domingo, julho 12, 2020

A igualdade é um falso deus

Foto de Frederico Henriques

A primeira vez que assisti a uma corrida portuguesa fiquei muito impressionado: o rigoroso protocolo de atos de enfrentamento dos touros bravos, carregados de fortes emoções, contrasta com uma combinação muito exigente de perícia e coragem. Mas talvez a impressão mais forte foi a de ver que aquilo não era um espetáculo dedicado à violência, como uma visão estereotipada muitas vezes quer fazer passar, mas uma homenagem à verdade da vida, uma ilustração da dura realidade que nos afronta e que com a correta disposição de caráter, podemos vencer.
A corrida de touros à portuguesa está organizada por fases, cada qual com o seu simbolismo e significado, com diferentes graus de profundidade (o que por si só é notável: absolutamente nada nas corridas remete à banalidade). 
Tudo começa com as cortesias: cavaleiros, forcados e outros intervenientes entram na arena e cumprimentam o público e dele recebem os louvores. Esse desejo de boa sorte logo à partida não é vão: a seguir tem início um espetáculo de grandes riscos e brutalidade.
As corridas iniciam-se propriamente com as lides a cavalo. Cada cavaleiro lida com um touro e tem um determinado tempo para cravar uma certa quantidade de farpas no dorso do animal. Há diferentes técnicas de abordagem, mas de qualquer forma, o cavaleiro deve avançar contra o touro a segurar a farpa com uma das mãos e, ao posicionar-se, espetá-la no tempo e no sítio certos. 
É preciso reunir aqui uma grande habilidade, não só no domínio do cavalo e na coordenação dos próprios movimentos, mas também na leitura da disposição do touro, percebendo de que modo irá atacar e com que tipo de marcha. 
Também merece uma palavra o cavalo utilizado nas lides: trata-se do belo Puro-sangue Lusitano, um magnífico corcel de temperamento dócil e voluntarioso, desenvolvido desde antigas raças ibéricas e mouras. O cavalo é treinado desde os 3 anos de idade para as corridas de touros, sendo-lhe exigido um consistente comportamento físico e psicológico.
A corrida portuguesa terminava com a morte do animal na arena, um bocado como na corrida espanhola, em que a lide é a pé. Em 1836, entretanto, a rainha Dona Maria II proibiu esse desfecho e foi então preciso criar uma nova forma de encerrar as corridas em que se mantivesse o mesmo significado: o domínio do homem sobre o animal. 
A solução foi convocar um grupo de guardas que protegia o camarote real nas praças de touros para ir fazer as pegas: os "Moços de Forcado". Pessoalmente, tenho as pegas como a parte mais emocionante das corridas. É caso para dizer que a mudança foi para bem em todos os sentidos: também a mim parece-me excessivo abater o touro na arena; por outro lado, a pega é carregada de emoção e significado, engrandecendo os forcados e o touro, uns e outro, de bravura inquebrantável.
A pega tem lugar após a lide a cavalo, intermediada pelo peão de brega, um interveniente que usa um capote de cores fortes para posicionar o touro de modo a que os forcados tenham espaço para o pegar. 
Entram então na arena um grupo de oito forcados que ficam perfilados em fila indiana, sendo o primeiro deles o chamado "forcado da cara": é este homem que vai agarrar o touro à unha. Com as mãos à cintura, coluna reta, barrete à cabeça, o forcado da cara bate o pé direito à frente com passos curtos, pouco a pouco diminuindo a distância inicial, de cerca de 20 metros, e convoca o animal a avançar com um grito firme: "toiro!" Dentro do meu coração, esse repto traduz-se sempre por "destino!", e obviamente, ver uma pega para mim é algo sempre único e especial, como é cada momento de bravura na vida em que ousamos convocar o destino.
Avança então o touro, cheio de farpas no dorso, já cansado, coberto de sangue e suor, mas pleno de vontade de luta. A acertar a cara do touro e abraçar-lhe o pescoço, o forcado da cara leva com um impacto brutal, a que os demais forcados atrás de si tentam amenizar, fazendo de linha de contenção daquela carga de meia tonelada de músculo. Eventualmente, o grupo todo começa a formar um movimento circular, movidos pelo ciclone poderoso do touro no seu interior, e um dos forcados, o rabejador, agarra na cauda do animal para conter o movimento e fazê-lo parar. Uma vez dominado o touro, encerra-se  pega. A emoção foi contida por uma determinação capaz de domá-la.
Por fim, retiram-se os forcados, e entram os pastores com outras rezes que, junto do touro, voltam todas para os estábulos. É lá dentro, depois de tudo consumado, que o touro é abatido, com tributo à toda a dignidade que é sua.
Eu consigo compreender os meus amigos que torcem o nariz às corridas de touros: o sofrimento do animal, ou mesmo os riscos à vida e à saúde dos cavaleiros, forcados e demais elementos não lhes parece razoável. Mas evitar ver a dor não a faz deixar de existir, ao contrário, deixa-nos desprotegidos para lhe enfrentar corretamente.
Os adeptos não vão às praças de touros para ver a dor dos animais, nem aos cavaleiros causaria prazer ver um touro preso a ser espetado covardemente por umas farpas até morrer. Tudo nas corridas evoca o risco e a coragem e é por isso que elas são a ilustração de uma forma muito digna de se viver a vida.
Surgidas no Portugal profundo, ligadas eminentemente à vida no campo e às pessoas que dele sempre retiraram o seu sustento, as corridas recriam as dificuldades próprias de quem é dono do próprio destino e está exposto a triunfar ou perecer pela própria atitude. A dureza dessas condições exigem resposta de pessoas de caráter firme, responsáveis por si mesmas, que façam frente às condições rudes que a natureza por tantas vezes lhes lança, e procuram reafirmar-se com dignidade, forçando o destino à sua vontade.
A vida desses homens livres, senhores de si mesmos, é a dinâmica da hierarquia das formas que a própria natureza impõe. A nós, compete-nos nela encontrar uma inserção harmoniosa e racional. A natureza não estabelece qualquer igualdade entre os seres, a sua lei é a da dominação. Forçar uma igualdade que não existe significa introduzir distopias disfarçadas de utopias: umas e outras produto de pensamentos imaginários, descolados da realidade de si mesmos e do mundo. 
O dom da razão impõe-nos a responsabilidade de temperar a lei da dominação da natureza com a ética, prevalecendo a ética divina, a fé em Deus e na vida eterna. A dominação do homem, portanto, serve à sua auto-preservação, assim como se dá entre outras formas na natureza, e não propriamente como exercício de um totalitarismo egóico. 
Forçar a igualdade é o mais malicioso e injusto esquema de desigualdade que pode haver porque retira a iniciativa e o mérito, impondo uma moralidade relativa e, portanto, falsa. Justamente por isso, há infinitamente mais crueldade nestes comportamentos, tão bem ocultados nas bandeiras do vitimismo ideológico, que na dignidade da luta dos touros na arena. Aqui, temos a natureza a desafiar o homem, a fustigar-lhe com a sua força incansável a lhe lançar o desafio contra a própria vida. Ali, a negação das próprias capacidades naturais e a renúncia da liberdade: terríveis sacrifícios depositados no altar de um falso deus.
Para prevalecermos contra as adversidades, devemos nos apoiar primeiro em nossas capacidades: a inteligência, a perícia, a coragem; juntá-las com as de outros para vencer pela união de esforços, fazer frente ao que parece impossível e arriscar porque sabemos que fugir ou submeter-se é negar a nós mesmos. Temos de encarar o touro, ou o destino.
A corrida de touros à portuguesa, na sua mais alta instância, é uma homenagem à liberdade, ao que há em nós de mais sublime, mais humano e divino: o impulso de vencer as dificuldades da vida por nós mesmos.

sexta-feira, julho 03, 2020

Pecar contra o Espírito Santo


Era um fim de tarde em que já revoavam os passarinhos muito sensibilizados com aquelas cores mágicas. Eu também estava muito contente naquela hora, pois havia terminado a formação do catecismo e poderia finalmente passar pela casa da minha avó e gamar uns doces.
Na ternura dos meus nove anos, a palavra de Deus rivalizava no meu pensamento com o futebol e os álbuns de cromos: a bondade era para mim uma decorrência do amor que sentia, e não propriamente doutrina. 
Obviamente que conseguia ver a relação de uma coisa com a outra, mas nunca seria capaz de apreciar a verdade do fabuloso edifício ético que se me apresentava. Há lições que custam muito a aprender.
Portanto, apressado e distraído, imerso naquela doçura em antecipação, ia atravessando o jardim da Casa das Irmãs quando ouvi um sibilar discreto.
Naquele lindo, fresco e bem cuidado jardim, cheio de camélias e rosas, guardando ao fundo um pomar sempre cobiçado pelos meninos, havia um segredo.
Aproximei-me do sítio de onde parecia vir o ruído: era um banco de pedra antigo, colocado junto a um dos canteiros próximo à saída. Muito delicadamente, fui me abaixando até que vi, enrolada em si mesma e muito bonita, uma cobra de cores vibrantes: vermelha, preta e branca.
Encontrou o meu olhar muito atenta, sem reagir com nenhum movimento que não o da língua de ponta partida, sempre a sibilar para tentar perceber quem ali estava. As escamas brilhavam mesmo à pouca luz, e eu sabia, tanto pelo formato da cabeça, quanto pela coloração viva, que provavelmente as suas presas guardavam o fel da morte.
Fiquei um bocado atordoado porque nunca antes tinha visto uma cobra, e a visita à casa da minha avó começou logo pautada por esse acontecimento. Uma das minhas tias, ainda hoje muito ligada à Igreja, ao ouvir a minha história, perguntou: "Então, mas o que vocês deram hoje no catecismo?". Eu de início não tinha percebido a ligação entre a fantástica história do encontro com a cobra e o tema do catecismo, mas respondi com todo o cuidado: "Hoje aprendi sobre a graça do Espírito Santo!". A minha tia olhou para a minha avó, e as duas ensaiaram um sorriso, o que me deixou ainda mais encabulado. Disseram que a cobra era uma manifestação desse meu encontro com a verdade da presença de Deus através do Espírito Santo, o que a minha mente de criança colocou na caixinha dos contos de fada para tapear os miúdos... Um juiz inepto não pode nunca dar sentenças justas!
Ao cabo de longos anos de reflexão sobre diversas situações da vida que evocam a divina presença, o sibilar e o olhar vivo da cobra regressaram muitas vezes ao meu pensamento, sobretudo porque me pareceram um alerta que, mesmo mal compreendido na altura, eu sempre respeitei por senti-lo como justo desde fontes extra-doutrinárias: jamais pecar contra o Espírito Santo.
O evangelho de São Mateus diz que todos os pecados podem ser perdoados, mas quem peca contra o Espírito Santo não terá perdão "nem neste século, nem no futuro" (Mateus 12:31,32). Qual a razão de uma pena tão severa?
Quando Judas se enforca na figueira, fá-lo porque considera que Deus não seria capaz de perdoá-lo, mas foi justamente o seu gesto final o mais grave pecado que poderia ter cometido. Extinguiu em si a vida que é a presença de Deus: com o coração rijo e cheio de orgulho, o ato simplesmente exteriorizou a convicção de que o Espírito Santo não tinha lugar nele.
O Espírito Santo, o Senhor que dá a vida, é o convite vivo de Deus para que assumamos uma conduta de encontro com Ele. É a convocação a uma vida fundada no amor, na caridade e no perdão, não só aos outros, mas sobretudo, e em primeiro lugar, a nós mesmos. É a presença pulsante da verdade que nos sorri através de alguém que amamos, ou no sibilar de uma cobra no jardim.
Pecar contra o Espírito Santo é negar a presença de Deus, é defender que a sua intervenção não existe, é acreditar que outras coisas ocupam o lugar que é do Pai Celestial. É um pecado insidioso porque há muitas formas subtis de cometê-lo, embora o peso da sua gravidade em nada se atenue.
Um pouco ao estilo de São Tomás de Aquino, sempre consegui conciliar essa visão teológica cristã com a filosofia clássica. Para Aristóteles, os bens estão divididos por categorias de importância, sendo mais cimeiros os que se reconduzem ao nosso bem maior: a prática da virtude para se alcançar a excelência, sendo o conhecimento divino a mais sublime das excelências. Por sua vez, o conhecimento divino é a fiel inserção na ordem do Ser, é compreendermo-nos como parte integrante de um todo vivo e pulsante e que interage connosco: o raio de sol não poderia nunca ser uma parte separada do sol. Para isso, é preciso persistência em conhecer a si mesmo e à ordem do Ser, e afinal alcançar o que a filosofia perene de Huxley chamou de "conhecimento unitivo".
O convite do Espírito Santo é o convite da vida, o chamamento para se viver o que importa e não ter medo ou receio de deixar para trás o que não importa. O que Deus quer de nós é que aceitemos com coragem a presença do Espírito Santo, que não o neguemos, encondendo-nos por detrás de convenções, obrigações ou promessas falsas. Não agir quando é preciso, quando sabemos que a vida pede de nós esse passo, também é uma forma de se negar a verdade da presença de Deus, também é, de certa forma, escolher a morte.
É certo que Deus ouve as nossas orações, mas elas devem se converter em ações de reconhecimento da Sua divina presença ao reforçar em nós essa convicção, de outro modo, são apenas fórmulas vazias, apenas uma outra forma de blasfémia. O sibilar e olhar da cobra no jardim da Casa das Irmãs alertaram-me para essa verdade, embora só hoje a tenha compreendido.

domingo, junho 21, 2020

Curso breve de patinagem sobre rodas


Quando criança, tive uns patins muito engraçados. Eram verdes e se amarravam por cima das sapatilhas. Ao contrário dos patins de rodas em linha que agora são mais comuns de se ver, tinham cada um quatro rodas, em pares perto da ponta e no calcanhar. O travão ficava mesmo na ponta, mas ao que me lembro, era usado mais para as arrancadas.
Nas longas tardes de verão no grande terraço da casa da minha avó, ficava a deslizar de um lado para o outro, ensaiando manobras e aprendendo sobre física cinemática à custa de umas quantas quedas e esfoladelas.
Recordo agora como a brincadeira com os patins então não era uma unanimidade entre os meus primos: muitos nunca nem sequer queriam calçar os patins para experimentar. Achavam que iriam cair e se magoar, não valeria a pena... Mas eu percebi que os patins, embora guardem um certo risco, não são instrumento para magoar: com cuidado e propósito, eram um maravilhoso brinquedo.
Muito tempo se passou desde aquela experiência infantil! Fui me entretendo com outros riscos, muito mais aborrecidos, diga-se de passagem, até que num passeio pela Foz na companhia do Luís aquela memória regressou. 
Junto ao mar, reparei no largo e bem equipado passeio, liso e perfeito para a patinagem, e que inclusive servia naquela hora a alguns patinadores, entusiasmados com o cheiro de verão que já se sentia. Disse ao meu amigo: "vou comprar uns patins". O Luís, no entanto, não se mostrou muito convencido da sensatez da ideia: "vais morrer." Bem, tudo é possível, mas havia muitas mais-valias a considerar com aquela empresa, e comecei a ponderá-la com atenção.
Passados uns dias, fomos mais o Rafael tomar café com um amigo do Luís que havia sido um patinador de competição na adolescência. A feliz coincidência serviu para consolidar a opinião de que seria uma boa atividade de lazer voltar aos patins.
Depois de uma pequena pesquisa sobre modelos de equipamento e técnicas de patinagem, lá comprei os meus novos patins. Tendo-os estreado no terraço de casa, claro, sem muita graciosidade no deslizar... ali consegui recordar os elementos básicos da arte.
Sem pressa, à espera de um fim-de-semana de calor, fui fazendo mais alguns treinos no terraço até que se apresentou um sábado em condições: e foi mesmo ontem! Sim, amigo leitor, fui à Foz patinar... ao longo da Avenida do Brasil, junto ao mar.
Diferentemente da experiência no terraço, ali tinha imensos espectadores que, embora não estivessem ali para me ver, iriam certamente achar alguma graça na minha falta de perícia! Atravessei a avenida com coragem, obviamente com passos curtos e ainda com pouca confiança, mas cheguei ao outro lado. 
Era então o momento colocar em prática as técnicas elementares da patinagem sobre rodas: flexionar os joelhos para baixar o centro de gravidade e abrir passadas de 45.º, curtinhas de início, para ganhar embalo. Para travar, um sutil movimento de curva com os dois patins, e para parar (e ficar parado), ter os patins em T. 
É imensamente prazeroso explorar as capacidades do nosso corpo! E a patinagem dá oportunidade a grandes aprendizagens. É fantástico ter a consciência imediata da distribuição do peso entre as patinagens e de como o pé de apoio atua fundamentalmente no equilíbrio.
A atividade demanda toda a nossa concentração, de modo que qualquer instante em que o pensamento é capturado pela beleza e pelo encanto, tem-se uma queda, naturalmente. 
Aprendi-o na prática! Por duas vezes em que me distraí nos meus pensamentos, os patins ficaram com as rodas para o ar! Numa das vezes, um homem que andava logo atrás teve de se desviar, e perguntou-me se estava bem. Não foi nada de mais, caí sentado nas duas vezes! Logo a seguir, já estava de novo a fazer o percurso, que penso ter sido de algo como 6 ou 7 quilómetros, entre ida e volta.
Houve momentos de alegria, como quando senti o vento vindo do mar, o cheiro a maresia, e o calor do sol mesmo no fim do dia, e todos os tons de dourados a colorir o mundo...; e também momentos de apreensão, como quando tive de travar a fazer uma curva, pois os declives fazem ganhar alguma velocidade e não me apetecia despenhar-me lá para a praia! E houve momentos de desconforto e superação, como quando caí e me levantei para prosseguir.
A vida exige coragem, deve ser vivida agora. Andar de patins não é só "andar de patins". É dizer "sim" ao que nos é significativo, ao que nos faz inteiros, ao que nos traz alegria e contentamento. 
Nem toda a gente anda de patins, e muitos olham os patinadores a passar e secretamente guardam a inveja de também poder deslizar por aí com toda aquela graça e liberdade. 
Tudo o que é preciso é conhecer-se e ser fiel a si mesmo. Uns tombos de patins não são nada se comparados com a mágoa de se ter dito que não à vida.

terça-feira, junho 16, 2020

A paixão da carne




(...)
Ah, que eu já sentisse
Os êxtases máximos
Da carne nos rasgos
Da paixão espúria!
Ah, que eu já bradasse
Nas horas de exalta-
Ção os mais lancinantes
Gritos de loucura!
Ah, que eu já queimasse
Da febre mais quente
Que jamais queimasse
A humana criatura!
Mas nunca como antes
Nunca! nunca! nunca!
Nem paixão tão alta
Nem febre tão pura.

A paixão da carne, in: Antologia Poética, Vinicius de Moraes


Com quatorze anos de idade chegou-me as mãos a edição original de Para Viver Um Grande Amor, de Vinicius de Moraes. Não poderia jamais imaginar que através daquele livro de páginas amareladas toda a minha vida seria marcada por um ideal tão intenso, tão puro, tão humano, que é o de amar incondicionalmente. Eu rapidamente me apercebi que essa era a regra de ouro do poeta, pela qual ele viveu e morreu, e essa foi a razão determinante de termos ficado "amigos".
No fim do livro há uma crónica muito tocante, chamada Pedro, meu filho. Vinicius ali faz algumas reflexões sobre "a terrível herança" que deixara ao Pedro - "a insensatez de um coração constantemente apaixonado."
Há uma outra passagem particularmente profunda, embora naquele tempo eu não tenha podido apreciá-la na sua inteireza. Agora, no entanto, sinto-a de forma muito marcada: "(...) eu, muitas noites, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua."
Alguns anos depois daquela leitura quase trivial da crónica, fui encontrar um poema de Vinicius que fazia referência ao mesmo episódio: A paixão da carne.
Ali apercebi-me melhor da dilacerante dor que sentira pela aflição com a doença do Pedrinho... como sofrera de forma impotente frente a dor de quem amava... como ambicionou para si a dor da "humana criatura"...
Hoje sinto tão claramente o que sentiu o pobre poeta... como a doença corta da vida a corrente essencial que nos liga aos sorrisos, aos abraços, aos afagos... como faz miseravelmente sofrer quem amamos e nos reduz à nossa natural insignificância, a contemplar pela madrugada em claro o sentido do sofrimento no convite sagrado de Deus para o vivermos dignamente.
Por ser tão intenso esse sofrimento apaixonado, fico a pensar se a paixão é apenas mais uma forma de adoração do ego. Nessa profunda paixão, nada mais haveria que uma grande forma de auto-satisfação de um falso ser, apoiado em outra pessoa. E como numa espécie de demência, as formas tomam o lugar das essências.
E assim a dor replica-se: a dor física, torna-se dor da alma... a paixão arde e aquece, queimando por dentro toda a sensatez, para recuperar a ideia de Vinicius, deixa a vida sem grande sentido real para além de uma obsessão.
O amor doce, sereno e verdadeiro, não é o da "paixão da carne"... ele quer acolher e se deixar sentir, passo a passo, ao longo do grande caminho... a doença não o pode deter, nem a tristeza, nem a distância. Ele alimenta-se da verdade e cresce na perseverança de estar sempre presente, como a grande dádiva da vida.

quarta-feira, maio 20, 2020

O trespasse da barbearia "O Carlos"



Para a minha grande tristeza, vi hoje o anúncio do trespasse da barbearia "O Carlos". É mais uma vítima desta maldita pandemia que a todos assola. Extinguiu-se a última barbearia tradicional da alta e com ela aquela alegria de sair de lá mais bonito, por dentro e por fora. 
Ainda lá está, com todo o recheio, a cadeira, os móveis, o lavatório nos fundos, os quadros de sítios emblemáticos de Coimbra... mas não se vai trespassar a alma daquele lugar. É só um corpo vazio agora, mas em tempos, foi um nobre baluarte do espírito académico coimbrão.
Entrei na barbearia "O Carlos" pela primeira vez há mais de dez anos, pela mão de um amigo, também ele apreciador das coisas da Alta de Coimbra e de suas tradições.
No seu interior, um senhor de alguma idade, de falas comedidas, mas riso fácil: o senhor Carlos. Com a cabeça calva, o cabelo (que tinha) penteado para trás, um rico bigode e uma barriga discreta, a sua figura era o arquétipo do barbeiro tradicional português. 
Recebeu-me com afeto, como recebia a todos os estudantes atrapalhados que precisam de adotar um barbeiro em Coimbra e vão parar às suas mãos porque tinha o estabelecimento mesmo ao pé da Sé Velha, e portanto, muito próximo à universidade: entre uma aula e outra, ou antes de um convívio, era fácil lá ir para "deixar de ser cigano", como ele dizia.
Tive um tio e primos barbeiros em Juiz de Fora, e portanto, sempre olhei para essa profissão com uma admiração viva, já que ela naturalmente aproxima os homens. Essas criaturas que tão dificilmente se deixam prender por afetos, às mãos do seu barbeiro têm a língua mais solta e vão dizendo o que pensam e sentem. 
Um barbeiro, por excelência, é alguém que sabe e gosta de ouvir. E se é verdade que se afeminam por profissão, como dizia Vinicius, talvez isso seja uma vantagem. Como o feminino é naturalmente mais participativo nos mistérios dos sentimentos e dos significados, e assim vive uma vida mais bela e completa, então é possível que o senhor Carlos efetivamente tenha beneficiado desse efeito colateral do seu ofício. 
Logo nas primeiras vezes que lá fui, criei por ele uma grande estima. Contava-lhe dos meus estudos, trabalhos e até das viagens que vinha fazendo, e havia mesmo espaço para anedotas de barbeiros! Acho que ele gostaria de saber que fui a Roma celebrar a conclusão do doutoramento, pois fui eu o primeiro a lhe contar a anedota do barbeiro e da viagem a Roma. Peço-vos licença para reproduzir aqui a anedota: um cliente conta ao barbeiro que vai a Roma. Mas o barbeiro, contrariando a postura que sempre admirei no senhor Carlos, começa a protestar: "Roma, que cidade suja! Por que vai a Roma? Não faça isso! É muito cheia e há aproveitadores por todos os lados!" Responde o cliente: "Bem, talvez eu me surpreenda positivamente, vamos ver. Consegui um ótimo vôo". Retruca o barbeiro: "Então vai viajar por qual companhia aérea?" O cliente: "Vou pela TAP! Consegui um preço promocional e os horários são excelentes". Mas o barbeiro não desiste: "Pois, mas sabe que os aeroportos ficam muito longe de Roma! Irá amargar horas até lá chegar, se é que vai conseguir levantar as malas - aquilo são só ladrões!" "Bem, vamos ver quanto a isso. Também já tenho o hotel marcado, estou muito contente com a localização: fica próximo ao Vaticano". Continua o nosso pessimista: "Ui, mas sabe que por aqueles lados não há metro! Vai levar para aí uma hora para ir à Piazza Veneza... depois se quiser voltar tarde para casa pode haver situações chatas por ali...". "Bem, o que interessa é que consiga ver o Papa. De tudo que acontecer, vou ficar contente se conseguir uma audiência". "Ver o Papa? Quem o senhor acha que vai ter uma audiência com o Papa? Isso não funciona assim! Tenho pena de lhe dizer, mas vai para Roma, não para o mundo das ilusões!". "Talvez não seja assim tão difícil. Para já, vamos ao corte de cabelo." "Como queira, vou então lhe fazer um serviço especial, já que irá ter com Sua Santidade, o Papa!". Passa o tempo, o cliente vai a Roma e, por necessidade da natureza capilar, volta à barbearia: "Olá Sr. Barbeiro! Já regressei de Roma!" "Ora, muito bem, então deve ter visto que não era nada daquilo que pensava, não é?" "Antes pelo contrário! A viagem correu lindamente, a localização foi perfeita, a cidade é belíssima e muito agradável, e ainda consegui ter uma audiência com Papa!" "Não acredito! Teve a bênção do Papa?" "Sim! Eu me ajoelhei e ele pôs a mão sobre a minha cabeça e me abençoou dizendo umas palavras muito certas!" Aí sim! Diga-me então o que lhe disse o Santo Padre?" E conclui satisfeito o cliente: "O Papa tocou-me a cabeça com muita compaixão e disse: 'Deus te abençoe meu filho! Pois o seu barbeiro, seguramente vai para o inferno!"
Ainda me lembro da risada do senhor Carlos, a fechar os olhos a rir e a curvar-se um pouco para trás! Foi um de muitos momentos felizes e bonitos ali na barbearia "O Carlos", no n.º 124 da mítica rua Joaquim António de Aguiar: conversas sobre o Sporting, sobre os políticos, as tradições, sobre a nossa Coimbra, sobre o que era ser português e o Portugal que ele queria deixar para os netos... Testemunhos de um homem vivido, que esteve emigrado em França muitos anos, que sempre se dedicou aos seus e nunca se queixou da vida humilde que era a sua. Viveu e serviu aos outros sempre com muita felicidade.
Um episódio marcante do nosso convívio aconteceu em 2015, quando o senhor Carlos sofreu um aneurisma cerebral. Esteve a barbearia fechada muitos meses e tive de improvisar uns cortes. Lá para o fim daquele ano, reabriu. Toda a clientela estava com um pouco de receio, afinal, tinham-lhe aberto a cabeça. Mas eu confiava na sua prudência e na sua responsabilidade. Dei-lhe o pescoço e as orelhas às lâminas, e ele não me tirou nenhum pedaço. Naquele dia do regresso aos cortes, selou-se uma amizade, deu-se uma prova de estima. Ficamos amigos: ele contente de lhe ser novamente confiado o corte, mesmo que com a mão um bocadinho trémula; eu com um bocadinho de medo, mas certo de que aquilo também lhe faria bem.
Depois de ir para o Porto já não consegui manter os cortes com ele, e tudo conversado, tinha de dar a minha vez aos novos estudantes, que o senhor Carlos continuava a receber ano a ano. Agora, não mais.
Chorei umas lágrimas que não sabia que tinha. Rezei por ele, para que estivesse bem, e senti uma imensa gratidão.

quarta-feira, abril 29, 2020

Perdoas-me? Então, como?


Ela ligou-me às 23hs daquele fatídico dia. Com os músculos do braço cheios de ácido lático, do esforço repetido no ginásio, mais a cabeça trespassada pelas coisas do dia, cheguei a sua voz ao ouvido, que entrou desde as insuportáveis ondas eletromagnéticas do telefone: "Não devias deixar as coisas se arrastarem", disse para introduzir o seu discurso.
Talvez... mas o que não existe não pode ser arrastado, nem remexido, nem exaltado, e mesmo quando é recordado, só o-é porque tem alguma utilidade prática. O que resta mesmo, vamos lá dizer a verdade, é essa triste resistência em ver-se num mundo novo. Mas por quê?
A minha referência de dignidade na matéria nunca me permitiu voltar atrás e resistir às mudanças, por mais difíceis que fossem (e muitas têm sido ultimamente), e em homenagem a ela, sou flexível como uma barra de aço.
Quando terminei o curso e aceitei o meu primeiro trabalho tive de me mudar e deixar para trás a minha namorada... a minha primeira namorada. Mas não foi o trabalho que nos separou, foi a tristeza de me sentir eternamente exausto pela prudência impudica. Quando estivemos em Ouro Preto juntos, eu tentei mostrar-lhe o grafitti com a citação de Blake num tapume na Rua São José: "A prudência é uma donzelona rica e feia que habita a torre de incapacidade". Mas ela não viu, ou viu, mas não associou. Era um dos meus arroubos filosóficos... pensou. Não era, era um presságio de uma convicção que se estava formando há muito.
Os seus serenos afetos, a sua doçura e brandura incomparáveis foram para mim mais que amor, foram a própria humanidade finalmente encontrada. Não posso dizer que não recebera esses sentimentos da minha família, mas sou de uma raça fundamentalmente fria, não o posso negar, e tive o azar (ou a sorte) de trair a raça nisso. Foi com surpresa que descobri nela um doce e puro amor, e penso que ela também viu o mesmo em mim.
No entanto, eu era marcial nas posturas: punia a relutância com indiferença e o medo com desprezo. Logo, a minha ideia de devoção incondicional de que tanto me orgulhava foi sufocando, pouco a pouco, o amor por ela, ao ponto de só sobrar o convívio.
Ainda decorreram uns meses até que, num passeio ao parque Halfeld, eu acabei com aquilo. Incrédula, pediu-me uma razão, que eu articulei como pude. Dizer "já não gosto mais de ti" seria cruel e mentiroso, mas eu já não gostava do mesmo jeito, ou ao menos não da forma como se gosta de uma namorada. O amor não deve ser um suplício na identificação... já basta as agruras da vida, a tentar tirar-lhe lascas. Na identificação tem que ser por inteiro: admiração, respeito e desejo mútuos estão sempre lá.
O meu único consolo era o de que ela não se debateria muito: a vantagem em se fazer num monumento ao método e à razão é que eles substituem o conteúdo sentimental da vida até um certo ponto. Ela apaziguou-se com as justificativas: eu ia me embora e não faria sentido alongar o que já não andava bem.
Depois de muito tempo eu a vi de novo, num encontro de membros do nosso antigo clube de jovens. Sempre bonita e confiante, estava a meio do seu mestrado e namorava um conhecido meu. Davam-se muitíssimo bem. O tipo era funcionário público da universidade, acho que era assistente, e andava com um carro popular, mas muito digno. Lá estava ela, de braços dados com a vida que queria, sem qualquer mossa do relacionamento comigo... mas aquilo era só uma parte da história.
São fundos e caudalosos os rios que correm dentro de nós, as suas águas por vezes turvas de emoções reprimidas e desejos frustrados vão carregando por cima incautos passageiros nos seus barcos de veraneio.
Sem que o homem visse, ela apanhou na minha mão e olhou-me tão fundo dentro dos olhos que o meu coração gelou. Foram três segundos em que todos aqueles anos estiveram de volta em mim e o impacto da sua dor revelou-se, afinal.
Não me disse nada, e um minuto depois veio o seu namorado e foram-se embora os dois, e eu fui ter com os outros amigos. Foi a última vez que a vi, ou que falei com ela.

terça-feira, abril 21, 2020

A gratidão é a memória do coração

O mestre com a palma aberta, um símbolo de generosidade

Luiz Gonzaga da Silva foi um professor de literatura nos cursos de letras e do ensino secundário da minha terra, para minha grande sorte. Morreu há mais de um ano, prova de que o reconhecimento só é mesmo devido quando se nos impõe como um chamamento maior, de uma natureza complexa: voluntário na sua externalidade e obrigatório no sentido de valor que faz despertar em nós.
Nunca foi clara para mim a razão pela qual um poeta conhecido, homem de profundo conhecimento, um intelectual rigoroso e exigente, já com mais de cinquenta anos de idade e num tempo que já há muito era professor do ensino superior, ainda dava aulas no ensino secundário. Talvez pelo afeto pela minha escola, talvez porque ficasse mesmo a dois passos da sua casa (também a faculdade era ali ao pé, bastava atravessar a rua e subir o morro). Facto é que na rudeza dos meus 15 anos tive o gosto de aprender com quem efetivamente sabia e se importava com a aprendizagem. 
Ensinou-me a contemplação silenciosa que merecem os grandes poemas, e a necessidade de verve para dizê-los na sua inteireza... ensinou-me que o drama e o êxtase de alegria são alegorias e que o grande enredo é o de uma vida que não ignore nenhum deles e ainda assim coloque-se acima deles.
Esse homem preciso, forte, pleno de convicções, que sabia dizer "eu amo-te" em tupi-guarani e que via nas unhas das raparigas suas alunas garras afiadas para arrancar o coração dos rapazinhos apaixonados (ele muito justamente nos prevenia...), deixou uma obra grandiosa, muito para além da sua sentida, simples e verdadeira obra poética.
A testar os meus próprios dotes poéticos contra a sua profunda sabedoria (o homem sabia os Lusíadas de cor, e recitava trechos imensos da Ilíada de Homero, embora esses sejam evidência da reverência de um saber verdadeiro muito mais relevante), apresentei-lhe um dia, depois da aula, um poema meu como sendo de Vinicius de Moraes. Perguntei-lhe de maneira indireta: "Senhor professor, acha que este poema de Vinicius faz alguma concessão ao modernismo, ou é a continuação do seu estilo próprio, sem deferências de estilo?". Ele apanhou a folha em que tinha o poema "copiado" e, depois de pôr os óculos de leitura e juntar o indicador e o polegar embaixo do nariz para sem seguida separá-los ao longo do seu pequeno bigode, disse-me: "Claramente ele teima aqui também em fazer deferências ao seu estilo próprio, embora seja um poema interessante". 
Obviamente que fiquei radiante, afinal, o meu grande mestre confundiu-me com o meu poeta de predileção, para mim, um dos grandes poetas de sempre. Pus-me a escrever com mais frequência, e a ler poesia ainda com mais interesse. Logo constituí uma coleção longa de papéis esparsos com os meus poemas, o que daria sem dúvidas para um livro.
Meti aquilo tudo numa pasta e com muita coragem fui ter com o professor para pedir-lhe que lesse e desse o seu juízo. Ele recebeu-me com desconfiança. Hoje ainda mais aprecio aquela atitude. Não era um homem dado a ilusões, ou a sentimentalismos. Amava a verdade, a beleza e a bondade, mas era-lhe maçador ler os poemas dos alunos porque, primeiro, eram em geral muito ruins, depois porque tinha de o dizer a eles, e partir-lhes o coração, por último, uma razão técnica, muitos eram os que lhe davam poemas para ler escritos a lápis, e o grafite do lápis faz um traço mais difícil de ler, pela sua cor pálida. 
Foi isso mesmo o que eu fizera. Os poemas não se escrevem perfeitos logo à primeira, e para não estar a rabiscar tudo, o melhor era sempre escrever a lápis. Depois da sua chamada de atenção, no entanto, emendei essa parte. 
Quanto às outras observações gerais, apenas em parte aplicou-as a mim, felizmente. Em verdade, demorou um longo tempo para me mandar chamar e devolver os poemas com a sua crítica. Antes de me deixar ler as anotações que tinha feito em cada um, explicou com muito tato no que consistia a criação poética, e fê-lo com um brilhantismo que ainda hoje me emociona: "A construção da poesia é a construção que o próprio poeta faz em si e de si, de uma certa maneira. A poesia é uma ponte para que os outros passem. Só serás capaz de erguê-la se compreenderes essa verdade: manter um coração puro para seres capaz de colher poesia das coisas ordinárias, e depois ter sempre uma atitude de caridade para partilhar o que fores colhendo como poesia. As primeiras pontes serão arremedos improvisados, como as que os exércitos faziam para cruzar os rios e depois se desfaziam à primeira cheia. Mas se fores capaz de guardar as lições de construção poética interior, as tuas pontes manter-se-ão por séculos, como as pontes romanas ainda hoje em uso". Estas foram palavras doces que amaciaram o coração para uma pesada saraivada de críticas de estilo e de forma que ainda hoje ressoam, mas que foram fundamentais.
Penso que hoje sou capaz de edificar pontes melhores, mais duradouras, em linguagem corrente, fazer uma poesia mais sóbria, mais direta, e com estilo e beleza sempre maiores. O sentido estético do mestre era, obviamente, muito exigente, o que também contribuiu decisivamente para a formação da minha própria apreciação da beleza.
"Continua a escrever, não pares nunca. Vai chegar o dia em que terás de publicar, mas não esses primeiros escritos. Pensa neles como exercícios, guarda-os como testemunhos de afeto apenas, se quiseres. Tens em ti o que é preciso, persevera". 
E assim, com essas palavras, ele docemente me despachou, oferecendo-me um dos seus livros, (no qual já tinha preparado uma dedicatória simpática, que só fui ver em casa), e foi continuar a tratar dos seus muitos afazeres. No entanto, a presença dele em mim permanece, assim como a memória afetiva e o papel fundamental que desempenhou em minha vida e na vida de milhares de alunos que, como eu, tiveram o enorme privilégio de aprender com o melhor, com quem efetivamente sabia, com quem vivia e acreditava no que ensinava, com um homem verdadeiro, belo e bom.

sábado, abril 11, 2020

Amar sem mentir, nem sofrer

Amar é uma difícil travessia, não há dúvidas. Ontem fui ao Passeio Alegre para fazer exercício e apreciar um pouco do mundo. Como é na observação do mundo que está a verdade, como já dizia Aristóteles, vi à minha volta algumas referências do que o amor é nestes tempos em que as pandemias são muitas e as infecções pervertem a nossa natureza.

Vi um pai com uma filha e o cão, todos a brincar, ali junto a duas peças de artilharia colocadas no jardim para enfeitar (deviam ser do forte lá mais perto da foz). O pai com o semblante cansado, pesaroso, a conter as próprias aflições. A miúda completamente eufórica a correr com o cão, talvez das primeiras vezes que tinham conseguido esticar as pernas naquele dia. Depois de um longo sprint, vai ter com o pai a sorrir e ele, na maior descontração do mundo, diz-lhe: “que lenta que és! O Haroldo chegou aqui há 10 minutos!”

Eu estava a passar e sorri-lhes por um instante, ao que me cumprimentaram e continuaram as suas interações. Achei o nome do cão muito giro, mas sobretudo a forma como aquele homem levava o seu mundo às costas, a suportar as ansiedades, a oferecer afeto, a ignorar o próprio bem estar. Ele amava demais para pensar em si mesmo.

Mais à frente, com o passeio quase sempre deserto, virei-me para a natureza, e junto ao rio havia uns grandes cardumes de peixes grandes, se calhar com ao menos um quilo de peso, a pastar junto às rochas da margem o musgo ou alga que ao sabor das ondas se lhes ia oferecendo. Indiferentes ao mundo, seguiam o seu instinto, a nadar naquela água absolutamente cristalina, onde se podia ver um metro ou mais. Acho que nos animais há um amor infinito porque não são perturbados pelas coisas do mundo: não estão infectados. A sua união com tudo não chega à transcendência do homem com a filha e o Haroldo, é mais direta, mas nem por isso menos verdadeira. Amar também é colocar-se nesse estado de dignidade, de imediata participação no mundo, pois não há nele nenhuma malícia.

Mas como não somos animais irracionais e havia mais para ver, continuei o meu passeio (pelo Passeio Alegre e pelas reflexões quanto à verdade dos afetos).

Uma senhora que corria na minha direção deu-me o próximo mote. No troço a seguir à escultura de São Miguel-o-anjo (uma escultura bonita que fica no entroncamento entre a zona que vem da rua do Ouro e a parte do Passeio Alegre, mas sempre junto ao Douro) passou por mim a largos metros, retomando a seguir a margem do rio. A minha impressão foi a de que não se queria aproximar de um provável portador do COVID-19.

Foi então que percebi: o medo impede que as pontes necessárias ao amor se mantenham disponíveis para a travessia, sempre perigosa... vamos tentando contornar, ao invés de fazer o caminho que está à nossa frente.

Mas não há volta a dar... é preciso dar de si. Vejo com muita tristeza que o medo dominou aquela verdadeira e última fortaleza da convicção na grandeza das partilhas... e um individualismo atroz diminuiu tudo a um jogo de ajuntamentos vãos: posição, dinheiro, manias... que somado às convenções do conforto tornam tudo muito insano. Portanto, é justo que sejam chamadas insanas as pessoas que assim vivem, infectadas por essa doença que os divide ao levá-las para dentro de si mesmas em busca dos referenciais dos outros! Se ao menos a jornada para dentro fosse a reflexão honesta de quem quer conhecer a si mesmo, muito haveria de vir daí... mas é um eterno jogo de desviar-se do que causa dor... e refugiar-se num senso comum que não pode jamais abarcar a profundidade do que se traz cá dentro.

Gente insana, doente, pervertida... vivem vidas solitárias, com seus gatos e hamsters, e suas certezas frias, nunca questionadas. A um olhar desatento, o pai, a filha, o Harold, os peixes e a corredora são apenas figurações da vida... mas não, eles na verdade são a vida a mostrar-lhe o que ele teimosamente ignora. Eles são o estar presente... o partilhar o momento, o dar de si para algo maior que nós mesmos...

Mas será que vale a pena? Irá perguntar-se o nosso desatento amigo no seu jogo frio dos cálculos mal feitos... É uma pergunta vã: viver em si e para si é um evidente desperdício de vida. Só há vida se for para os outros e com os outros... tanto mais se forem para aqueles e com aqueles com quem partilhamos os nossos ideais, os nossos sentimentos profundos, os que fazem as nossas aflições menores e as nossas ilusões mais acesas... Para tanto, é preciso ter coragem e conhecer a verdade. Infectados pelo medo, inchados pela vaidade que obscurece a vista e impede a aprendizagem, vão vivendo vidas vãs, privados de ir e vir, de ser e de estar, para além do que essa terrível condição lhes impõe.

Sem este maldito vírus, ao invés de se converterem nessas múmias confinadas nos seus apartamentos solitários, poderiam finalmente tomar a própria liberdade, abraçar a vida e ser pessoas completas... ao escolherem completar os outros.

domingo, janeiro 12, 2020

I said you, Liberty, you pick it up


The man who shot Liberty Valence, 1962, John Ford
Do que é feito o estado de criação artística? Dirás, caro leitor, "inspiração". Pois, mas esta é apenas uma resposta parcial, já que a inspiração em si mesma não é substância, mas antes um efeito. Tenho perseguido a resposta há muito tempo... talvez desde que me foi dado a decorar o primeiro poema, e da insistência em memorizar os versos surgiu a contemplação da beleza das imagens associadas às ideias.
No encalço da origem, em que se interpõem muitas coisas falsas ou apenas verdadeiras em aspectos secundários, fui fazendo o caminho com cuidado, e absorvendo a beleza do mundo e das obras que tentavam refleti-la. A "beleza" como mero entretenimento, o que para mim são formas degeneradas de arte, entretanto nunca me enganou. 
Repara, não estou aqui já a apreciar a estética, falo de algo que lhe antecede, que é a identificação com a beleza. O "artista" que não quer oferecer algo às pessoas, mas, ao invés disso (e como muitas vezes se dá), pretende tirar algo aos outros, produz uma criação que perverte a ideia de obra artística, ainda que insista (ele e seus sequazes) em chamá-la "arte", "obra prima", "produto de uma sensibilidade particular", ou o que o valha - o rótulo não faz o produto, assim como a pretensão de arte não faz a arte.
Daqui aponto o primeiro critério que me parece essencial: a arte está fundada na caridade. Tomo a caridade como o sentimento que nos une a todas as outras pessoas, aos animais, às plantas, e mesmo à natureza num sentido mais amplo: os rios, as florestas, as montanhas e tudo mais quanto existe. É um amor feito de dar, de integrar-se, de ser consciente desta composição ampla do universo, ou seja, é uma renúncia ao egoísmo. Produzir arte é querer oferecer algo belo aos outros.
Mas o mundo não é feito de intenções, e sim de atitudes. Só contam as pretensões efetivamente exteriorizadas em atos. A arte como exercício de um sentimento de caridade deve então encontrar uma expressão concreta específica. Pode-se imaginar expressões desse sentir que não são propriamente produto da arte. Oferecer um pedaço de pão a um mendigo é sem dúvida um ato de caridade, mas não me parece que seja propriamente artístico.
Talvez seja aqui que a "inspiração" jogue na equação dos elementos. Deve haver uma relação íntima entre o mundo exterior e o artista para que, dessa combinação, única nos seus sujeitos, tempo e espaço, se produza afinal uma peça artística como reprodução daqueles sentimentos, também informada pela caridade. E então chegamos ao ponto central de todo o percurso para responder à pergunta que inicialmente te coloquei, leitor: do que é feito este estado de criação da arte?
Penso que a quase totalidade das pessoas que se dizem incapazes de produzir arte são, a bem da verdade, inconscientes relativamente ao absoluto do seu espírito. Explico-me: a vida não é a perseguição de objetivos externos, como a acumulação de dinheiro, a escalada social em direção a um estatuto, ou a identificação com a aparência física... Embora essas possam ser formas com as quais nos ocupamos eventualmente, não são substância da vida. O auto-engano impede que se investigue o tesouro inestimável que há no fundo de si mesmos: a consciência de integração com tudo quanto existe, o espírito imortal que habita o seu corpo e que levanta-se de forma muito superior à mente que cria as formas, e que quando estamos presentes é uma fonte inesgotável de alegria, paz e completude.
Pode parecer um conceito difícil de alcançar, havendo naturalmente uma desconfiança de que se trata de algo místico... mas é muito simples de perceber. Vou dar um exemplo. Imagina uma ambição material muito importante para ti, como comprar uma boa casa. Trabalhas com afinco, por anos a fio pões dinheiro de lado. Deixas de ir viajar com a família, compras as roupas nos saldos e das marcas medianas, até mesmo trabalhos extras aceitas para pores lá para dentro mais uns recursos. Por fim, ao cabo de uma parte substancial do teu tempo de vida, muitas vezes, a casa é tua. Parabéns! Tens um bem material estimado por muitos. No entanto, tudo o que sacrificaste para alcançá-lo fez com que renunciaste ao teu eu mais profundo em muitos momentos: deixaste de acompanhar um jogo de futebol importante do teu filho para ficares a trabalhar mais umas horas no escritório, disseste que não ao convite do namorado para jantarem fora a fim de revisares o artigo e mandares no dia seguinte para a revista, ignoraste as flores de maio no jardim botânico porque estavas demasiado apressado para chegar à reunião ali perto. 
Estiveste ausente quando deverias ter estado presente, e portanto, não viveste verdadeiramente. Mas pronto, tens a tua casa! O facto verdadeiramente triste, e que evidencia o nosso discurso sobre o fundamento da arte, é que esse objetivo alcançado não te fará feliz por muito tempo: passada a euforia inicial, instala-se novamente o sentimento de vazio, de incompletude, de niilismo. Mas como achas que dentro de ti não há nada, colocas-te outro objetivo exterior, e o ciclo de busca no futuro recomeça... Toda a "arte" para ti não é mais que entretenimento para aquelas pausas em que precisas de desanuviar, ou, ainda pior (embora muitas vezes seja assim mesmo), fazer boa figura aos outros como instruído no que é alta cultura, ou artístico. Não admira que sejas incapaz de produzir arte: tu rejeitas a ideia fundamental do que é arte.
Quando as estrelas altas no céu brilham o seu mistério, e o vento frio da noite gela a tua cara de contemplação respeitosa, aí está a participação da beleza que proporciona o momento de criação artística. O artista passa a produzi-la e oferecê-la aos outros, sobretudo através de alguma associação com as emoções humanas: alegria, harmonia, paz, ou mesmo desassossego. Quando faz essa combinação, constrói uma ponte entre o absoluto e o material que convida a todos a participarem desse instante de glória, agora transladado para a eternidade.
Se formos como o artista, ou seja, se tivermos a coragem necessária de viver quem somos, todos podemos produzir arte. E não apenas isso: produzir obras verdadeiramente únicas que trarão beleza e recordarão significados profundos às vidas dos outros. 
Esta é afinal, a verdadeira e mais importante escolha que temos: encarar a oportunidade de criação como expressão de quem realmente somos e do que queremos dar ao mundo.