimam em ignorar ao pretenderem, de maneira hipócrita, que os homens são iguais.
Se fôssemos iguais não haveria presídios, nem universidades, nem parlamentos, todos faríamos parte dos mesmos círculos pois é isto que consiste a igualdade que se pretende com a democracia quando é levada às últimas consequências e que no fundo não passa de uma ilusão e um embuste político.
Acredito firmemente que nos aproximamos cada vez mais da aristocracia. Vejam que não estou a referir à autocracia, onde as liberdades e os direitos fundamentais cedem lugar a uma ordem totalitária e opressora, onde a vontade de um indivíduo ou de um partido se converte em supremo mandatário da nação. A aristocracia também não tem a ver com um elitismo económico, onde o poder seria concentrado nas mãos dos donos dos meios de produção e do capital financeiro, estes grandes gatunos que não possuem minimamente as condições de carácter para gerir algo para o bem comum.
A aristocracia refere-se a premiar o talento. É uma sociedade voltada para alçar às posições de liderança os indivíduos mais capazes.
Incute no povo a ideia de que o talento e o esforço pessoal são o maior de todos os patrimónios e uma vez que um indivíduo os possua as portas estarão abertas ao seu contributo.
Também é mais amplo do que pode parecer à princípio pois não se circunscreve apenas à esfera meramente política, mas informa o próprio sistema de educação, por exemplo.
Na aristocracia os estudantes, desde tenra idade, são incentivados a assumir uma postura mais ativa na construção do seu próprio conhecimento. Desta forma, ao invés das maçantes e improdutivas horas a ouvir a palestra do professor, cada aluno deve trabalhar ativamente em tarefas de pesquisa e de exercícios a fim de cumprir um programa semanal mínimo de estudos. As classificações obedeceriam portanto a qualidade do trabalho produzido e a eficiência com que foi desempenhado. Os próprios mestres também deveriam apontar as qualidades de carácter dos alunos e destacá-los para tarefas mais apropriadas para o seu génio individual. Este sistema, por acaso, já existe e goza de boa saúde em muitos países, como a Inglaterra, os Estados Unidos e mesmo em Espanha. Trata-se do "Plano Dalton". Há uma escola que implementou este programa no País Basco e que tem resultados maravilhosos. Também na Holanda é muito popular. Em Portugal e no Brasil, no entanto, não há uma só escola que funcione nestes termos.
Indivíduos educados desta maneira seriam muito mais ativos na sua vida adulta, teriam muito mais iniciativa. Não ficariam à espera, iriam sempre tomar à frente da prória vida e ir em busca daquilo que lhes interessa. Eis outra feição do regime aristocrático.
De tudo em tudo, não se trata de promover um elitismo, mas de promover uma cultura de elite onde as posições de comando são dadas aos indivíduos mais capazes de as desempenhar.
As funções legislativas, executivas e judiciárias do Estado seriam desempenhadas pelas pessoas mais preparadas e cuja preparação seria aferida pelo seu percurso de vida, pelo conhecimento que adquiriram, pelo seu carácter atestado por quem os educou, pelos objectivos que tem para si próprios e para sua vida.
Muitos irão dizer: "este aqui está a delirar...", mas estas mesmas palavras foram direccionadas a Jean Jacques Rousseau quando as suas ideias iluminismo e anti-absolutistas começaram a ser publicadas e hoje ninguém ousa discordar destas mesmas ideias.
O que se passa é que a implementação de um outro regime em substituição ao democrático é algo que só pode ser feito no desenrolar das folhas do tempo, a dizer, as seguidas gerações, a pouco e pouco, tem de assimilar os valores da aristocracia (que já existem, principalmente no mundo empresarial) e desenvolver os modelos pelos quais esta aristocracia irá passar a vigorar.
Um primeiro passo seria o estudo desta fascinante forma de organização do Estado e da sociedade. Recomendo "Sobre a democracia e outros estudos", de Aldous Huxley. Lá também encontrarão interessantes apontamentos sobre o Plano Dalton.

quinta-feira, outubro 06, 2011

Eu me amarro no gigante da colina

O coração em disparada. Os olhos parados, à espera. Meu Deus, que grande angústia, ver o meu querido clube ser injustiçado como foi no último domingo frente ao Corinthians, em São Januário. Escapava a vitória por um lance de fora de jogo marcado de maneira inexplicável, a anular o golo que nos daria a vitória. Mas dessas coisas é que é feito o grande amor que se tem pelo futebol, especialmente o amor pelo Club de Regatas Vasco da Gama.
Uma equipa que traz em si a nossa herança portuguesa, um clube que é o clube desta tão vistosa colônia, a princesa entre as colônias de estrangeiros do Brasil, nossa alegria.
Este ano tem feito uma muito boa e promissora temporada, como pode ser visto: detém hoje a primeira posição no campeonato brasileiro, alcançada com brio, mantida com muito esforço e que indica já um desfecho feliz para a grande empresa que é sagrar-se campeão desta competição, que é das mais equilibradas e disputadas do mundo. Para se ter uma ideia, por vezes do primeiro ao quinto ou sexto lugar a diferença que separa cada uma das equipas é de apenas um ponto, do que é de se reconhecer o campeonato brasileiro como muito disputado e de alto nível, o que também contribui para incendiar os corações dos torcedores.
Muitos irão pensar: "mas os clubes são todos iguais... querem os títulos pelas verbas de publicidade e as boas vendas que vão fazer dos jogadores... os torcedores são uns tolos por alimentarem essas ambições." Mas isso não é verdade.
Um clube que é nosso, comunica-nos os sentimentos e os ideais que nos movem, que nos fazem ter as personalidades que temos e fazer as escolhas que fazemos e ser amigos de quem somos amigos. Reflecte um pouco da nossa própria maneira de ser e de estar, da nossa personalidade. Ver o nosso time ganhar é ganhar também, e como é sabido, a vitória tem um doce, inebriante sabor.
Para nossa felicidade, esta equipa que veste hoje o equipamento do gigantão da colina, meu querido Vasco da Gama, é boa, é mesmo da fuzarca!
Com craques como Juninho Pernambucano, Dedé e Diego Sousa, faz lembrar o expresso da vitória de 1948 que ganhou todos os campeonatos e que foi o primeiro campeão sul americano invicto. Faz lembrar o time de 1989 que eu vi, ainda menino, ser campeão brasileiro com um golo matador do Sorato. Faz lembrar o campeão brasileiro de 1997 e 200o e o campeão da Copa Libertadores de 1998.
Não só faz lembrar, já é campeão, pois conquistou há poucos meses a Copa do Brasil de 2011.
Muito mais virá a este grande do futebol do Brasil que por tanto tempo esteve esquecido pelos meios de comunicação que se vangloriavam em ignorar esta potência. No nosso coração, nunca esmorecido, o amor pelo Vasco da Gama é uma coisa muito querida, muito nossa, muito honesta e que homenageia a amizade, o convívio e o melhor futebol.
Acompanhem e torçam connosco, o sentimento não pode parar.
Viva o CRVG!

segunda-feira, setembro 05, 2011

London pride


Depois de 3 anos, voltei à capital do Reino Unido para ter com os lugares onde a minha vida fora apressada, cheia de expectativas, desafiante e ainda assim plena do British manner of doing things.
Ainda lá estava a Coluna de Nelson, com o célebre almirante lá no alto, no meio da praça de Trafalgar, a olhar a Whitehall e a torre do Big Ben.
Por vezes é difícil descrever o que os lugares significam para nós. Associamo-los às pessoas com quem convivemos naquela altura, ou ao ânimo do lugar, ao seu espírito geral... a forma daquele povo, daquele lugar, de pensar e agir.
Londres para mim são os londrinos e é também a própria história da Inglaterra e do Império Britânico.
É impossível não ver as marcar de tão devastador domínio, por vezes acompanhado de grande brutalidade, que este povo exerceu sobre o mundo. De certa forma, o mundo veio ter com os britânicos em Londres, para ver se dão o troco participando também eles da pujança gerada a partir das antigas colônias britânicas em que muitos deles nasceram.
Da minha parte, não há nenhuma ligação pessoal ao Reino Unido anterior à minha estada como estudante por lá, iniciada há 5 anos atrás. Pensava tratar-se de um país que vivia das sobras do seu passado de opressão sobre o mundo, com pessoas esnobes que não tinham boas praias para se bronzearem.
Bem, talvez não tenham mesmo boas praias... Mas não são nada do que eu imaginava. Trata-se de um povo muito corajoso, muito firme, cheio de orgulho da sua herança. São muito civilizados, um educação que pode por vezes tomar a forma de cinismo, mas que no geral é responsável por uma atmosfera social de bastante harmonia, do que é muito fácil conviver com eles.
Eu aprecio sobretudo o sotaque britânico (em oposição ao sotaque americano). Gosto imensamente da intonação quase exagerada, das vogais longas, das expressões que são um vício de usar e que são tão diferentes das ditas em português. (Second to none sempre foi uma favorita, assim como that's a new low). É a inteligência expressa na forma de falar, uma inteligência que dá muito prazer ver fluir e que é muito viva e apreciada.
Lá estive, uma vez mais, depois de tanto tempo, não tanto para rever as marcas que o passado fez em mim por aquelas paragens, mas tanto sim para reviver um bocadinho o gozo que é viver numa das maiores metrópoles do mundo, a maior cidade da Europa, estar de volta para matar as saudades e para agradecer.
Quanto parti, dei-lhe as costas sem desprezo, mas com o gozo do dever cumprido. Terminei lá o meu curso, obtive os meus certificados, tudo com imenso trabalho e sacrifício. Desta vez lá estive, não para ir buscar nada, mas simplesmente para agradecer e sorrir na esplanada da Somerset House que dá para a margem do Tâmisa e sentir a brisa do fim do verão a passar.
Cheers, dear capital city.

sábado, agosto 13, 2011

A jornada do herói

Meu querido, maior amigo, neste dia dos teus anos, umas minhas poucas, talvez tolas palavras, em honra a esta tão linda e tão meiga vida que é a tua.
Começaste, como eu, menino da aldeia, em meio à lenda, à beleza e ao afecto, mas não tiveste o conforto que eu tive na minha infância: trabalhaste desde o surgimento de alguma firmeza nos músculos.
Erigiste-te ao pensamento natural de que a vida é uma avenida de significados vagos e que muita contemplação só servia à perda das paisagens que se iam mostrando, sempre devotas dos teus olhares misteriosos.
Cresceste, fizeste-te rapaz entre os rapazes, pois tinhas uma motocicleta. Mas não só. Tinhas o sorriso, o encanto, o mistério de um coração eternamente submergido na nossa mesma melancolia ancestral - o forte comando na raça de que não há como escapar - a compor essa delicada personalidade de herói ignorado.
Fizeste-te homem em tempo nenhum. Eras então quase casado. Tinhas num amor especial esse recanto onde poderias enfim fazer descansar o grande peso do teu fatalismo sem meditação, alguém que pudesse cuidar da embriaguez da sempre acesa disposição em fazer novo, em fazer amigo, em fazer próximo, em fazer lar tudo quanto o que tocasse.
Amaste, é verdade. Amaste no segredo da tua alma, sem declarações e nem sentimentalismos falsos. Amaste com dedicação, como o teu coração podia, na medida das tuas limitações, amaste muito e sem limites.
Casaste, tiveste os teus filhos. A eles, ensinaste o que lhe tinham ensinado: Deus, Pátria, Família, à tua maneira, é claro. Talvez mais Família que os outros dois...
Ainda hoje montas a tua motocicleta de chamar a atenção, não sei quantas cilindradas sempre a alertar a Deus e ao mundo da tua chegada.
Ainda hoje acendes o teu cigarro de desprezo às coisas do mundo, com baforadas serenas, como sereno é o teu espírito antigo.
Ainda hoje olhas com os olhos do menino meigo e discreto, com muito respeitinho por todos, com muita devoção pelas coisas da terra, com o teu imenso, louco amor de não dizer... Um amor que miseravelmente herdamos de ti, no teu lindo, sempre temperado sorriso de herói.
É capaz que seja a nossa jornada no mundo um bocado também da tua: nunca ferir, nunca magoar, sempre seguir, seguir... para onde? Deus proverá um caminho, um sentido, um lugar. Um além d'onde fincar os pés e plantar em covas rasas as sementes da nossa fé em um mundo um pouco à tua maneira, sem pressas injustificadas, sem ódios, sem ganância, sem discriminações.
Um lanço de terra, um espaço no mundo como é a nossa casa. O sítio onde o respirar do teu sono compôs nas paredes a sua condição de generosidade, conciliação, amizade e sossego.
Tu que ensinaste tantos valores sem nunca dizer-lhes o nome. Tu que pelos teus erros nos mostraste os melhores caminhos. Tu que pelo amor não dito mostrou deveras o amor.
Héroi, imperfeito e trágico, que tão grandes saudades tuas.
Feliz aniversário.

quarta-feira, julho 13, 2011

O que faz falta



Desde já, digo que o Zeca Afonso faz muita falta, e quanto sentido há nisso.
Há uns dias atrás fui ver o vídeo desta canção e havia lá um comentário algo como isso: "que canção sem sentido... se o pão que comes sabe a merda basta ir comprar outro pão!". Uma ideia que é sintomática da ignorância que anda solta por aí, a espalhar a sua miséria.
Fiquei a pensar comigo mesmo se é preciso estar tudo escrito nos formulários das obrigações inescusáveis para as pessoas conseguirem perceber bem o que se trata.
O canalha que escreveu este comentário de certeza não sabe o que é viver sob uma ditadura. Não sabe o que é ter suas ideias controladas, a sua palavra controlada, a sua vontade controlada. Não sabe o que é ser mandado para o meio do mato em África para lutar e morrer numa guerra estúpida.
A mim faz imensa impressão os 13 longos anos da guerra colonial. Penso nas famílias desfeitas, cá e lá, penso nos colonos portugueses que foram obrigados a largar tudo e retornar, penso no sofrimento, na viuvez, na doença, na mutilação.
Tudo o que poderia ser resolvido de outra forma se houvesse diálogo, se houvesse respeito pelos colonizados, se houvesse consideração pelo futuro deles, se houvesse humildade. Nada disso existe na ditadura. Para ela só existe afirmação, força bruta e uma visão unilateral e obsessiva do destino manifesto das coisas - o que vai variar de acordo com o específico tipo de ditadura.
Não só o pão sabia a merda nesses tempos, mas o vinho, a carne e o próprio ar que se respirava. Nenhum homem verdadeiramente livre poderia viver contente assim. E a verdadeira liberdade, tanto naquele momento como agora, consiste na coragem de reconhecer a tirania, a vilania e a opressão da vida e não aceitá-las, a dizer, não querer comer do pão que sabe a merda.
O rapaz que fez o comentário não sabe que não havia outro pão, senão o que sabia a merda para comer. Ele não sabe que é por causa da coragem de homens como o José Afonso, que ousaram dizer e propagar o que pensavam, que hoje já se pode comer outro pão que não o que sabe a merda.
E por isso, meus caros amigos, o que faz falta, e sempre vai fazer, é a consciência das coisas, da brutalidade do mundo, da mesquinhez das condições a que nos sujeitam, um total circo de opressões que só pode ser descortinado quando nos darmos conta do que faz falta: sensibilidade para perceber, humildade para aprender com a história, coragem para agir.
Este grito imemorial há sempre de ecoar do coração dos justos: o que faz falta é avisar a malta do que faz falta!

quinta-feira, junho 30, 2011

Minha juventude

Sim, é o tempo a passar. Acontece todos os dias quando o sol se levanta e depois e umas boas horas de trabalho, estudo, contemplação ou esquecimento, ele se põe novamente para em seguida nascer e começar tudo de novo.
Quando isso acontece mesmo muitas vezes a ponto de termos alguma experiência da vida e aprendermos como essa dinâmica de coisas serve para nós próprios acontece uma coisa curiosa: acaba-se a juventude.
Não quer isso dizer que ficamos imediatamente decrépitos, como velhos à beira da morte. Não, claro que não. Preserva-se o rosto leve e fresco, os músculos rígidos, a beleza quase intocada. Mas já não somos jovens, passamos à categoria dos simplesmente adultos.
Segue-se agora o faro, o instinto, de alcançar um sentido maior que nós mesmos: fazer fortuna, fazer carreira, pagar a renda, casar com a moça bonita, comprar uma casa, dar de comer aos filhos, fazer eleger o nosso deputado, arrancar umas verbas para o concelho, fazer-se vereador e autarca, comprar umas herdades, publicar uns trabalhos, inventar um prato típico, fazer Portugal suspirar de amor, encher os corações de esperança, lidar com amargura, rebater a inveja, espalhar a compaixão, sufocar a discórdia, construir os templos da virtude e as masmorras dos vícios, viver plenamente, como homem pleno de forças, direitos e obrigações, senhor do seu destino e dos destinos dos outros e do seu país.
Corremos as avenidas da nossa vida, como o nosso sangue pelos nossos braços: buscam depressa o seu destino imediato, com força e propósito, mas é-lhes difícil antever o grande giro que se repete constantemente até a derradeira e principal avenida: a do sentido de tanto esforço.
Ao nosso sangue pulsante, faz todo sentido levar e trazer o que leva e traz: vida e que já deu vida. Para nós, trata-se de levar esperança e colher por vezes frustrações e amarguras, o que antes de sê-los, também foi vida.
Como um grande titã a mirar-me do alto do seu Olimpo de glória, vejo o destino a conduzir-me por avenidas de delícias, que as são simplesmente porque não me foram impostas: são as que de livre-vontade pude escolher seguir e sigo com fé. Se além da montanha desses caminhos há traiçoeiras emboscadas ou maldosos vilões, não duvido: esperam-lhes o meu punhal sob a capa, atento e desembainhado, pronto para a defesa. Hei de vencer, mesmo que seja numa aparente derrota onde possa colher a lição do vitorioso amanhã que chegará a mim.
De tudo isso, vigoroso e longo caminho da vida, saltam-me os vislumbres da beleza que enlaçam-me o coração com tal poder, que giro como um menino encantado, iludido com a fantasia, com o coração preso ao seu propósito.
E talvez por isso, por esse pouquinho menino que não se deve nunca renunciar, o homem forte a levantar a espada saiba que não há amargura e nem frustração, não há derrota ou prostração, a vergar-lhe o espírito: dentro dele queima um fogo ancestral. Arde em si o mistério da poesia que ele não há nunca de negar, custe o que custar.
Por mais que custe acreditar, essa é a verdade, meus bons amigos: a este homem-menino-poeta, nenhuma porta do mundo pode se fechar. Ele tem as chaves todas, todos os corações do mundo amam a ele com devoção, ninguém lhe negará entrada.
Todavia, talvez seja possível dizer que nessa sua glória, nesse seu encanto, nesse seu deslumbramento tão atento à realidade e às condições brutas da vida (uma improvável associação de mundos) também existe uma réstia de gosto amargo em tanta sabedoria.
Sabe-se só, sabe-se insuficiente, sabe-se herdeiro e legatário de um mundo imperfeito, sabe-se frágil e por vezes impotente ante à rudeza das coisas. Mas também sabe-se rijo e determinado.
Todas as avenidas do mundo abrem-se a ele. Que passe, que faça edificar, que ponha abaixo, que mande consolidar. Nenhuma juventude o poderá deter.

domingo, maio 22, 2011

Maio maduro

Abril tem 30 dias, maio tem 31, mas parece mais... Esses longos dias, em que escurece já tão tarde, deixa o pensamento também arrastado para mais que talvez noutra altura não fosse possível.
Maio da Queima das Fitas, com seus cantores da madrugada pelas ruas da alta, a perturbarem-me o sono, maio das longas viagens, maio da Feira de Azambuja, maio a mais não poder.
Suas longas tardes gostam mesmo é de se espalhar para além das 6 horas da tarde, mais duas, quase três.
É mesmo agora por esse mês de maio que já começam a se agitar os partidos com as eleições em julho, é já agora que o calor evoca um verão que ainda demora, ao menos para poder ser gozado, é já agora em maio que se delineia um novo ano na academia.
Lembro-me vivamente, com esse prematuro verão do fim de maio, da minha chegada à boa cidade de Coimbra, para cursar o mestrado. Lá como agora, o impulso da vida parecia levar consigo qualquer outra indisposição, não dando vez a nada a não ser o comando de gozar aquela gentil condição de preparar mas sem afobações e nem angústias.
Vêm-me o cheiro das sardinhas na brasa, o gosto do vinho de Cantanhede, a brisa morna da alta, o transpirar das tardes no árido paço das escolas.
No mesmo fluxo, emerge uma ansiedade positiva de querer ver surgir aquele tempo novo, que então não se podia adivinhar bem e que talvez agora o seu congênere atual seja mais bem talhado nos anos passados.
Faz parecer sempre uma lógica circular do tempo e da vida, que nos reconduz ao recomeço, sempre novo e diferente, no entanto. É bem capaz que seja assim porque a nossa personalidade o diz, porque pede sempre pelo mesmo, pelos mesmos caminhos e pelas mesmas pessoas, mesmo que não seja tudo exatamente o mesmo na sua individualidade, mas a similiridade acaba por buscar a si mesma.
Estive a ter uma doce leitura nas últimas semanas. "Querido poeta" é o livro de correspondências de Vinicius de Moraes. Trata-se mesmo de uma inscurção pelo coração e pela mente do poeta, durante toda a sua vida, pelas cartas mandadas e recebidas desde os anos de 1930 até a última cartinha em 1980, ano da morte de Vinicius.
Essa excessiva aproximação do privado serviu-me para admirá-lo ainda mais, para compreendê-lo, compreender a sua grande gana de se fazer ler e ouvir, seu grande empenho em fazer chegar às pessoas a sua arte, com o intuito inquestionável de dividir com os outros e não o de somar para si.
Mais ainda, a vida de Vinicius, como a minha também e a sua, meu leitor, mostra lindamente o caráter cíclico dos acontecimentos, como nós nos reconduzimos a um perene começo, sempre diferente, mas que traz em si os mesmos elementos da vida que escolhemos para nós próprios: a nossa decisão quanto ao que será do nosso amor, da nossa amizade, da nossa profissão, da nossa fé.
Na doçura de um novo momento, o bom é reconhecer nele seus constituintes passados, sem os quais não haveria, mas acho também que vale viver a sua novidade nas circunstâncias das boas surpresas e dos novos desafios, sem os quais esses longos ciclos da vida iriam dar a lado nenhum.
Tudo isso a se passar nesse nosso maio, maduro maio que teima em não acabar.

quarta-feira, maio 04, 2011

Novíssimas tranças reflectivas

Os longos anos gastos longe da Princesinha de Minas, a bela Juiz de Fora, não serviram para limar o meu amor pela cidade.
Já quase completos dois anos de ausência, o céu parecia dessa vez menos laranja e as esquinas menos ressentidas. Nos prédios e nas avenidas do centro, a mesma gente a mover aquilo para a frente, as mesmas empresas de transporte público com suas tarifas caras a ajudá-los a ir de um lado ao outro.
Juiz de Fora da minha adolescência, que não é revivada no saudosismo triste de tentar trazer de volta o que já não é e que é desmascarado na verdade mais óbvia: nem eu próprio sou o mesmo. Mas a cidade nos seduz nas pequenas sutilezas que o nosso coração não deixa escapar como ordinárias: aquele último abraço, a última volta pelo centro de madrugada, o costumeiro colorido dos nossos sábados, a contínua brisa a soprar as velhas lembranças na avenida Rio Branco.
Assim solto no meio desse redemoinho de emoções, o coração se aperta, tenta ver no tempo e no espaço aquele rapaz que deixou ali um rasto de risos e lágrimas que o tempo não tem podido fazer sumir.
Os velhos amigos dão os braços para me levar às velhas inscursões do espírito, quando leves e puros, rompemos a barreira de mistério que separa o menino da sua definitiva face de homem. Cantam a canção que inicia o rito, que põe-nos em marcha, rumo aquele mesmo sabido ideal de não deixar falhar a mão ao nosso irmão que nos aguarda para a defesa num momento de aperto. Escorrem lágrimas, dão-se gritos, mas os aviões continuarão a patrocinar a distância e os corações e mentes justifica-la-ão como já fizeram tantas vezes.
Não é um desespero, não é uma agonia sem mãe nem pai, não é o fim e nem o começo do mundo. É, isso sim, ter o coração apertado, como se pulsasse com mil pequeninos cortes a tirar dele o fluido vital que é sua razão de ser.
Entre a tristeza e a alegria de existir tanto para mim nessa boa terra de Murilo Mendes, nunca cessarão os meus pensamentos de amor filial para Juiz de Fora e fraternal para com os juizforanos.

quinta-feira, abril 28, 2011

Queda d'água bruta no peito

Num só dia pisei a rampa do Palácio do Planalto e o calçadão da praia de Ipanema. Essa grande jornada das minhas férias de páscoa, se custou ao corpo a sua taxa, ao menos entreteu o suficiente para que o peso das longas horas de viagem não me deixassem chateado.
Depois de quase dois anos, cá estou eu novamente, no seio desta terra onde nasci e que guarda, ainda hoje, a aventura e o mistério, a paixão e o sonho, estas lindas Minas Gerais da minha vida, com seus mil veios de ouro puro a deslumbrar os meus olhos e tornar mais rubro o meu sangue.
Trouxe o meu grau académico para mostrar, porque afinal é pela formalidade das razões que as coisas se explicam mais facilmente, mas o que eu trouxe mesmo vai muito além de uma dissertação de mestrado.
Comigo vieram também o fado e o sol da primavera, a maneira educada de abordar que ao mesmo tempo pode parecer bruta, os olhos postos firmes naquele pré-sorriso que o copo de vinho ajuda um pouco a formar. Um coração cheio de Portugal. Como uma queda d'água bruta no peito, faz-se notar para mim mesmo.
Talvez por isso as coisas do Brasil pareçam tão diferentes agora. Depois de tanto e tão profundo aportuguesamento, tudo parece um pouco fora de sítio: o calor, as roupas das pessoas, o modo de tratar, as confianças não dadas e que os brasileiros sempre acham que podem tomar - embora de boa-fé.
Se cá fosse ficar uns 2 meses, acho que pela quarta semana já estaria adaptado novamente a essa bossa nova daqui. Como não é o caso, quase me sinto estrangeiro no meu próprio país, onde as lembranças dos usos e dos costumes parecem sempre visões turvas de algo que no passado eu conheci, mas que hoje é diferente.
Vejo um país a levantar-se com uma força imensa. Uma nação de braços dados, quase sem religião e com valores confusos, doida para ter e se fazer notar. Uma nova América? Não, não será nunca o que os Estados Unidos são porque não fomos formados naquele protestantismo revanchista, nem temos clara a noção do nosso destino manifesto.
O Brasil se levanta com ambição. Nisso os brasileiros estão todos juntos. Mas a gênese da riqueza lhes escapa covardemente por entre os dedos: ignoram que a prosperidade anda de mãos dadas com os valores que a sociedade defende acima de tudo. Sem os valores (cristãos - na minha humilde e devota perspectiva), o que sobra é uma geleia de interesses a se devorarem uns aos outros para serem no fim enlaçados por um terceiro oportunista que lhes aproveita os esforços mal intencionados, para mais à frente também ser vítima de alguma emboscada vil.
Portugal anda melhor? Não, sinceramente não acho que os portugueses sejam anjos da providência, mas ao menos os valores ainda se fazem sentir com mais força: há o respeito pela propriedade alheia na medida que se quer que a nossa seja respeitada, há recato, há alguma sensatez e muita sobriedade nos discursos das gentes - o que às vezes passa por pessimismo, mas não é. Ninguém mais que o português deseja que as coisas corram bem, o que custa é ver a realidade e sonhar... Mas Portugal sonha e eu também sonho.
De frente para o Palácio do Planalto ou na calçada da praia de Ipanema, um mesmo e grande país a fazer-se ao mundo sem ter clara a razão dessa pretensão toda. Em Portugal, um rosto a mirar o infinito, à espera de que o gigante conte o segredo da sua pujança e desfaça o nevoeiro que há tantos séculos cobre todos os corações lusitanos.

domingo, março 06, 2011

Mas é carnaval...

Hoje não é o meu dia de sair mascarado e nem de fazer as traquinices que no meu tempo de menino eram o grande gozo do carnaval.
Digo carnaval como quem diz entrudo, não o carnaval das extravagâncias da carne, essa estupidez nunca me interessou, para mim não passa de uma grosseira coroação dos instintos que durante o resto do ano se deve repremir, portanto, é um bocado estúpido. Daí também já se vê uma diferença clara entre o carnaval das crianças e o carnaval dos adultos, coisas completamente diferentes, mas que os pequenos tendem a não compreender, como é natural.
Hoje, se calhar, fico feliz já e apenas em lembrar daquele entrudo de quando eu era puto. Dos preparativos das fantasias, das peças a pregar, dos exageros inocentes, daquilo de não ter identidade e poder exagerar nas brincadeiras sem que ficasse ninguém chateado. Talvez também isso fosse estúpido, mas pelo menos não era uma banalização dessa época antes da quaresma, como é para os ateus.
Lembro-me vivamente do carnaval dos meus oito anos quando tinha como missão, para além do meu traje de carnaval, também o dos meus primos, tínhamos de pensar no que queríamos nos fantasiar, depois as mães iam lá ver como arranjar aquilo em condições, nem sempre as mais favoráveis, diga-se de passagem.
A ideia, no entanto, era ter dois trajes de carnaval. Um dos trajes usava-se nos bailes de carnaval, que para as crianças eram matinês, sempre uma ao domingo e outra à segunda-feira, das 16 às 18:30hs, por vezes começava mais cedo. O outro traje era mesmo para o entrudo, também tínhamos máscaras, mas esse traje era mesmo de roupas velhas, coisas que já não importava rasgar ou manchar, e tanto quanto ninguém soubesse quem éramos, melhor. Isso de preservar a identidade era algo para se levar a sério, não bastava uma mascarazinha de nada, só para constar... Não senhor, era preciso cobrir bem o rosto, por vezes utilizando uma fronha velha, fazendo-lhe as aberturas necessárias para respirar e ver, e pintando-a para ilustrar a cara do "sujo", eis como chamávamos a esses mascarados e cada um desses portava uma espécie de porrete, que era para se defender dos que viessem gozar e para as peças também, como é claro. Nos bolsos levávamos farinha de trigo, uns ovos e pouco mais, de acordo com a criatividade.
Era claro que entre o baile de carnaval e a noite de entrudo eu preferia sempre o entrudo. Saíamos eu e os meus primos, sempre num grupo de 4 ou 5, e fazíamos a volta à praça todos juntos, num grupo bem unido. Por vezes encontrávamos outro grupo de "sujos" e aí podia haver guerra, mas era sempre coisa de crianças, sem grandes traumas. Normalmente também acompanhávamos a banda da nossa terra que nos dias de carnaval ainda hoje sai pelas ruas a tocar as marchinhas e a acompanhá-los saem uma boneca gigante cabeçuda a "negra Tereza" e também um senhor a empunhar uma fantasia de touro e um outro numa fantasia de mula, além de um toureiro e a grande festa é a simulação de uma tourada com esses três personagens. Nós acompanhávamos essa turma toda, sendo de alguma forma também parte dela.
Sabia bem ser criança e estar na rua a ver as pessoas do costume e estas não saberem quem éramos nós, havia ali algum gozo e por isso mesmo gozávamos com eles e víamos o que faziam quando atirávamo-lhes um ovo, ou laçávamo-lhes farinha na cara, muito bem sabiam eles que podia ser um sobrinho ou um amiguinho que estava só a gozar, por isso, por regra, nunca nenhum adulto revidava a um "sujo", o que acontecia só quando as coisas ficavam mesmo fora de controle, mas pronto, aí é porque o "sujo" em questão já era mais grandinho e também porque já devia ter tomado um copo ou dois e andava a festejar mais do que o normal.
Bons tempos que já não voltam, e não faz mal que seja assim. Sei bem que mesmo na minha terra essa tradição já não continua, ao menos já não é o que foi. Hoje é só barulheiras e cerveja e gente com pouca roupa a dançar música bahiana... not my cup of tea.
De todo jeito, meus leitores, muita água e muita alegria, além do juizinho habitual, nesses dias antes da quaresma, porque depois do carnaval a vida continua, como bem o sei.

sábado, fevereiro 05, 2011

A menina e os olhos

Estava a espera do autocarro. Estava também um colega de gorro e barba por fazer. Era feio o rapaz, mas metia-se com ela e ela até parecia gostar daquilo, embora coibisse os abusos quando ele a agarrava pela parte de trás do pescoço e a puxava para junto de si.
Era bonita a miúda. Tinha uns olhos cinzentos que pareciam ser castanhos e o cabelo, esse sim castanho, mas brilhante e cumprido. Umas maçãs do rosto bem lusitanas e boca bem feita davam-lhe o aspecto de moça das Beiras, mas sem ter a pele propriamente morena.
Fiquei a observá-los quando eu próprio me encontrava naquele insólito de depender do autocarro para ir de um lado para o outro. Mas foi um curioso parar para observar a vida.
Os dois falavam de outros colegas e de coisas um bocado tolas, do que não vale vir aqui colocar ou reproduzir. No entanto, faziam uma figura engraçada aqueles dois. Eram uma decadência muito colorida, mas ainda assim não propriamente decadente. Pensava onde é que o autocarro os iria levar: se era para casa, se era para um outro encontro, se ainda tinham esperanças de desligar daquelas tolices e ver a beleza daquela idade, daqueles poucos anos que eles tinham ali e que vai desaparecer amanhã numa forma mais madura, embora também possa ser bela.
Chegou o meu autocarro primeiro. Ela ficou a olhar-me nos olhos e o rapaz acabou por reparar no meu passar por eles. Quase sorri, mas não, não o cheguei a fazer. Ficaram lá os dois em meio aquelas brincadeiras idiotas de adolescentes.
Ainda fiquei a pensar naqueles dois por um bocado. Revi os meus momentos de rapazito pateta na procura das coisas novas, mas mais bem comportado que aqueles dois, acho eu. Hoje se calhar as coisas que eram novas naquela altura já são as do costume e as euforias manifestam-se de outras maneiras.
Faz-me falta, entretanto, aquela despreocupação com o resto do mundo, com os olhos e palavras do resto do mundo, ante o nosso maravilhar pela vida, o nosso encanto e a nossa descoberta, a nossa alegria pela liberdade e pelo sonho. Tendo que tudo isso não é exclusividade dos adolescentes, ao menos, cabe invejar-lhes o inocente desleixo com as aparecências, por vezes sem sentido, e que nos conformam a vida para dar tão pouco de volta.
É capaz que quando eu voltar a ver aqueles dois também eles já tenham desaprendido essa liberdade irresponsável que ninguém nos deixa manter quando se quer, ao mesmo tempo, ser levado a sério.

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Vem viver a vida, amor




São frias essas manhãs do início do ano, mas na friagem não há maldade e nem bondade, é como é. Segue-se o caminho de todos os dias, que também não prende e nem liberta, é simplesmente nosso e acho bem que se tire proveito da sua beleza simples, onde houver.


Dar de si, meu amigo, requer muito amor. O amor decidido e desinteressado, não como o amor dos gatos e nem como a conveniência das estações da vida, quando o amor é uma brincadeira tola e infantil.


Mas como dar, como amar, se as pessoas nem se conhecem a si próprias? É um absurdo o que anda por aí de gente a ignorar o comando socrático de conhecer a si mesmo. Por vezes, são os mesmos que desprezam a filosofia e riem dos que discutem com seriedade, essa raça da qual pertencem orgulhosamente os políticos de carreira e os magistrados que não se importam com o ideal da Justiça e, uns e outros, a contribuir para a ruína de Portugal e dos portugueses. Falta muito amor, falta muito conhecimento, falta reflexão e falta também uma metáfora para ilustrar a ideia. Então, vamos a isso.


Noutro dia, vi um guia turístico de Nova Iorque a explicar que a cidade não deveria ter como alcunha "big apple" (grande maçã), mas sim "big onion" (grande cebola), já que tinha várias camadas e não poderia ser concebida na superficialidade do Central Park ou dos arranha-céus de Manhattan. É a verdade.


Eu adoro maçãs, e cruas são muito melhores que as cebolas, mas é capaz que a comparação valha também para as pessoas, ao menos as que são interessantes, porque as outras não são nem uma coisa e nem outra, seriam qualquer coisa que desilude quando vê o que tem dentro, como um maracujá com pouca polpa.


Camada por camada, ano a ano, sobrepõem-se ideias e pensamentos de outrora enquanto novos florescem e passam a estabelecer a nova ordem. E assim, na distância do tempo, torna-se algo artificial estender a mão a quem ficou do outro lado da ponte, como que intransponível agora, que liga o aqui e o lá no tempo.


É como andar à beira do rio a imaginar a vida de Miguel Torga. Ainda ontem comemorava-se algum aniversário relativo a ele, não sei dizer se o de nascimento ou do dia que veio morar para Coimbra... Facto é que gosto muito do Miguel Torga e da forma como ele via a vida.


Poeta sereno, de expressões serenas... e que amava o sereno Mondego, que via do seu consultório no Largo da Portagem.


Acho que essas manhãs frias de Janeiro não chateavam o Miguel Torga. É capaz que ele fosse um homem prático para essas fadigas involuntárias da vida e soubesse que elas são também parte dessas camadas novas que vamos ganhando no decorrer da vida, uma vida vivida "sem angústia e sem pressa".