sexta-feira, dezembro 27, 2019

Quando te fiz chorar

Les frères, Annie Massollo

Há poucas coisas tão íntimas quanto as emoções. Como umas acabrunhadas filhas no nosso ego, elas relacionam-se diretamente com os medos, as paixões, as ilusões e as ambições mais profundas.
Cedo aprendi o poder destrutivo, ou até involuntariamente construtivo das emoções. Recordo antigas discussões com o meu irmão, sempre muito acalouradas, por coisas sem nenhuma importância, mas que resultavam em dramas fenomenais. Ele com o seu especial gosto por provocar e testar os limites, eu com o meu orgulho e meu sentido de justiça. 
Quando estávamos os dois na segunda infância, eu com 12 anos e ele com os seus 9, tivemos uma briga séria, que começou por qualquer tolice num jogo de futebol. Ficamos então sem nos falar por uns dias, a fingir que o outro não existia: um comportamento tão estúpido e cruel que ainda hoje me envergonha. Na altura a nossa maturidade não dava para muito mais, e ficávamos a medir forças com esse tipo de agressividade inútil... Mas como era época das festas da cidade, também andávamos os dois muito distraídos com outras coisas.
Era comum saírmos à noite com grupos de amigos à procura de algum entretenimento: ver as novidades do parque das exposições e por lá passear e arranjar algumas confusões. 
O recinto constitui-se num grande largo com um campo relvado para as provas equestres e rodeios, com uma grande arquibancada que se insere harmonicamente no declive, formando uma espécie de mistura entre praça de touros e anfiteatro grego antigo. Há restaurantes improvisados à esquerda de quem chega, com alguma estrutura a mais que a dos carros das farturas das feiras e festas populares, além de pavilhões de exposições. À direita ficam os pavilhões com os estábulos para os animais, sobretudo cavalos e bois, mas também há um ou dois pavilhões temáticos. À frente, fica uma grande estrutura com palco, com dois pisos e uma excelente projeção sobre o largo. No fundo ficam, aí sim, as carrinhas de farturas e outras vendas em barracas montadas, das quais recordo com particular saudade as que vendiam uns estupendos espetos na brasa.
Anexo ao parque das exposições, ficava o recinto do parque das diversões, com os brinquedos para miúdos e, muitas vezes, também para os adultos. Era um grande campo em declive suave, talvez com três mil metros quadrados, em que havia espaço suficiente para se meter uma roda gigante, pula-pulas, um carrossel (ou dois), uma pista dos carrinhos de bate-bate, além das brincadeiras de arremesso e de tiro ou um ou outro brinquedo da moda que desafiava a coragem dos mais audazes. 
Estava montado o palco ideal para as grandes disputas entre os rapazes!
O meu irmão e eu andávamos em grupos diferentes, e naquela altura ainda por cima, estávamos zangados um com o outro, como já referi. Estávamos cada um por sua conta e risco, num ambiente de muitos ânimos!
Tendo saído de casa mais cedo que eu, o Fernando juntou-se logo com os amigos no recinto. Depois de darem duas voltas àquilo, resolveram ir investigar uns tambores que haviam sido usados numas provas e estavam encostados à beira do relvado. Os miúdos, à falta de supervisão, logo fizeram daquilo uma brincadeira em forma de desafio: "aposto que não consegues ficar de pé sobre o tambor!". Enquanto a coisa estava entre eles, tudo bem. À parte de que os tambores não deviam ter sido deixados ali,  soma-se o risco de que os miúdos podiam partir o nariz numa queda, mas pronto, merecendo alguma censura, não é grave por si só. 
A treta começa quando o meu irmão desequilibra-se do tambor, que apanha impulso e vai direitinho contra as pernas de um rapaz muito mais velho. Talvez já com uns 15 anos, ele era um repetente regular, conhecido da nossa escola, e estava por ali com uns amigos.
"Vais pedir desculpas já!". "Não vou. Foi um acidente". Os outros à volta, sedentos de alguma ação, atiçavam os adversários: "Vais morrer, miúdo". "Vais ouvir isso e calar?". "Eu não deixava que me fizessem isso".
Eu entretanto já andava por ali, porém mais interessado em ver se espreitava uma certa rapariga nos restaurantes que propriamente à procura do mano. No entanto, a voz era demasiado familiar para que não fossem chamados à colação os meus instintos mais primitivos: "És grande, mas és fraco!"
A este último impropério seguiu-se uma valente troca de socos e muita gritaria dos miúdos à volta. Sem pensar no que seria do lindo fio de ouro que trazia ao pescoço, ou da camisa nova que me fora oferecida pela avó e que estreava naquele dia, ou ainda do cheiro fresco de perfume que exalava em favor daquele recinto com os cheiros que podes imaginar, caro leitor, irrompi no conflito a agarrar o meu irmão pelo casaco e lançá-lo para longe daquilo e, ato contínuo, desferir um belo murro na orelha e dois pontapés nas costelas do rapaz. Levei também uma bordoada - o rapaz não era tão fraco quanto o meu irmão dizia. Mas logo aquilo acalmou com a chegada dos adultos e fomos lá obrigados a apertar as mãos e nos desculpar uns com os outros, embora (e ainda bem) não se tenha feito qualquer apuração de culpas, propriamente.
O Fernando nunca se esqueceu daquele dia, e nem eu, obviamente. Para além da poeira levantada pela fumaça daquelas turras que nós tínhamos, para além das tolices emocionais que não contam para nada, há dois corações, muito leais um ao outro, capazes de grandes atos de bravura ou desprendimento. O que conta, afinal, é a sintonia entre os corações... Naquele dia, por muito ruído emocional que houvesse à volta, a vida aconteceu (e acontece) naquela vibração.
Quando o encontrei depois da briga, ele ainda com a cara vermelha da sova que levara, não havia derramado uma só lágrima. Nos meus braços, no entanto, dominado pela emoção do meu acolhimento à sua defesa, chorou discretamente e deixou escapar um longo suspiro. Logo em seguida, enxugou os olhos com as mangas do casaco, respirou fundo e disse, "Bem, agora vamos ver o que mais há para fazer por aqui".

sexta-feira, dezembro 06, 2019

Menininha do meu coração


Vieste a este mundo de modo insuspeitado, como a vida deveria ser sempre. E que grande chegada, Puca-puca... Recordo da ligação do Fernando a dizer que eu seria tio e que dali a uns poucos meses haveria um casamento, tudo assim um bocado em cima do joelho, mas sempre com um imenso sentido de alegria.
Nasceste há sete anos, a 4 de Dezembro, um dia de sol em Coimbra, em que eu percorri as bancas de jornal e recolhi tudo quanto se havia publicado nesse dia, a pensar que no futuro irias gostar de ver como estava Portugal e o Mundo no momento da tua chegada.
Logo chegaram as tuas primeiras fotos, que causaram grande curiosidade: não eras parecida nem connosco, nem com a família da tua mãe: como todos os recém-nascidos, eras uma coisinha acabada de sair do conforto do ventre materno, rosada e chorona, ainda muito inchada. Um traço teu, no entanto, chamou-me logo a atenção: tinhas já um queixo delicado, como o da tua avó paterna, e podia-se adivinhar o contorno do teu rosto desde aquele ponto de acesso à forma dos teus sorrisos.
Vieste cá ainda bebé e encheste-me o coração de alegria: as tuas reinações mantinham-nos todos entretidos: os passeios a Fátima, ao Porto ou a Lisboa eram sempre o mote para fotos curiosas, como a que temos contigo na Avenida dos Aliados, em que te agarraste em simultâneo a mim e ao teu pai, sem querer estar ao colo só de um dos dois.
Depois fui eu que viajei ao teu encontro, doçura. Nos longos meses em que a tese foi sendo escrita, que grande conforto não me trouxeram as nossas brincadeiras de domingo nas Três Barras. Revivi contigo os momentos de uma infância privilegiada, em que livres e intrépidos, o teu pai e eu desbravávamos os limites da quinta, conhecendo ao pormenor cada árvore dos pomares, cada declive em direção aos córregos, a cor dos campos de pasto, o cheiro dos armazéns de café e o silêncio do açude que em nós fez-se (e faz-se sempre que lá estamos) no encontro com o nosso eu profundo.
Também tu e eu corremos pelos campos, nadamos na piscina, colhemos acerolas e comemos mangas, quase sempre contigo a cantar qualquer música... Aliás, fui eu quem te ensinou a assobiar e tu rapidamente dominaste este primeiro "instrumento musical" para de mais uma forma expressar os teus gostos.
Fazes parte disso tudo que somos nós, tens o nosso sangue e o assim a nossa grandeza e a nossa miséria... És inteligente e delicada. Pensas antes de falar e és muito cuidadosa. Uma sedutora como poucas, consegues sempre o que queres sem nunca, nunca forçar... És um exemplo para essa legião de chatos que vivem a insistir e espezinhar... Não, tu guardas a tua dignidade altaneira e tens aprendido rápido a ganhar e a perder. Mas também amas muito e sinceramente... e por isso te colocas muitas vezes em posições de fragilidade. Vai chegar um tempo em que poderás querer sentir de outra forma: se lá não estiver o tio para te olhar com amor e dizer "esquece, encanto", lembra do seguinte: amar é expressar gestos de generosidade convicta, não uma busca por validação.
Brinca com as tuas bonecas, escolhe as tuas roupinhas, e os teus sapatinhos, veste-te de princesa e inventa brincadeiras: vive a tua infância na alegria e na paz, sê a menininha linda e feliz que anda por aí a distribuir sorrisos e a fazer sorrir, sem qualquer antecipação.
Não vou pedir que não cresças. Seria egoísmo, ou tratar-te como se fosses um brinquedo, a servir ao nosso deleite. Vais crescer e estás a ser criada para seres uma mulher, digna da nossa casa e de ti mesma, e assim serás. 
Porém, não nego que o teu riso de criança seja para nós a própria vida, pequenina. Conservá-lo é que queremos para ti, no dia dos teus anos e sempre, mas sem técnicas de redoma, que te previnam de experimentar o mundo. Do alto das montanhas das minhas convicções, majestosas como as da nossa terra, terás do tio sempre um abraço de amor e uma palavra de verdade, e nenhuma desilusão te poderá jamais deitar abaixo.

sábado, novembro 30, 2019

Rapariga da Foz



Chovia bastante no início da manhã daquele dia. Quando me meti no carro para ir à universidade já havia amainado, mas ainda assim estava composto o cenário de Outono do Porto: chuva fina, pouco vento e frio. Não era um dia feio, no entanto e ao contrário do que a sugestão indica: as árvores coloriam as ruas de vermelho e laranja, e mesmo as folhas caídas, já podres no seu castanho a indicar a morte, tinham o seu encanto harmonioso. Como é natural, estava muito alinhado e bem disposto com aquela forma do mundo e fui também eu à minha vida para fazer parte dela.
A meio do caminho, na altura em que temos o mar à esquerda, naquele dia a rebentar umas ondas furiosas, vi a caminhar na calçada oposta uma rapariga com uma linda parka de cor amarelada, semelhante à lã no estado natural. Não levava guarda-chuvas e, por isso mesmo, tinha o capucho a cobrir a cabeça. Ainda assim não tinha a cabeça baixa: olhava o horizonte de frente e levava com a chuva fina no rosto. Uns cabelos de um louro escuro, soprados pelo vento, terminavam de apresentar aquela figura inusitada, a marchar em direção às suas aulas na Universidade Católica Portuguesa.
Parado a esperar que o sinal finalmente apontasse para o green go, distraí-me com a resolução da rapariga em apreciar a chuva... Não parecia nada imersa nos próprios pensamentos, como está todo o resto desta linda e sonâmbula cidade do Porto. Sem surpresa, ela virou a cabeça para o meu lado e reparou no meu olhar fixo, o que me deixou um bocado constrangido. 
Depois de trabalhar na primeira parte da manhã, já a contemplar as minhas construções jurídicas e muitíssimo envolvido com os artigos e a prova de doutoramento, esqueci-me daquilo completamente, para o meu azar. 
Entrei no bar a pensar na minha meia de leite, pus-me na fila e ensaiei um sorriso para o rapaz atrás da caixa, com quem já tinha feito amizade devido ao gosto dele pelo Boavista. Fui me sentar e só ao pousar a chávena reparei que à minha esquerda, no fundo do bar, olhava-me discretamente a rapariga. Junto com uma amiga, já sem a parka para lhe ocultar a figura, com os cabelos soltos e perfeitamente maquiada, falava pausadamente e dobrava e desdobrava as pontas do guardanapo de papel reciclado, como se estivesse a ilustrar os seus pontos de vista. Quando furtivamente ia buscar os meus olhos, vez por outra mexia no cabelo, rasgando uns sorrisos muito naturais e bonitos. Afinal também havia apreciado o nosso "encontro" mais cedo.
Quando ia saindo e passou por mim, finalmente pude ver que tinha uns olhos verdes acastanhados, de uma cor muito diferente. Como um prisma mágico, brilharam intensamente o mistério que vive em si e que desesperadamente lhe pede para ser partilhado com o resto do mundo.
Uns olhos como as folhas deste Outono que cumprem o seu ciclo de vida. Não quer nada além do seu momento. A rapariga ficou-me no pensamento com aquela decisão de sentir a chuva no rosto, e naquele instante ela esteve presente no mundo, inserida em todo o grande quadro das coisas e dos seres. Que grande presença!
Os anos talvez lhe retirem esse viçoso encanto. Poderá ter desilusões de amor, poderão lhe fazer promessas que serão descumpridas, poderá perder pessoas e posições que agora considera partes fundamentais da sua vida. Espero mesmo que ela não se torne uma dessas balzaquianas ressentidas, cheias de suspeição e incapazes de dar nada de verdadeiro aos outros.
Tanta vez vi o afeto verdadeiro se dissolver em mágoa, e a mágoa escorrer para dentro do espírito, sendo aceita e, assim, enegrecendo aquelas cores vivas de um outono que elas também um dia foram... Depois disso, não há mais uma mulher completa, mas sim uma versão distorcida da sua grande feminilidade, a simular uns sorrisos capazes de enganar os incautos, mas que nunca me conseguiram cativar. Em segredo, a se autossabotar e a lançar culpas com grande velocidade, cultuam seus corações rotos sem nada mais ter para oferecer. Fingem que podem amar enquanto lhes paira por cima o medo e o ego. Os fingidores são sempre figuras tristes.
A menina da Foz ainda não tem nenhum desses vícios: o sorriso é espontâneo, os gestos são simples e despretensiosos, e arrisco dizer que poderia se comprometer sem necessidade se sentisse que havia ali a naturalidade em ser e estar que ela aprecia e incorpora. Que os dias futuros conheçam sempre a virtude dela!
No entanto, para a realidade que importa, especular o que será é uma perda de tempo. Naquele momento em que nos ligamos, a rapariga da Foz e eu partilhamos a beleza e o significado profundo das coisas e seres do mundo.

sexta-feira, novembro 22, 2019

Afrika Korps


A reflexão de hoje pode parecer estranha às sensibilidades mais exaltadas (para ficarmos por esta qualificação simpática), já que se refere à força expedicionária alemã na campanha no Norte da África durante a 2ª Guerra Mundial.
Ideologias totalitárias à parte, revejo-me nos soldados que lá serviram bravamente e que, numa fase posterior da guerra, foram realocados para defender o Reich na fronteira com a Bélgica, na épica batalha de resistência que ficou conhecida como "Floresta Negra".
Vento, areia, calor… fome, disenteria e mais umas tantas misérias que só a infelicidade da guerra faz despoletar em simultâneo… tudo vencido para além das batalhas, num ambiente bastante distante daquela Alemanha romântica dos lagos secretos, das montanhas enevoadas e dos grandes rios a deslizar serenos.
Terminada a campanha, depois de vitórias gloriosas e demonstrações incontestáveis de bravura e serviço prestado honrosamente, numa fase posterior da guerra, ao invés de uma merecida baixa, esses soldados do Afrika Korps foram transferidos para o front europeu ocidental, para proteger a Alemanha do avanço dos aliados, sobretudo dos americanos, que haviam desembarcado na Normandia.
Ali sim houve provas de desespero e destemor, misturados e sem ser possível avaliá-los moralmente. Dia após dia, mês após mês, numa resistência ferrenha, cada metro de território era defendido com toda a gana daqueles soldados em vencer… e viver!
Neste carrossel de vitórias e derrotas, em que devemos manter a compostura sem perceber bem porquê, parece-me haver verdade na mentalidade do soldado alemão na floresta negra. Mesmo frente a um presente em tudo desfavorável, aquele soldado decidiu ser o que era, fazer o que lhe competia, e da melhor maneira que estivesse ao seu alcance. Não tinha escolha? Não é bem verdade: poderia sempre desertar. Aliás, não era difícil fazê-lo naquele momento: a Alemanha estava claramente a perder a guerra e os aliados prometiam acolhida favorável aos desertores alemães. De tudo em tudo, os que fizeram uma escolha consciente, firme na decisão em ser o que eram, sem subterfúgios, merecem toda a consideração.
Por vezes, (por muitas vezes), a vida é injusta. Ninguém se importa com os teus sonhos, ou com as tuas expectativas de futuro… isso não diz nada a ninguém… a não ser a quem te ame… mas mesmo a estes, é mais a preocupação contigo do que propriamente o luto pela tua perda. A justiça é um ideal e não uma condição natural. Daí que a não aceitação do injusto traga tanto sofrimento: achamos que as nossas ideias fazem o mundo, e não contrário.
Eu desci desse gira-gira de tolos já há algum tempo. Compreendo as limitações do mundo e estou em paz com elas. Não lhes faço guerra e menos ainda acho que há justificativa em qualquer tipo de revolução. Já não sou criança! Devemos é nos alinhar às condições naturais e viver pelas nossas virtudes, sem pretensões egoístas de colher a felicidade no exterior de nós mesmos.
Títulos, comendas, caviar… nada disso importa, old pal. Nos anos mais verdes, talvez ficasses impressionado com uma ou outra circunstância desse tipo. Querias ser o doutor, o presidente, o comendador… A tua mãe ficaria muito orgulhosa, de certeza, mas afinal, por detrás dos títulos, o que haveria? Tu saberias responder? Eu sei.
No frio da tua vigília, o que existe é o rifle na tua mão, a farda úmida e fria a te pesar no corpo, o sopro de ar espesso que te sai dos pulmões. Abre os olhos, vê a realidade. É no momento presente que realmente existes. As tuas glórias passadas te irão iludir a identidade e os medos de não as repetir no futuro te irão paralisar quanto ao que realmente deverias de fazer. Esquece o que foste, abdica de tentares controlar o que serás…  no presente é que está a tua redenção de sofrimento, de privação, de tanta vida que já desperdiçaste...
Mas como fazê-lo? Perguntar-me-ias… Not easy, old sport, mas nada te fará mais completo e realizado. Primeiro, um esclarecimento: certamente que és o resultado das tuas experiências e que temos sonhos projetados para o futuro que são belos e mesmo visam o bem dos outros… A questão não é fingir que o passado ou o futuro não importam, mas sim de subordina-los ao que realmente existe, que é o presente. É mesmo para inverter a pirâmide que tem a sua base no que foi e no que será e na ponta o presente, para que o a agora seja a base determinante e as suas perspetivas só interessem no que possam compor, apoiar ou fazer melhor o presente. Trata-se de reorganizar a compreensão do tempo em ti, assim deixares de ser um escravo das ambições e frustrações da mente.
Quando o inimigo interno se achegar a ti, o agora se vai materializar de forma inescusável. E então a força da tua luta veterana, talvez já distante do fulgor dos teus vinte anos… não interessa, desde que esteja convicta em quem verdadeiramente és, vai afinal se vingar das dúvidas e seus sequazes, deixando-lhes claro que para se imporem à tua grandeza, primeiro vão ter de passar por cima de ti, e que vai ser uma luta renhida.

sexta-feira, outubro 25, 2019

Encontra-me num sonho

 Maxfield Parrish (1870-1966) - Morning

Começo já com uma advertência, que é para poupar o seu tempo e depois não levar com críticas injustas: o que se segue é um lamento de um poema perdido. Caso não se interesse por poesia, ou o belo seja uma apreensão muito distante ou talvez até mesmo desnecessária para si, não há mal nenhum. Está um dia lindo e há muito que fazer na vida. Imagine que vive no norte da Europa e vá cuidar das coisas práticas.
Muito bem, ficamos nós, apenas.
Há uns tempos largos foi-me dedicado um poema muito singular. Um dos seus versos, que dava o tom daquela poesia tão bem conseguida, fazia um pedido que abria a imaginação a possibilidades imensas: "Encontra-me num sonho."
Todo o poema era sobre viver a ilusão. Repara, viver, e não propriamente divagar na ilusão. Não quero ser injusto e reproduzir erradamente a estrutura, que recordo como leve... desprendida de modelos, mas muito natural e doce... No entanto, posso dizer que afrontava um pouco a indecisão e o medo.
Sem deles fazer pouco, propriamente, ainda assim exigia que se mostrasse as cores verdadeiras. A vida o exige, não há tempo para esperar ou ver como vai calhar. Era um canto à liberdade e à coragem que me entrou pelo peito adentro como as setas que espetaram em São Sebastião. Mas a minha morte foi a de uma vida menor, sem encanto e sem virtude. Nasceu daqueles versos uma convicção nova no sentido dos sentimentos elevados, que efetivamente passavam a justificar tudo. Lá está, foi mesmo o caso de viver a ilusão.
A loucura, no entanto, não dominava em absoluto o poema. Como toda grande peça do género, era equilibrado, mas imparável na sua marcha em direção à ideia poética.
A próxima estrofe docemente recordava os afetos. Como as promessas das delícias do paraíso, havia ali "burburinhos de água clara" e "mil estrelas nos sorrisos que me davas", para honrar o "Na esperança de teus olhos". Estavam ali a voz baixa a meio da noite a confidenciar as inseguranças, mas sem medo nenhum, e uns olhares de admiração que brilhavam intensamente de um para o outro. Tudo estava ao alcance.
Por fim, uma reflexão a piscar o olho ao fatalismo. Sem dramas sentimentais inúteis, sacrificava de bom grado no altar excelso da verdade as pretensões de receber honras ou atingir estatutos: todo o ciclo da vida estava bem justificado pelo amor. Mas atenção, não qualquer amor. Um amor maior que tudo, que está à frente dos outros e mesmo por isso não está condicionado por nada: ele é. Assim a vida encontrava a morte com um sorriso... íamos afinal para as mãos de Deus, propriamente em união com o divino.
Veio-me num sonho (acredita se quiseres, leitor... já chegaste até aqui, portanto...). O verso a repetir-se, repetir-se, sempre como um mantra hindu que me induziu a um transe ainda agora a fazer-se sentir. 
Decidi ir à sua procura. Entretanto, essa fantástica composição de poesia, fotografia poética de um dos pontos mais bonitos da nossa vida, esfumaçou-se, por assim dizer, quando o provedor dos serviços de correio eletrónico resolveu que os arquivos antigos eram para apagar... "O senhor já não os acedia há mais de dez anos." 
E por que não havia copiado o bendito poema para o computador? Por que não o havia impresso, emoldurado, ou mesmo decorado? Ora, isso é fácil de responder... Mas não me demoro onde a imaginação pode fazer melhor trabalho que eu.

terça-feira, setembro 24, 2019

Uma mulher a sério




A sua beleza, minha mãe, é indizível.
De um amor feito de equilíbrio, pureza e inquebrantável coragem, meu irmão e eu viemos ao mundo a sorrir o seu sorriso de resignação e fé (no meu caso, quase que literalmente, já que tão bom era o seu ventre que tive de ser de lá retirado com um fórceps).
A beleza da mulher é algo incrivelmente complexo. Não a igualo à beleza geral das coisas ou à do homem. É especial, há nela algo de divino, de misterioso, de integração com o absoluto que lhe faz ter em si todo o cosmos celeste. E nessa concentração de valores estéticos, simbólicos e afetivos, o nosso coração é arrebatado a uma dedicação firme e valorosa: fazer felizes as lindas mulheres que nos adornam a vida. Nenhuma missão é mais importante ou vantajosa à nossa própria felicidade.
Ainda pequenino, minha mãezinha, ouvi pela sua voz e vi no seu sorriso toda a beleza do mundo. Desde esse momento até hoje, quanto tempo não passou para confirmar aquela impressão infantil!
Feito à sua aparência, não nasci, no entanto, com as suas inúmeras e admiráveis qualidades... aprendi pelo convívio a ter paciência, observei no dia-a-dia o valor da temperança, acalmei o meu coração, muitas vezes durante a vida, com o exemplo do seu amor brando e verdadeiro, sem rompantes de brutalidade nem palavras inúteis, mas resoluto nas suas convicções.
Sem exageros, sem sentimentalismos inúteis, sem nos privar de conhecer a realidade das coisas, logo cedo pudemos experimentar as consequências das nossas escolhas. A senhora nos educou com muita sabedoria, e deu-nos as armas para vencer verdadeiramente na luta da vida, sem escusas ou vitimizações.
A minha mãe deu-me a liberdade para que fosse eu mesmo e me desenvolvesse como quis, dentro dos valores da nossa casa (e ainda bem). Não tenho como pagar por isso. À custa de viver a verdade (e todos temos de pagar esse preço n'alguma altura da vida), muita ausência, distância e não saber foram-lhe impostos. Tanto mais pelo sofrimento (melhor seria penitência, de certa forma, pois foi e é feito de convicções certas), muito se eleva o seu exemplo de mãe que fez pelo amor, e não propriamente pelo próprio conforto sentimental.
Do nosso convívio mais recente, minha mãe, que tão boas surpresas tive! Já adulto e formado nas artes do viver, tive o gosto de ver a sua dedicação séria e seu profissionalismo. A sua diligente atenção e firme supervisão dos assuntos colocados à sua responsabilidade. No novo convívio, novamente tive o bálsamo do seu afeto, nos cuidados no dia-a-dia, na forma amável de abordar os assuntos fáceis e difíceis, das suas sugestões que revelavam preocupações nunca diretamente admitidas.
Em família, a sua postura é a incorporação dos sentimentos delicados e da sua serena resignação na fé. Equilibrando as graças e as misérias, lá temos ido atrás do seu exemplo... Por vezes com o sorriso da Fernandinha, outras vezes com o da Dona Nina. Minha mãe, de todas as dificuldades dramáticas da vida, saiba que o seu esforço é mais uma vez liderança certa: conduz bem o processo, com dignidade e fidalguia, e depois nos deixa de herança o dever de honrá-lo no futuro, com sinceridade e verdade, o melhor que pudermos.
Deus do céu ama muito esta sua filhinha linda, e lhe reserva muitas graças e momentos de felicidade. Oxalá possa ser eu o autor mediato de algumas dessas alegrias! Muito as merece, minha mãe, por toda a beleza que a senhora é e oferece a nós que partilhamos o privilégio de estar à sua beira.
Neste dia glorioso dos seus anos, recebe o meu amor e a minha lealdade, a minha gratidão e sentidas lágrimas de orgulho. Que Deus lhe dê muita saúde, paz e muitos anos felizes de vida.

domingo, agosto 25, 2019

Aloquete ou cadeado

 

Parte fundamental da vida é fazer o corpo estar na sua melhor condição... acredito que corpo e mente são uma unidade inseparável... não existe nada dessa bobagem de vida intelectual, ou vida de aparências sem abstrações. Existe vida. Física e intelectual são suas expressões, ou momentos de uma única realidade. Tudo isso para dizer que gosto muito de treinar!
Ora bem, há uns tempos reiniciei as visitas ao ginásio e tem sido fantástico. Para além de uma infraestrutura em tudo adequada (desde a secção para exercício cardiovascular, as máquinas para musculação e a secção de pesos livres), conta ainda com um grande balneário, com cacifos para as nossas coisas, além de piscina interior, jacuzzi, banho turco e sauna. Não que me tenha feito esquecer completamente meu antigo ginásio (não exageremos), mas digamos que estou bem ali para já.
Nesta rotina de ir para lá, vestir o fato de treino, treinar, regressar para pôr o fato de banho, depois finalmente voltar e vestir-se novamente para partir, um pequeno instrumento é fundamental: o aloquete do cacifo.
Pois é, é assim que chamam ao cadeado as gentes cá do norte! Descobri-o quando o meu aloquete velhinho deixou de me obedecer... sim, foi mesmo isso. Com três carreiras de combinação e alguns anos de uso, o pequenino cansou-se de abrir e fechar... resolveu trancar lá dentro as minhas coisas quando voltei do treino.
Cansado, suado e desiludido com o minha sessão de jacuzzi a ser injustificadamente adiada, pensei: vou partir isso. Pois, mas o aloquete era valente, não se deixava ir com qualquer abanão. Pronto, vamos ver se há suporte técnico. Lá fui eu à receção ver se arranjava quem me arrombasse o cacifo. O senhor António, a trabalhar na casa há 14 anos (desde quando abriu, disse-me ele), é que foi tratar do assunto. Trouxe lá de dentro um alicate de meio metro de comprimento e num golpe maneiro, rompeu com aquilo. "Cá está o seu cacifo." Fantástico. Lá fui eu seguir com a rotina!
Depois enquanto tomava o banho, fiquei a fazer o luto do aloquete. Quantas vezes não houve cadeados a meio das coisas! Malditos aloquetes, a meterem-se no meio do caminho... mas por outro lado, santos aloquetes, que me salvaram de muito sarilho escusado, fechando o caminho a especuladores.
É um bocado como a pergunta que a poesia lança ao poeta quando ele quer desprender o poema do limbo: "Trouxeste a chave", ou no caso do finado aloquete: "Sabes a combinação?".
Quando era miúdo, um dia na catequese colocaram a questão do "coração fechado", e o símbolo era mesmo uma porta fechada a cadeado. Não sei bem porquê (se calhar porque todos os outros miúdos diziam que sim), disse que não havia ali nada aberto. Pronto, a catequista encontrou o mote para o sermão de abrir o coração a Jesus...
Mas não basta discursos para abrir o coração. Isso é muito pouco. O que é determinante é que ele se reconheça no que está lá fora. Há quem saiba a combinação ou tenha a  chave, e o aloquete deixa de ser teimoso, não é preciso chamar o Sr. António com o alicate de meio metro...
De toda forma, vou comprar um aloquete novo, com quatro carreiras de combinação, e praticamente impossível de abrir por formas sorrateiras.

quinta-feira, junho 13, 2019

Mein Schatz

  
Árvore do amor - Festa de Nosso Senhor de Matosinhos


No sábado passado tomei parte, pela primeira vez e em companhia do amigo Luís, da Festa de Nosso Senhor de Matosinhos: uma "festa da terra", embora Matosinhos seja bastante grande e esteja inserida na área do grande Porto.
Para quem é cá do Norte, não há muita novidade... a festa é tradicional e vem gente de muito longe para comer as farturas, levar os miúdos ao parque de diversões ou mesmo para comer uma sandes de leitão ou umas sardinhas assadas. Celebrada no calor de Junho, sente-se a alegria no ar.
Começamos mesmo com uma sandes de leitão assado acompanhado de um tinto maduro... e depois uns churros com recheio de oreo.
O Luís já sentia falta da nicotina e fomos dar uma volta para que ele fumasse o cigarro dele e a gente apreciasse a festa.
A subir da parte dos restaurantes, encontramos um rio de gente a sair da igreja do Bom Jesus de Matosinhos - uma linda obra do Barroco.
Fomos passeando para esse lado, curiosos. Afinal, tanta gente a sair da igreja... será o fim de uma homilia? Logo descobrimos: era uma bênção às crianças, marcada para o meio da tarde. Portanto, lá se fizeram presentes famílias inteiras. Miúdos a gritar, bebés com fome... irmãos mais velhos a fazer asneiras e pais desalinhados tentando manter a patota em ordem.
Em meio a tanta algazarra (o Luís já queria ir-se embora), surpreendi-me com um pensamento: que bonito esforço faz essa gente! Gente que deu gente ao mundo, com grande sacrifício pessoal... e com gosto.
Depois vieram-me imediatamente à lembrança conversas com amigos que já foram pais. Ao vê-los cansados, acabados, quebrados... sempre brincava a perguntar se valia a pena. A resposta foi sempre a mesma: obviamente, o amor paga tudo.
Como no cumprimento de uma profecia, surgiu logo a seguir no nosso caminho uma imagem peculiar: uma árvore com o tronco envolvido em croché branco e nos seus ramos e galhos foram colocados grandes corações vermelhos. Não poderia chamar-lhe de outra forma, que não "árvore do amor".
Acho que cada um daqueles corações poderiam muito bem representar alguém que amamos na vida, alguém por quem nos sacrificamos de bom grado... por amá-lo. Depois aquele fruto feito de dar ficava ali pendendo, não só para ser dado, mas também para ser colhido, porque o amor exige dois gestos: tem de ser oferecido e aceito.
Por muito caminho que se faça para longe da árvore do amor, esses frutos estarão ao nosso alcance. Basta um telefonema, e a voz de quem se ama faz saltar no peito o coração vivo. Basta um sorriso leve, um olhar de ternura, uma palavra de afeto... e a árvore produz um fruto novo.
E este fruto faz-se notar... faz uma figura tão bonita... inspira quem está por perto, dá esperança, afeto e repõe a nossa humanidade.
Foi então que dei por mim na festa do Senhor de Matosinhos influenciado pelo efeito contagioso do amor. Mas cuidado! Há que ver nas árvores que estão por aí, e que de repente encontramos, se dão frutos ou se nem sombra oferecem! E se for este o caso... a vida faz-se num deserto.
Para evitar esses percalços, o melhor é cuidar dessas árvores... se assim fizer, ninguém que gosta de si há de passar fome!