domingo, janeiro 12, 2020

I said you, Liberty, you pick it up


The man who shot Liberty Valence, 1962, John Ford
Do que é feito o estado de criação artística? Dirás, caro leitor, "inspiração". Pois, mas esta é apenas uma resposta parcial, já que a inspiração em si mesma não é substância, mas antes um efeito. Tenho perseguido a resposta há muito tempo... talvez desde que me foi dado a decorar o primeiro poema, e da insistência em memorizar os versos surgiu a contemplação da beleza das imagens associadas às ideias.
No encalço da origem, em que se interpõem muitas coisas falsas ou apenas verdadeiras em aspectos secundários, fui fazendo o caminho com cuidado, e absorvendo a beleza do mundo e das obras que tentavam refleti-la. A "beleza" como mero entretenimento, o que para mim são formas degeneradas de arte, entretanto nunca me enganou. 
Repara, não estou aqui já a apreciar a estética, falo de algo que lhe antecede, que é a identificação com a beleza. O "artista" que não quer oferecer algo às pessoas, mas, ao invés disso (e como muitas vezes se dá), pretende tirar algo aos outros, produz uma criação que perverte a ideia de obra artística, ainda que insista (ele e seus sequazes) em chamá-la "arte", "obra prima", "produto de uma sensibilidade particular", ou o que o valha - o rótulo não faz o produto, assim como a pretensão de arte não faz a arte.
Daqui aponto o primeiro critério que me parece essencial: a arte está fundada na caridade. Tomo a caridade como o sentimento que nos une a todas as outras pessoas, aos animais, às plantas, e mesmo à natureza num sentido mais amplo: os rios, as florestas, as montanhas e tudo mais quanto existe. É um amor feito de dar, de integrar-se, de ser consciente desta composição ampla do universo, ou seja, é uma renúncia ao egoísmo. Produzir arte é querer oferecer algo belo aos outros.
Mas o mundo não é feito de intenções, e sim de atitudes. Só contam as pretensões efetivamente exteriorizadas em atos. A arte como exercício de um sentimento de caridade deve então encontrar uma expressão concreta específica. Pode-se imaginar expressões desse sentir que não são propriamente produto da arte. Oferecer um pedaço de pão a um mendigo é sem dúvida um ato de caridade, mas não me parece que seja propriamente artístico.
Talvez seja aqui que a "inspiração" jogue na equação dos elementos. Deve haver uma relação íntima entre o mundo exterior e o artista para que, dessa combinação, única nos seus sujeitos, tempo e espaço, se produza afinal uma peça artística como reprodução daqueles sentimentos, também informada pela caridade. E então chegamos ao ponto central de todo o percurso para responder à pergunta que inicialmente te coloquei, leitor: do que é feito este estado de criação da arte?
Penso que a quase totalidade das pessoas que se dizem incapazes de produzir arte são, a bem da verdade, inconscientes relativamente ao absoluto do seu espírito. Explico-me: a vida não é a perseguição de objetivos externos, como a acumulação de dinheiro, a escalada social em direção a um estatuto, ou a identificação com a aparência física... Embora essas possam ser formas com as quais nos ocupamos eventualmente, não são substância da vida. O auto-engano impede que se investigue o tesouro inestimável que há no fundo de si mesmos: a consciência de integração com tudo quanto existe, o espírito imortal que habita o seu corpo e que levanta-se de forma muito superior à mente que cria as formas, e que quando estamos presentes é uma fonte inesgotável de alegria, paz e completude.
Pode parecer um conceito difícil de alcançar, havendo naturalmente uma desconfiança de que se trata de algo místico... mas é muito simples de perceber. Vou dar um exemplo. Imagina uma ambição material muito importante para ti, como comprar uma boa casa. Trabalhas com afinco, por anos a fio pões dinheiro de lado. Deixas de ir viajar com a família, compras as roupas nos saldos e das marcas medianas, até mesmo trabalhos extras aceitas para pores lá para dentro mais uns recursos. Por fim, ao cabo de uma parte substancial do teu tempo de vida, muitas vezes, a casa é tua. Parabéns! Tens um bem material estimado por muitos. No entanto, tudo o que sacrificaste para alcançá-lo fez com que renunciaste ao teu eu mais profundo em muitos momentos: deixaste de acompanhar um jogo de futebol importante do teu filho para ficares a trabalhar mais umas horas no escritório, disseste que não ao convite do namorado para jantarem fora a fim de revisares o artigo e mandares no dia seguinte para a revista, ignoraste as flores de maio no jardim botânico porque estavas demasiado apressado para chegar à reunião ali perto. 
Estiveste ausente quando deverias ter estado presente, e portanto, não viveste verdadeiramente. Mas pronto, tens a tua casa! O facto verdadeiramente triste, e que evidencia o nosso discurso sobre o fundamento da arte, é que esse objetivo alcançado não te fará feliz por muito tempo: passada a euforia inicial, instala-se novamente o sentimento de vazio, de incompletude, de niilismo. Mas como achas que dentro de ti não há nada, colocas-te outro objetivo exterior, e o ciclo de busca no futuro recomeça... Toda a "arte" para ti não é mais que entretenimento para aquelas pausas em que precisas de desanuviar, ou, ainda pior (embora muitas vezes seja assim mesmo), fazer boa figura aos outros como instruído no que é alta cultura, ou artístico. Não admira que sejas incapaz de produzir arte: tu rejeitas a ideia fundamental do que é arte.
Quando as estrelas altas no céu brilham o seu mistério, e o vento frio da noite gela a tua cara de contemplação respeitosa, aí está a participação da beleza que proporciona o momento de criação artística. O artista passa a produzi-la e oferecê-la aos outros, sobretudo através de alguma associação com as emoções humanas: alegria, harmonia, paz, ou mesmo desassossego. Quando faz essa combinação, constrói uma ponte entre o absoluto e o material que convida a todos a participarem desse instante de glória, agora transladado para a eternidade.
Se formos como o artista, ou seja, se tivermos a coragem necessária de viver quem somos, todos podemos produzir arte. E não apenas isso: produzir obras verdadeiramente únicas que trarão beleza e recordarão significados profundos às vidas dos outros. 
Esta é afinal, a verdadeira e mais importante escolha que temos: encarar a oportunidade de criação como expressão de quem realmente somos e do que queremos dar ao mundo.

sexta-feira, dezembro 27, 2019

Quando te fiz chorar

Les frères, Annie Massollo

Há poucas coisas tão íntimas quanto as emoções. Como umas acabrunhadas filhas no nosso ego, elas relacionam-se diretamente com os medos, as paixões, as ilusões e as ambições mais profundas.
Cedo aprendi o poder destrutivo, ou até involuntariamente construtivo das emoções. Recordo antigas discussões com o meu irmão, sempre muito acalouradas, por coisas sem nenhuma importância, mas que resultavam em dramas fenomenais. Ele com o seu especial gosto por provocar e testar os limites, eu com o meu orgulho e meu sentido de justiça. 
Quando estávamos os dois na segunda infância, eu com 12 anos e ele com os seus 9, tivemos uma briga séria, que começou por qualquer tolice num jogo de futebol. Ficamos então sem nos falar por uns dias, a fingir que o outro não existia: um comportamento tão estúpido e cruel que ainda hoje me envergonha. Na altura a nossa maturidade não dava para muito mais, e ficávamos a medir forças com esse tipo de agressividade inútil... Mas como era época das festas da cidade, também andávamos os dois muito distraídos com outras coisas.
Era comum saírmos à noite com grupos de amigos à procura de algum entretenimento: ver as novidades do parque das exposições e por lá passear e arranjar algumas confusões. 
O recinto constitui-se num grande largo com um campo relvado para as provas equestres e rodeios, com uma grande arquibancada que se insere harmonicamente no declive, formando uma espécie de mistura entre praça de touros e anfiteatro grego antigo. Há restaurantes improvisados à esquerda de quem chega, com alguma estrutura a mais que a dos carros das farturas das feiras e festas populares, além de pavilhões de exposições. À direita ficam os pavilhões com os estábulos para os animais, sobretudo cavalos e bois, mas também há um ou dois pavilhões temáticos. À frente, fica uma grande estrutura com palco, com dois pisos e uma excelente projeção sobre o largo. No fundo ficam, aí sim, as carrinhas de farturas e outras vendas em barracas montadas, das quais recordo com particular saudade as que vendiam uns estupendos espetos na brasa.
Anexo ao parque das exposições, ficava o recinto do parque das diversões, com os brinquedos para miúdos e, muitas vezes, também para os adultos. Era um grande campo em declive suave, talvez com três mil metros quadrados, em que havia espaço suficiente para se meter uma roda gigante, pula-pulas, um carrossel (ou dois), uma pista dos carrinhos de bate-bate, além das brincadeiras de arremesso e de tiro ou um ou outro brinquedo da moda que desafiava a coragem dos mais audazes. 
Estava montado o palco ideal para as grandes disputas entre os rapazes!
O meu irmão e eu andávamos em grupos diferentes, e naquela altura ainda por cima, estávamos zangados um com o outro, como já referi. Estávamos cada um por sua conta e risco, num ambiente de muitos ânimos!
Tendo saído de casa mais cedo que eu, o Fernando juntou-se logo com os amigos no recinto. Depois de darem duas voltas àquilo, resolveram ir investigar uns tambores que haviam sido usados numas provas e estavam encostados à beira do relvado. Os miúdos, à falta de supervisão, logo fizeram daquilo uma brincadeira em forma de desafio: "aposto que não consegues ficar de pé sobre o tambor!". Enquanto a coisa estava entre eles, tudo bem. À parte de que os tambores não deviam ter sido deixados ali,  soma-se o risco de que os miúdos podiam partir o nariz numa queda, mas pronto, merecendo alguma censura, não é grave por si só. 
A treta começa quando o meu irmão desequilibra-se do tambor, que apanha impulso e vai direitinho contra as pernas de um rapaz muito mais velho. Talvez já com uns 15 anos, ele era um repetente regular, conhecido da nossa escola, e estava por ali com uns amigos.
"Vais pedir desculpas já!". "Não vou. Foi um acidente". Os outros à volta, sedentos de alguma ação, atiçavam os adversários: "Vais morrer, miúdo". "Vais ouvir isso e calar?". "Eu não deixava que me fizessem isso".
Eu entretanto já andava por ali, porém mais interessado em ver se espreitava uma certa rapariga nos restaurantes que propriamente à procura do mano. No entanto, a voz era demasiado familiar para que não fossem chamados à colação os meus instintos mais primitivos: "És grande, mas és fraco!"
A este último impropério seguiu-se uma valente troca de socos e muita gritaria dos miúdos à volta. Sem pensar no que seria do lindo fio de ouro que trazia ao pescoço, ou da camisa nova que me fora oferecida pela avó e que estreava naquele dia, ou ainda do cheiro fresco de perfume que exalava em favor daquele recinto com os cheiros que podes imaginar, caro leitor, irrompi no conflito a agarrar o meu irmão pelo casaco e lançá-lo para longe daquilo e, ato contínuo, desferir um belo murro na orelha e dois pontapés nas costelas do rapaz. Levei também uma bordoada - o rapaz não era tão fraco quanto o meu irmão dizia. Mas logo aquilo acalmou com a chegada dos adultos e fomos lá obrigados a apertar as mãos e nos desculpar uns com os outros, embora (e ainda bem) não se tenha feito qualquer apuração de culpas, propriamente.
O Fernando nunca se esqueceu daquele dia, e nem eu, obviamente. Para além da poeira levantada pela fumaça daquelas turras que nós tínhamos, para além das tolices emocionais que não contam para nada, há dois corações, muito leais um ao outro, capazes de grandes atos de bravura ou desprendimento. O que conta, afinal, é a sintonia entre os corações... Naquele dia, por muito ruído emocional que houvesse à volta, a vida aconteceu (e acontece) naquela vibração.
Quando o encontrei depois da briga, ele ainda com a cara vermelha da sova que levara, não havia derramado uma só lágrima. Nos meus braços, no entanto, dominado pela emoção do meu acolhimento à sua defesa, chorou discretamente e deixou escapar um longo suspiro. Logo em seguida, enxugou os olhos com as mangas do casaco, respirou fundo e disse, "Bem, agora vamos ver o que mais há para fazer por aqui".

sexta-feira, dezembro 06, 2019

Menininha do meu coração


Vieste a este mundo de modo insuspeitado, como a vida deveria ser sempre. E que grande chegada, Puca-puca... Recordo da ligação do Fernando a dizer que eu seria tio e que dali a uns poucos meses haveria um casamento, tudo assim um bocado em cima do joelho, mas sempre com um imenso sentido de alegria.
Nasceste há sete anos, a 4 de Dezembro, um dia de sol em Coimbra, em que eu percorri as bancas de jornal e recolhi tudo quanto se havia publicado nesse dia, a pensar que no futuro irias gostar de ver como estava Portugal e o Mundo no momento da tua chegada.
Logo chegaram as tuas primeiras fotos, que causaram grande curiosidade: não eras parecida nem connosco, nem com a família da tua mãe: como todos os recém-nascidos, eras uma coisinha acabada de sair do conforto do ventre materno, rosada e chorona, ainda muito inchada. Um traço teu, no entanto, chamou-me logo a atenção: tinhas já um queixo delicado, como o da tua avó paterna, e podia-se adivinhar o contorno do teu rosto desde aquele ponto de acesso à forma dos teus sorrisos.
Vieste cá ainda bebé e encheste-me o coração de alegria: as tuas reinações mantinham-nos todos entretidos: os passeios a Fátima, ao Porto ou a Lisboa eram sempre o mote para fotos curiosas, como a que temos contigo na Avenida dos Aliados, em que te agarraste em simultâneo a mim e ao teu pai, sem querer estar ao colo só de um dos dois.
Depois fui eu que viajei ao teu encontro, doçura. Nos longos meses em que a tese foi sendo escrita, que grande conforto não me trouxeram as nossas brincadeiras de domingo nas Três Barras. Revivi contigo os momentos de uma infância privilegiada, em que livres e intrépidos, o teu pai e eu desbravávamos os limites da quinta, conhecendo ao pormenor cada árvore dos pomares, cada declive em direção aos córregos, a cor dos campos de pasto, o cheiro dos armazéns de café e o silêncio do açude que em nós fez-se (e faz-se sempre que lá estamos) no encontro com o nosso eu profundo.
Também tu e eu corremos pelos campos, nadamos na piscina, colhemos acerolas e comemos mangas, quase sempre contigo a cantar qualquer música... Aliás, fui eu quem te ensinou a assobiar e tu rapidamente dominaste este primeiro "instrumento musical" para de mais uma forma expressar os teus gostos.
Fazes parte disso tudo que somos nós, tens o nosso sangue e o assim a nossa grandeza e a nossa miséria... És inteligente e delicada. Pensas antes de falar e és muito cuidadosa. Uma sedutora como poucas, consegues sempre o que queres sem nunca, nunca forçar... És um exemplo para essa legião de chatos que vivem a insistir e espezinhar... Não, tu guardas a tua dignidade altaneira e tens aprendido rápido a ganhar e a perder. Mas também amas muito e sinceramente... e por isso te colocas muitas vezes em posições de fragilidade. Vai chegar um tempo em que poderás querer sentir de outra forma: se lá não estiver o tio para te olhar com amor e dizer "esquece, encanto", lembra do seguinte: amar é expressar gestos de generosidade convicta, não uma busca por validação.
Brinca com as tuas bonecas, escolhe as tuas roupinhas, e os teus sapatinhos, veste-te de princesa e inventa brincadeiras: vive a tua infância na alegria e na paz, sê a menininha linda e feliz que anda por aí a distribuir sorrisos e a fazer sorrir, sem qualquer antecipação.
Não vou pedir que não cresças. Seria egoísmo, ou tratar-te como se fosses um brinquedo, a servir ao nosso deleite. Vais crescer e estás a ser criada para seres uma mulher, digna da nossa casa e de ti mesma, e assim serás. 
Porém, não nego que o teu riso de criança seja para nós a própria vida, pequenina. Conservá-lo é que queremos para ti, no dia dos teus anos e sempre, mas sem técnicas de redoma, que te previnam de experimentar o mundo. Do alto das montanhas das minhas convicções, majestosas como as da nossa terra, terás do tio sempre um abraço de amor e uma palavra de verdade, e nenhuma desilusão te poderá jamais deitar abaixo.

sábado, novembro 30, 2019

Rapariga da Foz



Chovia bastante no início da manhã daquele dia. Quando me meti no carro para ir à universidade já havia amainado, mas ainda assim estava composto o cenário de Outono do Porto: chuva fina, pouco vento e frio. Não era um dia feio, no entanto e ao contrário do que a sugestão indica: as árvores coloriam as ruas de vermelho e laranja, e mesmo as folhas caídas, já podres no seu castanho a indicar a morte, tinham o seu encanto harmonioso. Como é natural, estava muito alinhado e bem disposto com aquela forma do mundo e fui também eu à minha vida para fazer parte dela.
A meio do caminho, na altura em que temos o mar à esquerda, naquele dia a rebentar umas ondas furiosas, vi a caminhar na calçada oposta uma rapariga com uma linda parka de cor amarelada, semelhante à lã no estado natural. Não levava guarda-chuvas e, por isso mesmo, tinha o capucho a cobrir a cabeça. Ainda assim não tinha a cabeça baixa: olhava o horizonte de frente e levava com a chuva fina no rosto. Uns cabelos de um louro escuro, soprados pelo vento, terminavam de apresentar aquela figura inusitada, a marchar em direção às suas aulas na Universidade Católica Portuguesa.
Parado a esperar que o sinal finalmente apontasse para o green go, distraí-me com a resolução da rapariga em apreciar a chuva... Não parecia nada imersa nos próprios pensamentos, como está todo o resto desta linda e sonâmbula cidade do Porto. Sem surpresa, ela virou a cabeça para o meu lado e reparou no meu olhar fixo, o que me deixou um bocado constrangido. 
Depois de trabalhar na primeira parte da manhã, já a contemplar as minhas construções jurídicas e muitíssimo envolvido com os artigos e a prova de doutoramento, esqueci-me daquilo completamente, para o meu azar. 
Entrei no bar a pensar na minha meia de leite, pus-me na fila e ensaiei um sorriso para o rapaz atrás da caixa, com quem já tinha feito amizade devido ao gosto dele pelo Boavista. Fui me sentar e só ao pousar a chávena reparei que à minha esquerda, no fundo do bar, olhava-me discretamente a rapariga. Junto com uma amiga, já sem a parka para lhe ocultar a figura, com os cabelos soltos e perfeitamente maquiada, falava pausadamente e dobrava e desdobrava as pontas do guardanapo de papel reciclado, como se estivesse a ilustrar os seus pontos de vista. Quando furtivamente ia buscar os meus olhos, vez por outra mexia no cabelo, rasgando uns sorrisos muito naturais e bonitos. Afinal também havia apreciado o nosso "encontro" mais cedo.
Quando ia saindo e passou por mim, finalmente pude ver que tinha uns olhos verdes acastanhados, de uma cor muito diferente. Como um prisma mágico, brilharam intensamente o mistério que vive em si e que desesperadamente lhe pede para ser partilhado com o resto do mundo.
Uns olhos como as folhas deste Outono que cumprem o seu ciclo de vida. Não quer nada além do seu momento. A rapariga ficou-me no pensamento com aquela decisão de sentir a chuva no rosto, e naquele instante ela esteve presente no mundo, inserida em todo o grande quadro das coisas e dos seres. Que grande presença!
Os anos talvez lhe retirem esse viçoso encanto. Poderá ter desilusões de amor, poderão lhe fazer promessas que serão descumpridas, poderá perder pessoas e posições que agora considera partes fundamentais da sua vida. Espero mesmo que ela não se torne uma dessas balzaquianas ressentidas, cheias de suspeição e incapazes de dar nada de verdadeiro aos outros.
Tanta vez vi o afeto verdadeiro se dissolver em mágoa, e a mágoa escorrer para dentro do espírito, sendo aceita e, assim, enegrecendo aquelas cores vivas de um outono que elas também um dia foram... Depois disso, não há mais uma mulher completa, mas sim uma versão distorcida da sua grande feminilidade, a simular uns sorrisos capazes de enganar os incautos, mas que nunca me conseguiram cativar. Em segredo, a se autossabotar e a lançar culpas com grande velocidade, cultuam seus corações rotos sem nada mais ter para oferecer. Fingem que podem amar enquanto lhes paira por cima o medo e o ego. Os fingidores são sempre figuras tristes.
A menina da Foz ainda não tem nenhum desses vícios: o sorriso é espontâneo, os gestos são simples e despretensiosos, e arrisco dizer que poderia se comprometer sem necessidade se sentisse que havia ali a naturalidade em ser e estar que ela aprecia e incorpora. Que os dias futuros conheçam sempre a virtude dela!
No entanto, para a realidade que importa, especular o que será é uma perda de tempo. Naquele momento em que nos ligamos, a rapariga da Foz e eu partilhamos a beleza e o significado profundo das coisas e seres do mundo.

sexta-feira, novembro 22, 2019

Afrika Korps


A reflexão de hoje pode parecer estranha às sensibilidades mais exaltadas (para ficarmos por esta qualificação simpática), já que se refere à força expedicionária alemã na campanha no Norte da África durante a 2ª Guerra Mundial.
Ideologias totalitárias à parte, revejo-me nos soldados que lá serviram bravamente e que, numa fase posterior da guerra, foram realocados para defender o Reich na fronteira com a Bélgica, na épica batalha de resistência que ficou conhecida como "Floresta Negra".
Vento, areia, calor… fome, disenteria e mais umas tantas misérias que só a infelicidade da guerra faz despoletar em simultâneo… tudo vencido para além das batalhas, num ambiente bastante distante daquela Alemanha romântica dos lagos secretos, das montanhas enevoadas e dos grandes rios a deslizar serenos.
Terminada a campanha, depois de vitórias gloriosas e demonstrações incontestáveis de bravura e serviço prestado honrosamente, numa fase posterior da guerra, ao invés de uma merecida baixa, esses soldados do Afrika Korps foram transferidos para o front europeu ocidental, para proteger a Alemanha do avanço dos aliados, sobretudo dos americanos, que haviam desembarcado na Normandia.
Ali sim houve provas de desespero e destemor, misturados e sem ser possível avaliá-los moralmente. Dia após dia, mês após mês, numa resistência ferrenha, cada metro de território era defendido com toda a gana daqueles soldados em vencer… e viver!
Neste carrossel de vitórias e derrotas, em que devemos manter a compostura sem perceber bem porquê, parece-me haver verdade na mentalidade do soldado alemão na floresta negra. Mesmo frente a um presente em tudo desfavorável, aquele soldado decidiu ser o que era, fazer o que lhe competia, e da melhor maneira que estivesse ao seu alcance. Não tinha escolha? Não é bem verdade: poderia sempre desertar. Aliás, não era difícil fazê-lo naquele momento: a Alemanha estava claramente a perder a guerra e os aliados prometiam acolhida favorável aos desertores alemães. De tudo em tudo, os que fizeram uma escolha consciente, firme na decisão em ser o que eram, sem subterfúgios, merecem toda a consideração.
Por vezes, (por muitas vezes), a vida é injusta. Ninguém se importa com os teus sonhos, ou com as tuas expectativas de futuro… isso não diz nada a ninguém… a não ser a quem te ame… mas mesmo a estes, é mais a preocupação contigo do que propriamente o luto pela tua perda. A justiça é um ideal e não uma condição natural. Daí que a não aceitação do injusto traga tanto sofrimento: achamos que as nossas ideias fazem o mundo, e não contrário.
Eu desci desse gira-gira de tolos já há algum tempo. Compreendo as limitações do mundo e estou em paz com elas. Não lhes faço guerra e menos ainda acho que há justificativa em qualquer tipo de revolução. Já não sou criança! Devemos é nos alinhar às condições naturais e viver pelas nossas virtudes, sem pretensões egoístas de colher a felicidade no exterior de nós mesmos.
Títulos, comendas, caviar… nada disso importa, old pal. Nos anos mais verdes, talvez ficasses impressionado com uma ou outra circunstância desse tipo. Querias ser o doutor, o presidente, o comendador… A tua mãe ficaria muito orgulhosa, de certeza, mas afinal, por detrás dos títulos, o que haveria? Tu saberias responder? Eu sei.
No frio da tua vigília, o que existe é o rifle na tua mão, a farda úmida e fria a te pesar no corpo, o sopro de ar espesso que te sai dos pulmões. Abre os olhos, vê a realidade. É no momento presente que realmente existes. As tuas glórias passadas te irão iludir a identidade e os medos de não as repetir no futuro te irão paralisar quanto ao que realmente deverias de fazer. Esquece o que foste, abdica de tentares controlar o que serás…  no presente é que está a tua redenção de sofrimento, de privação, de tanta vida que já desperdiçaste...
Mas como fazê-lo? Perguntar-me-ias… Not easy, old sport, mas nada te fará mais completo e realizado. Primeiro, um esclarecimento: certamente que és o resultado das tuas experiências e que temos sonhos projetados para o futuro que são belos e mesmo visam o bem dos outros… A questão não é fingir que o passado ou o futuro não importam, mas sim de subordina-los ao que realmente existe, que é o presente. É mesmo para inverter a pirâmide que tem a sua base no que foi e no que será e na ponta o presente, para que o a agora seja a base determinante e as suas perspetivas só interessem no que possam compor, apoiar ou fazer melhor o presente. Trata-se de reorganizar a compreensão do tempo em ti, assim deixares de ser um escravo das ambições e frustrações da mente.
Quando o inimigo interno se achegar a ti, o agora se vai materializar de forma inescusável. E então a força da tua luta veterana, talvez já distante do fulgor dos teus vinte anos… não interessa, desde que esteja convicta em quem verdadeiramente és, vai afinal se vingar das dúvidas e seus sequazes, deixando-lhes claro que para se imporem à tua grandeza, primeiro vão ter de passar por cima de ti, e que vai ser uma luta renhida.

sexta-feira, outubro 25, 2019

Encontra-me num sonho

 Maxfield Parrish (1870-1966) - Morning

Começo já com uma advertência, que é para poupar o seu tempo e depois não levar com críticas injustas: o que se segue é um lamento de um poema perdido. Caso não se interesse por poesia, ou o belo seja uma apreensão muito distante ou talvez até mesmo desnecessária para si, não há mal nenhum. Está um dia lindo e há muito que fazer na vida. Imagine que vive no norte da Europa e vá cuidar das coisas práticas.
Muito bem, ficamos nós, apenas.
Há uns tempos largos foi-me dedicado um poema muito singular. Um dos seus versos, que dava o tom daquela poesia tão bem conseguida, fazia um pedido que abria a imaginação a possibilidades imensas: "Encontra-me num sonho."
Todo o poema era sobre viver a ilusão. Repara, viver, e não propriamente divagar na ilusão. Não quero ser injusto e reproduzir erradamente a estrutura, que recordo como leve... desprendida de modelos, mas muito natural e doce... No entanto, posso dizer que afrontava um pouco a indecisão e o medo.
Sem deles fazer pouco, propriamente, ainda assim exigia que se mostrasse as cores verdadeiras. A vida o exige, não há tempo para esperar ou ver como vai calhar. Era um canto à liberdade e à coragem que me entrou pelo peito adentro como as setas que espetaram em São Sebastião. Mas a minha morte foi a de uma vida menor, sem encanto e sem virtude. Nasceu daqueles versos uma convicção nova no sentido dos sentimentos elevados, que efetivamente passavam a justificar tudo. Lá está, foi mesmo o caso de viver a ilusão.
A loucura, no entanto, não dominava em absoluto o poema. Como toda grande peça do género, era equilibrado, mas imparável na sua marcha em direção à ideia poética.
A próxima estrofe docemente recordava os afetos. Como as promessas das delícias do paraíso, havia ali "burburinhos de água clara" e "mil estrelas nos sorrisos que me davas", para honrar o "Na esperança de teus olhos". Estavam ali a voz baixa a meio da noite a confidenciar as inseguranças, mas sem medo nenhum, e uns olhares de admiração que brilhavam intensamente de um para o outro. Tudo estava ao alcance.
Por fim, uma reflexão a piscar o olho ao fatalismo. Sem dramas sentimentais inúteis, sacrificava de bom grado no altar excelso da verdade as pretensões de receber honras ou atingir estatutos: todo o ciclo da vida estava bem justificado pelo amor. Mas atenção, não qualquer amor. Um amor maior que tudo, que está à frente dos outros e mesmo por isso não está condicionado por nada: ele é. Assim a vida encontrava a morte com um sorriso... íamos afinal para as mãos de Deus, propriamente em união com o divino.
Veio-me num sonho (acredita se quiseres, leitor... já chegaste até aqui, portanto...). O verso a repetir-se, repetir-se, sempre como um mantra hindu que me induziu a um transe ainda agora a fazer-se sentir. 
Decidi ir à sua procura. Entretanto, essa fantástica composição de poesia, fotografia poética de um dos pontos mais bonitos da nossa vida, esfumaçou-se, por assim dizer, quando o provedor dos serviços de correio eletrónico resolveu que os arquivos antigos eram para apagar... "O senhor já não os acedia há mais de dez anos." 
E por que não havia copiado o bendito poema para o computador? Por que não o havia impresso, emoldurado, ou mesmo decorado? Ora, isso é fácil de responder... Mas não me demoro onde a imaginação pode fazer melhor trabalho que eu.

terça-feira, setembro 24, 2019

Uma mulher a sério




A sua beleza, minha mãe, é indizível.
De um amor feito de equilíbrio, pureza e inquebrantável coragem, meu irmão e eu viemos ao mundo a sorrir o seu sorriso de resignação e fé (no meu caso, quase que literalmente, já que tão bom era o seu ventre que tive de ser de lá retirado com um fórceps).
A beleza da mulher é algo incrivelmente complexo. Não a igualo à beleza geral das coisas ou à do homem. É especial, há nela algo de divino, de misterioso, de integração com o absoluto que lhe faz ter em si todo o cosmos celeste. E nessa concentração de valores estéticos, simbólicos e afetivos, o nosso coração é arrebatado a uma dedicação firme e valorosa: fazer felizes as lindas mulheres que nos adornam a vida. Nenhuma missão é mais importante ou vantajosa à nossa própria felicidade.
Ainda pequenino, minha mãezinha, ouvi pela sua voz e vi no seu sorriso toda a beleza do mundo. Desde esse momento até hoje, quanto tempo não passou para confirmar aquela impressão infantil!
Feito à sua aparência, não nasci, no entanto, com as suas inúmeras e admiráveis qualidades... aprendi pelo convívio a ter paciência, observei no dia-a-dia o valor da temperança, acalmei o meu coração, muitas vezes durante a vida, com o exemplo do seu amor brando e verdadeiro, sem rompantes de brutalidade nem palavras inúteis, mas resoluto nas suas convicções.
Sem exageros, sem sentimentalismos inúteis, sem nos privar de conhecer a realidade das coisas, logo cedo pudemos experimentar as consequências das nossas escolhas. A senhora nos educou com muita sabedoria, e deu-nos as armas para vencer verdadeiramente na luta da vida, sem escusas ou vitimizações.
A minha mãe deu-me a liberdade para que fosse eu mesmo e me desenvolvesse como quis, dentro dos valores da nossa casa (e ainda bem). Não tenho como pagar por isso. À custa de viver a verdade (e todos temos de pagar esse preço n'alguma altura da vida), muita ausência, distância e não saber foram-lhe impostos. Tanto mais pelo sofrimento (melhor seria penitência, de certa forma, pois foi e é feito de convicções certas), muito se eleva o seu exemplo de mãe que fez pelo amor, e não propriamente pelo próprio conforto sentimental.
Do nosso convívio mais recente, minha mãe, que tão boas surpresas tive! Já adulto e formado nas artes do viver, tive o gosto de ver a sua dedicação séria e seu profissionalismo. A sua diligente atenção e firme supervisão dos assuntos colocados à sua responsabilidade. No novo convívio, novamente tive o bálsamo do seu afeto, nos cuidados no dia-a-dia, na forma amável de abordar os assuntos fáceis e difíceis, das suas sugestões que revelavam preocupações nunca diretamente admitidas.
Em família, a sua postura é a incorporação dos sentimentos delicados e da sua serena resignação na fé. Equilibrando as graças e as misérias, lá temos ido atrás do seu exemplo... Por vezes com o sorriso da Fernandinha, outras vezes com o da Dona Nina. Minha mãe, de todas as dificuldades dramáticas da vida, saiba que o seu esforço é mais uma vez liderança certa: conduz bem o processo, com dignidade e fidalguia, e depois nos deixa de herança o dever de honrá-lo no futuro, com sinceridade e verdade, o melhor que pudermos.
Deus do céu ama muito esta sua filhinha linda, e lhe reserva muitas graças e momentos de felicidade. Oxalá possa ser eu o autor mediato de algumas dessas alegrias! Muito as merece, minha mãe, por toda a beleza que a senhora é e oferece a nós que partilhamos o privilégio de estar à sua beira.
Neste dia glorioso dos seus anos, recebe o meu amor e a minha lealdade, a minha gratidão e sentidas lágrimas de orgulho. Que Deus lhe dê muita saúde, paz e muitos anos felizes de vida.

domingo, agosto 25, 2019

Aloquete ou cadeado

 

Parte fundamental da vida é fazer o corpo estar na sua melhor condição... acredito que corpo e mente são uma unidade inseparável... não existe nada dessa bobagem de vida intelectual, ou vida de aparências sem abstrações. Existe vida. Física e intelectual são suas expressões, ou momentos de uma única realidade. Tudo isso para dizer que gosto muito de treinar!
Ora bem, há uns tempos reiniciei as visitas ao ginásio e tem sido fantástico. Para além de uma infraestrutura em tudo adequada (desde a secção para exercício cardiovascular, as máquinas para musculação e a secção de pesos livres), conta ainda com um grande balneário, com cacifos para as nossas coisas, além de piscina interior, jacuzzi, banho turco e sauna. Não que me tenha feito esquecer completamente meu antigo ginásio (não exageremos), mas digamos que estou bem ali para já.
Nesta rotina de ir para lá, vestir o fato de treino, treinar, regressar para pôr o fato de banho, depois finalmente voltar e vestir-se novamente para partir, um pequeno instrumento é fundamental: o aloquete do cacifo.
Pois é, é assim que chamam ao cadeado as gentes cá do norte! Descobri-o quando o meu aloquete velhinho deixou de me obedecer... sim, foi mesmo isso. Com três carreiras de combinação e alguns anos de uso, o pequenino cansou-se de abrir e fechar... resolveu trancar lá dentro as minhas coisas quando voltei do treino.
Cansado, suado e desiludido com o minha sessão de jacuzzi a ser injustificadamente adiada, pensei: vou partir isso. Pois, mas o aloquete era valente, não se deixava ir com qualquer abanão. Pronto, vamos ver se há suporte técnico. Lá fui eu à receção ver se arranjava quem me arrombasse o cacifo. O senhor António, a trabalhar na casa há 14 anos (desde quando abriu, disse-me ele), é que foi tratar do assunto. Trouxe lá de dentro um alicate de meio metro de comprimento e num golpe maneiro, rompeu com aquilo. "Cá está o seu cacifo." Fantástico. Lá fui eu seguir com a rotina!
Depois enquanto tomava o banho, fiquei a fazer o luto do aloquete. Quantas vezes não houve cadeados a meio das coisas! Malditos aloquetes, a meterem-se no meio do caminho... mas por outro lado, santos aloquetes, que me salvaram de muito sarilho escusado, fechando o caminho a especuladores.
É um bocado como a pergunta que a poesia lança ao poeta quando ele quer desprender o poema do limbo: "Trouxeste a chave", ou no caso do finado aloquete: "Sabes a combinação?".
Quando era miúdo, um dia na catequese colocaram a questão do "coração fechado", e o símbolo era mesmo uma porta fechada a cadeado. Não sei bem porquê (se calhar porque todos os outros miúdos diziam que sim), disse que não havia ali nada aberto. Pronto, a catequista encontrou o mote para o sermão de abrir o coração a Jesus...
Mas não basta discursos para abrir o coração. Isso é muito pouco. O que é determinante é que ele se reconheça no que está lá fora. Há quem saiba a combinação ou tenha a  chave, e o aloquete deixa de ser teimoso, não é preciso chamar o Sr. António com o alicate de meio metro...
De toda forma, vou comprar um aloquete novo, com quatro carreiras de combinação, e praticamente impossível de abrir por formas sorrateiras.

quinta-feira, junho 13, 2019

Mein Schatz

  
Árvore do amor - Festa de Nosso Senhor de Matosinhos


No sábado passado tomei parte, pela primeira vez e em companhia do amigo Luís, da Festa de Nosso Senhor de Matosinhos: uma "festa da terra", embora Matosinhos seja bastante grande e esteja inserida na área do grande Porto.
Para quem é cá do Norte, não há muita novidade... a festa é tradicional e vem gente de muito longe para comer as farturas, levar os miúdos ao parque de diversões ou mesmo para comer uma sandes de leitão ou umas sardinhas assadas. Celebrada no calor de Junho, sente-se a alegria no ar.
Começamos mesmo com uma sandes de leitão assado acompanhado de um tinto maduro... e depois uns churros com recheio de oreo.
O Luís já sentia falta da nicotina e fomos dar uma volta para que ele fumasse o cigarro dele e a gente apreciasse a festa.
A subir da parte dos restaurantes, encontramos um rio de gente a sair da igreja do Bom Jesus de Matosinhos - uma linda obra do Barroco.
Fomos passeando para esse lado, curiosos. Afinal, tanta gente a sair da igreja... será o fim de uma homilia? Logo descobrimos: era uma bênção às crianças, marcada para o meio da tarde. Portanto, lá se fizeram presentes famílias inteiras. Miúdos a gritar, bebés com fome... irmãos mais velhos a fazer asneiras e pais desalinhados tentando manter a patota em ordem.
Em meio a tanta algazarra (o Luís já queria ir-se embora), surpreendi-me com um pensamento: que bonito esforço faz essa gente! Gente que deu gente ao mundo, com grande sacrifício pessoal... e com gosto.
Depois vieram-me imediatamente à lembrança conversas com amigos que já foram pais. Ao vê-los cansados, acabados, quebrados... sempre brincava a perguntar se valia a pena. A resposta foi sempre a mesma: obviamente, o amor paga tudo.
Como no cumprimento de uma profecia, surgiu logo a seguir no nosso caminho uma imagem peculiar: uma árvore com o tronco envolvido em croché branco e nos seus ramos e galhos foram colocados grandes corações vermelhos. Não poderia chamar-lhe de outra forma, que não "árvore do amor".
Acho que cada um daqueles corações poderiam muito bem representar alguém que amamos na vida, alguém por quem nos sacrificamos de bom grado... por amá-lo. Depois aquele fruto feito de dar ficava ali pendendo, não só para ser dado, mas também para ser colhido, porque o amor exige dois gestos: tem de ser oferecido e aceito.
Por muito caminho que se faça para longe da árvore do amor, esses frutos estarão ao nosso alcance. Basta um telefonema, e a voz de quem se ama faz saltar no peito o coração vivo. Basta um sorriso leve, um olhar de ternura, uma palavra de afeto... e a árvore produz um fruto novo.
E este fruto faz-se notar... faz uma figura tão bonita... inspira quem está por perto, dá esperança, afeto e repõe a nossa humanidade.
Foi então que dei por mim na festa do Senhor de Matosinhos influenciado pelo efeito contagioso do amor. Mas cuidado! Há que ver nas árvores que estão por aí, e que de repente encontramos, se dão frutos ou se nem sombra oferecem! E se for este o caso... a vida faz-se num deserto.
Para evitar esses percalços, o melhor é cuidar dessas árvores... se assim fizer, ninguém que gosta de si há de passar fome!

sexta-feira, julho 06, 2018

O melhor do mundo



Lembro-me do Ronaldo recém-chegado da Madeira, ainda muito novo e com os dentes tortos, mas já cheio de confiança e agressividade para se impor. Logo ali já havia qualquer coisa de diferente naquele rapaz alto e algo convencido.

Muitos, mesmo muitos adeptos, no entanto, olharam para ele com algum contragosto. O excesso de auto-confiança causa alguma repugnância aos sentimentos refinados, que homenageiam a humildade em oposição à arrogância.
Ele cresceu, entretanto, não só no seu magistral futebol, mas principalmente como homem.

Entre os dramas familiares que lhe impunha a dor de um pai que abusava dos copos e que morreu precocemente, e as pressões de afirmação da sua potencialidade que eram impostas por si mesmo, num misto de raiva, força e uma inquebrantável convicção de que podia sempre melhorar e fazer melhor, deu tudo de si, e venceu.

Nunca houve um jogador de futebol tão ambicioso, tão dedicado aos treinamentos, tão assertivo nas suas capacidades, tão concentrado na leitura do jogo e na inserção da sua magnífica inteligência dinâmica a serviço da conversão de todo esse trabalho em golos, e ainda assim sem prescindir da sua humanidade e das suas emoções e, mesmo por isso, chegar até nós como alguém que podemos estimar e nos orgulhar.

Dos muitos golos que fez, com uma regularidade ao longo da carreira que é raríssima, destaco a conversão do livre contra Espanha no mundial da Rússia. Num momento baixo da seleção nacional, intimidada pelo volume de jogo de Espanha que se impunha à Portugal para vencer a partida, surge a oportunidade de cobrar uma falta a vinte e poucos metros da baliza. A bola vai ter com o capitão de Portugal, que nunca se nega a cumprir com a sua função. Em silêncio, puxa as barras do calção para cima das coxas, faz um A com as pernas e vidra os olhos na baliza, numa pose de conjunto que deu a impressão de indução a um transe.

Nesse preciso instante, um país inteiro viveu dentro daquele homem. As milhares de gerações que existiram para que ele existisse, os valores, os mitos, os medos, os orgulhos e mesmo as mesquinharias... tudo que compõe a nacionalidade esteve presente naquele instante de redenção do orgulho nacional frente a Espanha.

E à contragosto dos seus detratores, Ronaldo converteu o livre num golo antológico. Portugal foi ao delírio, com um momento de emoção talvez só comparado ao da louca campanha no Euro 2004 ou dos momentos decisivos do Euro 2016.

A sua postura manteve-se igual no relacionamento com os demais jogadores, assumindo-se verdadeiramente como um líder, nunca se queixando, nunca assumindo postura de vítima, sempre incentivando os companheiros, mesmo quando erravam...

Por fim, já na despedida de Portugal contra o Uruguai, mostrou porquê os portugueses se auto-intitulam um "nobre povo": abraçou e apoiou Cavani para que deixasse o relvado, uma vez que o avançado que marcara duas vezes contra a seleção nacional naquele mesmo jogo havia se lesionado.

Decisivo, frio, calculista, seguro de si, honesto, leal com os adversários, amigo do seu amigo... o melhor do mundo é viver o pleno das nossas capacidades. Ronaldo fê-lo (e fá-lo) como poucos.

domingo, março 18, 2018

Toninho

Toninho e seu quinto neto 

Meu avô deu seu último suspiro quando eu tinha apenas cinco anos de idade, mas os seus olhos azuis de paz e o seu riso leve ainda existem na minha memória, como nos meus olhos e no meu riso.

A minha lembrança de primeira infância, feita da fantasia e da poesia que emolduram esses momentos para o resto da vida, recorda-o entre outras saudades de um tempo de muito amor e de cuidado. Os seus feitos como homem, no entanto, aprendidos por mim já depois que ele se tinha ido, colaboraram para fazer da memória do Toninho, cheia de êxitos retumbantes tanto em casa, como profissionalmente, uma herança incomparável.

Desafio o leitor a percorrer comigo essas façanhas e dar o seu próprio juízo, uma vez que o meu pode ser prejudicado pela óbvia ligação sentimental.

Comecemos pelas minhas próprias memórias e pela forma como ele era em casa. Trata-se de um passeio muito agradável por uma obra sentimental feita de dedicação incansável e amor incondicional à família.

Lembro do seu riso, que era frequente. Muito diferente de meu pai, que é um homem mais circunspecto, introspectivo e melancólico, o avô era alegre, e adorava brincar com os netos. O ambiente com ele já por si era animado: fez duas piscinas no São Carlos para garantir a festa dos adultos e das crianças. Embora eu tenha quase me afogado na piscina grande, a verdade é que passávamos lá uns domingos muito felizes, meu pai, seus irmãos e as famílias de cada um, e os meus avós, sempre com muita união, como era o gosto do meu avô

O Toninho também gostava de nos ter todos reunidos na sua casa na praça. Era lá que a festa continuava aos domingos, no começo da noite, quando assistíamos juntos aos Trapalhões na televisão. Também algumas vezes estávamos juntos nas tardes de sábado, quando ele gostava de arrebentar umas pipocas ou torrar uns amendoins com casca,  e dedicar-se às brincadeiras connosco.

Ele tinha imenso prazer em nos ver a sorrir. Uma das brincadeiras que fazia com os netinhos e recordo agora era uma prova de corrida entre a cozinha e a copa da casa dele. O avô ficava sentado no chão, de costas para a cozinha, onde nós estávamos à espera. Depois, mandava-nos vir um por um e, com o corrião na mão, tentava alcançar as nossas perninhas! Ele era maroto, porque começava a dar com o corrião muito devagar, como se não conseguisse nos apanhar, mas era uma estratégia sua: quando começávamos a ficar mais atrevidos e a passar mais lentamente para provocá-lo, ele vinha com tudo! Obviamente que era só para brincar, mas havia ali uma ideia de estar atento e não baixar a guarda.

Depois tenho uma única e muito querida memória de estarmos só os dois. Foi num sábado de manhã em que o meu pai levou-me lá à casa dos avós e como o avô Toninho estava pronto para ir ao sítio dele no São Carlos, pediu ao meu pai para me levar consigo. Lá fomos os dois no seu fusca branco. Chegando ao sítio, fomos à tulha de café e estivemos pelo terreiro onde ainda havia café a secar. Depois andamos por ali perto das piscinas, por um terreno inclinado em que o avô pôs-se a colher algumas abóboras. Por conta do sol forte, o avô sacou do lenço que tinha no bolso e improvisou-me um chapeuzinho, dando um nó em cada uma das pontas do lenço e pondo-o bem na minha cabeça. Quanto a ele, tinha lá o seu chapéu de palha. Estivemos sempre conversando entretidos. Acho que ele perguntava coisas da escolinha, eu estava ainda no pré-escolar. Dizia-me para me comportar e respeitar a professora, e que devia ser sempre um bom menino... Ele gostava de dar conselhos, e os podia dar. Foi uma manhã feliz, de amizade e convívio com o meu avô, e que guardo com imenso carinho.

Daqui para além surgem muitas histórias que me chegaram pela própria família e, muitas outras por gente de fora que, com a mesma consistência, quase que colocam o Toninho no altar junto dos santos mais populares. Já vamos lá chegar.

O Daniel contou-me alguns episódios interessantes, alguns deles contemporâneos ao meu tempo de convívio com o avô. Como neto homem mais velho, entretanto, ele acabou por conviver muito mais com o avô e também guarda dele uma memória de muito carinho. Entre muitas histórias, vou deixar algumas mais interessantes. Uma era habitual e passava-se com o fusquinha branco, normalmente ao voltar de São Carlos, em que o avô sempre parava quando via alguém a pé na estrada e oferecia boleia no carro. A boa vontade do avô, no entanto, não via limites, e mesmo com o carro cheio (o Daniel tinha que ir no "chiqueirinho", lá trás) ele continuava a parar e oferecer boleia, ao ponto das pessoas agradecerem e recusarem! Numa dessas vezes em que estavam mais uma vez a voltar do São Carlos, o avô deu boleia ao senhor Amaro, muito amigo do avô e foi quem me contou essa história. Ao entrar no carro, ele reparou no Daniel, que na altura usava o cabelo mais comprido. Disse então o senhor Amaro: "Toninho, o senhor tem uma netinha muito linda!". O Daniel ficou revoltado, pôs-se de pé, e com a cintura na frente da cara do senhor Amaro, abaixou os calções e disse: "Eu sou homem! Olha aqui!". O Toninho primeiro mandou-lhe levantar os calções, e depois riu-se imenso. A outra foi também com o senhor Amaro, de uma vez que o Daniel foi com outros meninos à Casa das Irmãs para "buscar" uns côcos. Alguém topou a "arte" e o Daniel saiu correndo com o saco de côcos achando que o senhor Amaro estava atrás deles, já que era ele que cuidava daquilo. Ao virar da praça para a rua Alferes Chiquinho, mete-se para dentro da Cafemac, empresa de cafés do avó, e com o avô ao fundo da loja, joga o saco ali por baixo e diz muito esbaforido: "Avô, estou fugindo do senhor Amaro!", mas o senhor Amaro estava ali à frente, reunido com o avô que, diante daquilo, não sabia se ria ou se pedia desculpas ao homem.

Dou um passo largo atrás e recordo as memórias familiares mais antigas. São muito lindas as memórias que me chegaram da sua juventude. Uma delas é da relação com a mãe dele, a Dona Maria Martins. O avô era ainda adolescente e foi recrutado para fazer o treinamento militar no Rio de Janeiro, compondo a força expedicionária brasileira na II Guerra Mundial. Ao contrário de alguns rapazes da nossa terra (um deles foi vizinho do avô na rua Alferes Chiquinho), o avô não fugiu à luta. A bisavó Maria Martins, no entanto, passou muito aperto e ficava aflita com a possibilidade do Toninho ir para a guerra e lá perecer. Escrevia-lhe então umas cartas muito longas, em que dizia que rogava à Virgem Maria e a todos os santos para que o protegessem, que tivesse muito cuidado e que não se metesse a fazer atos heróicos... Só quem recebe amor e se sente amado é capaz de dar amor e de amar!

O avô era corajoso, mostrou-o muitas vezes na vida, mas não era tolo. Quando vinha de folga à terra, levava de volta para o Rio de Janeiro queijos, doces e cachaça para oferecer ao comandante militar. No fim das contas, o avô fez o treinamento de praça completo, mas a guerra acabou e ele nem precisou ir lutar na Itália... para o bem de todos nós, seus descendentes!

Aqui chegamos ao ponto mais importante da vida do Toninho, sem dúvida nenhuma. Parece que foi desde umas festas de Santa Rita que ele ficou a saber que o Sr. Domingos Ferreira Rios tinha uma filha muito bonita e muito prendada, chamada Adalgiza. Pediu então ao pai da moça para lhe fazer a corte. Não posso dizer bem como foi essa paquera, mas a avó um dia disse que ele vinha a cavalo até a casa deles e ficava do lado de fora à espera de ser convidado... o namoro à antiga era assim!

De todos os sucessos do avô (foram muitos... precisaria de um livro para contá-los), juntar o seu destino ao da minha avó foi o maior. Mulher de fibra, vinda de muito bom berço, equilibrada e de invulgar visão, a Adalgiza não esteve atrás do avô, mas ao seu lado. E ele ao lado dela. Os dois viveram um grande amor, feito também de grandes sacrifícios e tortuosas provações, e estiveram juntos até o fim. Muito do êxito comercial do avô explica-se pelas qualidades de perseverança, disciplina, organização e ambição da avó, embora o avô tivesse também as suas influências domésticas nesse campo.

O avô veio de uma família com tradições de iniciativa relevantes. A sua avó Augusta descendia de Fernão Dias Paes, e o seu pai já era naquele tempo um empreendedor de muito êxito. O bisavô Maximiano, que também era espirituoso e gostava de soltar fogos nas festas de Santa Rita, produzia uma cachaça muito conhecida. O negócio foi muito bem sucedido, e ainda hoje existe pelas mãos de um outro bisneto do bisavô Miano, o meu primo Marcelo. Ora bem, os exemplos de êxito devem ter despertado no avô aquela ambição de enriquecer, e ele fez muito por isso.

Inicialmente, o Toninho começou a trabalhar com o Sr. Juquinha do Vale, transportando café com a sua tropa. A avó costurava para fora e teve a ideia de que o avô começasse a ser ele mesmo a comprar o café, ao invés de só fazer o serviço de frete. O avô aceitou a sugestão (como muitas outras que viriam ao longo da vida) e, arranjando os próprios clientes, passou a ser ele mesmo a comprar o café para beneficiar e depois revender. A avó também ajudou nessa parte, perguntando às clientes da costura se os maridos tocavam alguma lavoura, e foi daí que o negócio do café começou.

Com ele, o avô fez muito dinheiro ao longo da vida, mas nem por isso era de esbanjar, antes pelo contrário. Chegou até mim a sua fama de homem poupado, do tipo que ficava na praça à espera de arranjar uma boleia para ir à cidade vizinha, e assim poupar o dinheiro da condução. A razão disso é que o avô sabia que os recursos são uma dádiva do trabalho e são conseguidos com a bênção de Deus. Para ele, desperdiçá-los quando se poderia poupar seria um desrespeito ao próprio esforço e ao fundamento da propriedade de servir ao homem, não o contrário.

A verdade dessa proposição está no seu caráter quanto aos que precisavam de ajuda. Nunca se negou a ajudar ninguém, o que lhe angariou uma fama de ser um homem de boa vontade, tornando-se padrinho de batismo de mais de cem alminhas. Quando alguém lhe pedia dinheiro para comprar um medicamento caro, ou ajudar com alguma despesa de saúde, dizia logo que sim, mas fazia sócios para a empresa: ia ao encontro dos outros que também poderiam ajudar e pedia que também colaborassem, cada um com um pouquinho, para todos juntos poderem comprar ou pagar pelo que era preciso. A ideia de envolver os outros ainda tinha (e tem!) uma grande vantagem: ajuda a desenvolver um espírito de comunidade, de amizade cívica, em que há respeito entre as pessoas, algo que o avô sempre trabalhou para defender e promover.

Muito por isso, não tolerava injustiças e nem abusos com os mais fracos. Contou-me a Elzita, que trabalhou na nossa casa muitos anos e também para o meu irmão, que ainda cedo na sua vida, o avô salvou-a de uma surra de corrião que levava do patrão. Dizia ela que trabalhava num sítio e que o marido era retireiro de leite. Pelo que percebi, numa manhã o marido esqueceu-se de levar o latão até onde passava o caminhão do laticínio e o leite azedou... Indo à casa do retireiro, o patrão encontrou a Elzita e começou a tirar satisfações, mas a pobre da mulher (uma menina de dezoito anos na época) não sabia de nada... O patrão irritou-se ainda mais, apanhando a mulher pelo cabelo e batendo-lhe com o corrião... Nisso chega o Toninho, que comprava café a esse homem. Vendo a cena, sacou do revólver e mandou-o parar. Disse ao homem que o que ele fazia era uma covardia e que se quisesse bater em alguém que fosse em quem pudesse se defender. Colocou a Elzita no carro, foi atrás do marido dela e explicou o que tinha acontecido. À tarde mandou lá um caminhão para fazer a mudança deles para um outro sítio que o avô já lhes tinha arranjado. A humanidade cristã esteve sempre em primeiro lugar, não só da boca para fora, mas nas atitudes.

Era essa a mesma lógica no apoio que sempre deu às Festas de Santa Rita, em que ia todos os dias, colaborando com os leilões e ajudando em tudo o que podia para apoiar a Paróquia. Mais uma vez recorro às memórias do meu primo Daniel, sempre com muitos pormenores, especialmente dessas festas em que o avô o levava à "barraquinha de Maio". Naquelas noites, punham-se os dois a jogar bingo e o Daniel a beber o seu café com leite. Tudo com muita simplicidade e poesia, um bocado como a vida que o Toninho fez para si.


Falei antes das provações e dificuldades. Não foram poucas, mas me vou limitar a alguns factos evidenciadores. Os meus avós tiveram oito filhos. Entre o primeiro e o segundo, a diferença de idade era de apenas um ano e vinte dias! Na casa deles no São Carlos só foi haver água encanada depois que nasceu o meu pai, que está pelo meio da escadinha... Eletricidade então, nem sei dizer quando foi que tiveram, mas ainda deve ter demorado algum tempo a mais.

Com muito trabalho, empenho e dedicação, venceu-se tudo. Mudaram-se para a cidade e foram morar numa casa onde até hoje vive a minha avó. Dessa época em que os filhos já eram jovenzinhos também há algumas histórias interessantes. Como a do meu pai, ainda adolescente, a bater com a porta bravo porque o avô não queria lhe dar dinheiro para sair e gastar com as moças. Também há a história do rodízio do jipe do avô, que é muito engraçada. Eram muitos rapazes em casa e queriam sair todos com as namoradas, mas só havia um automóvel: o jipe verde com o parabrisas dobrável que era igual aos da II Guerra. A solução do Toninho foi óbvia: cada dia, um de vocês vai sair com o jipe. E assim foi. O meu pai arranjou um jeito de contornar a regra e comprou uma motocicleta para si, inclusivamente foi a primeira moto na cidade, causando grande alvoroço entre as meninas! Ainda assim, o jipe teve um uso bastante intensivo, tanto que um dia tentou se vingar do Toninho: quando ele ia para Santa Bárbara, foi atravessar um córrego e virou de rodas para o ar... Graças a Deus, o avô saiu ileso.

Já não foi assim, infelizmente, com o meu tio Marco António, que morreu ainda muito moço, logo depois de se casar, num acidente de caminhão que também levou a vida de um primo dele. A avó diz que a pior dor que já passou na vida foi a de perder um filho. O Toninho devia concordar, afinal, foram pais imensamente amorosos e dedicados, que viviam para os filhos.

Quando meu pai casou, além de arranjar a casa, o avô comprou os móveis todos e pôs tudo do que havia de melhor. Como fez para o meu pai, fez para todos os outros, não só com presentes de casamento, mas também encaminhando a cada um deles na vida o melhor que podia.

Ali mesmo na Alferes Chiquinho, para além do negócio do café que foi passando para o meu tio Max, o Toninho ajudou os filhos com outros negócios, e todos conseguiram prosperar.

São verdadeiramente admiráveis as suas capacidades de realização e disciplina, fundamentais para executar o plano: deixa ver se arranjo uma loja para cada um aqui perto de mim, e assim ficamos todos próximos. Premeditado ou não, a verdade é que os filhos todos tem casa a distância de uns 100 metros uns dos outros, praticamente todos na mesma rua. Mesmo a minha tia que mora em Viçosa, mais à frente ela e meu tio acabaram por comprar uma casa por ali.

A morte, no entanto, não permitiu que o Toninho gozasse por muito tempo os frutos da sua vida de trabalho e dedicação. Com problemas cardíacos (que na nossa família são quase tão comuns quanto as carecas), o avô foi ao Rio de Janeiro fazer um cateterismo. A operação foi de manhã, e em si correu até bem. O avô almoçou e foi se deitar para descansar. Logo ao início da tarde, no entanto, começou a passar mal e um ataque cardíaco fulminante levou-o para sempre de nós. Tinha apenas 62 anos.

Segue-se aqui um velório em sua casa, em que recordo claramente o seu caixão na sala, com os pés para a porta e no ar uma tristeza muito grande. Naquela manhã, o meu pai chorou à minha frente pela primeira e única vez na vida, e logo que se apercebeu da minha presenta, retirou-me de perto do caixão (eu me apoiava na ponta dos pés e me inclinava ali para dentro para tentar ver se era mesmo o avô). Levou-me lá para a varanda de dentro e disse que tínhamos de estar sérios. Eu já tinha percebido essa parte, mas era por demais surreal imaginar que nunca mais veria o meu avô, aquilo não cabia na minha cabeça de criança.

Nos anos que passaram, a memória dele permaneceu sempre muito elevada. Recordo agora dos mendigos que iam lá bater à porta da casa da minha avó e sempre encontravam um prato de comida - algo que o meu avô sempre fez questão de lhes oferecer. Houve ainda, penso que no máximo dois anos depois do avô ter morrido, um senhor que bateu à porta a perguntar se ele estava em casa, obviamente gente de fora. A minha avó só conseguiu dizer que não estava... Coube à minha mãe dar-lhe a notícia da morte dele. Pelo que diz a minha mãe, a minha avó juntou as mãos em oração e pediu que a sua própria mãe, a saudosa bisavó Elmira, estivesse com ela naquele momento. Não foi fácil para ela. Perder o seu parceiro na vida foi um golpe muito duro, como também foi, na devida proporção, para todos que o amavam e gozavam da sua amizade.

As longas décadas da ausência do nosso Toninho, no entanto, serviram para transformar a dor da perda na doçura da saudade e no imenso orgulho da sua memória.

O homem gentil, firme, ambicioso, cheio de amor e de alegria que nos deu a vida, que nos transmitiu o seu caráter e o seu exemplo, vive também em nós todos um pouquinho.

Da minha parte, a sua memória serviu (e serve ainda hoje) para ponderar sempre as atitudes mais corretas, para ter força e recordar sempre a importância fundamental da família e do dever de ajudar os que precisam.

Deixo o leitor fazer o seu juízo, fico com o meu. Foi a 18 de Março de 1924 que veio ao mundo o homem mais bem sucedido que eu alguma vez conheci.

sexta-feira, janeiro 05, 2018

Ó capitão! Meu capitão!




Ó Capitão! Meu Capitão! Finda é a temível jornada,
Vencida cada tormenta, a busca foi laureada.
O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro,
Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero.
 

Mas ó coração, coração!
O sangue mancha o navio,
No convés, meu Capitão
Vai caído, morto e frio.

Ó Capitão! Meu Capitão! Ergue-te ao dobre dos sinos;
Por ti se agita o pendão e os clarins tocam teus hinos.
Por ti buquês, guirlandas... Multidões as praias lotam,
Teu nome é o que elas clamam; para ti os olhos voltam,
 

Capitão, querido pai,
Dormes no braço macio...
É meu sonho que ao convés
Vais caído, morto e frio.

Ah! Meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso,
Meu calor meu pai não sente, já não tem vontade ou pulso.
Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída.
E lá vem ela em triunfo da viagem antes temida.
 

Povo, exulta! Sino, dobra!
Mas meu passo é tão sombrio...
No convés meu Capitão
Vai caído, morto e frio.


Walt Whitman, in: "Recordações do Presidente Lincoln”, tradução de Luciano Meira

Aquele grande homem, no seu ocaso, fragilizado e diminuído pelo combate impossível que travou, vai finalmente descansar. Olhos marejados, suspiros profundos, gente cabisbaixa e nas mãos as contas do rosário, apertadas uma a uma entre o polegar e o indicador, como que para não deixar escapar a vida, em vão... Na imagem final que vai deixar aos que estiveram presentes, fica essa réstia pálida em representação da grandeza daquelas longas décadas em que caminhou pela terra, firmou o passo e deu o exemplo.
Levantava cedo, beijava a mulher, saia para trabalhar. Não vivia só para si, também gostava de ajudar, tentava colaborar, tinha as melhores intenções. Também errava, como todos que se propõem a fazer alguma coisa, mas não se enganava, sabia muito bem para onde é que estava a ir, e o que queria da vida. Com ímpeto suave e persistência implacável, avançou pela vida como um imparável colosso que tudo vence e a todos protege.
Deu amor, fez filhos, deixou amigos e lembranças guardadas na sala dos tesouros do espírito.
Tantas vezes vasculho a memória à procura daqueles momentos que já se foram. Reproduzo, como se fosse num filme, cada gesto, cada sorriso, lembro-me das palavras, e em silêncio balbucio, como se ainda fosse a criança que tentava alcançar o seu queixo com meus dedinhos pequenos...
Tão grande herança, tão grande herança esse homem deixou. Quanto amor derramado por aquelas mãos que incessantemente construíram um mundo próprio, com ideias próprias, e sonhos próprios, onde nós e tantos outros que partilharam do seu convívio fomos convidados a morar. Cada vez que é preciso tomar uma decisão, a moral própria convoca a moral do morto: "O que ele faria?"
As heranças não se contam só pelos alqueires de terra, ou pelas casas, ou dinheiro aplicado… Todas coisas pequeninas em vista do grande porvir. A herança que contará então é a da memória. Na pujança e na disciplina para o trabalho, na retidão da palavra dada, na coragem de correr o risco, na frieza para aplicar a justiça, lá está o homem morto, afinal vivo.
Se a cena final, em que o corpo sem vida deitado num caixão cheio de flores, provocou choro e luto, não deve agora deixar de ser recordada como um convite para honrar aquela vida determinada, com mais vidas determinadas.
Pois o dia passa e vem a noite. Agora o dia é nosso. Podemos sair por aí e ver mundo. Podemos dar beijos apaixonados e escrever poemas. Podemos lançar olhares e dar gargalhadas... E tudo que o morto quer é que nós o façamos. Ele completou o seu ciclo, a nós cabe fazer o nosso, com coragem para viver e cultivar na memória aquela vida que já não há, mas ainda há... em nós.
Nada é mais bonito que viver no pensamento de quem nos ama. Imagina que depois de dezenas de anos da tua morte, teus filhos e netos buscarão na lembrança a tua presença. Dali, como um quadro pintado num tempo esquecido, mas que ainda emociona, tu também emocionarás...
Penso que assim é porque o amor não morre. Ele faz a grande e perigosa jornada, cumpre o objetivo, traz para casa o prémio, e quando dividido, multiplica a vida.

sexta-feira, dezembro 29, 2017

Jeito mineiro de amar


Depois de muito tempo em que o verbo esteve no pretérito imperfeito das minhas próprias limitações, volta ao infinitivo do horizonte presente: amar à nossa moda.
Amor que vi nas rútilas ameias nos olhos anciãos dos meus avós, na resignação e na teimosia (cada qual na sua vez) nos olhos dos meus pais, e hei de ver um dia nos verdes olhos de esperança dos meus próprios filhos.
Aqui não há declarações. As palavras valem pouco ou nada quando se trata de um sentimento fundado na própria razão da vida. O que se diz tem de ser com o olhar, e só assim se sabe mesmo se um mineiro ama ou não.
Dá cá a mão - diz o sentimento reservado, a espreitar e a sorrir comedidamente. Anda comigo para além dos grandes arcos da verdade e entra cá para dentro. No âmago daquele ser, um mundo secreto espera pelo visitante que, incauto, distrai-se pelo inusitado do que não vem cá para fora, e deixa de reparar nas pequenas marcas e fissuras que lá dentro fizeram a feição e o temperamento.
O amor mineiro revela-se, portanto, nessa profunda dicotomia entre o sonho e o trágico.
Do alto das suas montanhas, esse puro amor quer proteger e amparar. Os ódios e as injustiças do mundo não são para ele formas naturais, mas sim produtos de sentimentos menores reservados para os cantos escuros da vida e, assim, incapazes de interferir no seu trajeto sobranceiro, a indicar o rumo da vida. Ama com grande liberdade e profundidade: em toda a extensão do seu peito há um nome tatuado no lado de dentro, escrito pelo bater do seu coração apaixonado. Na sua imensa ilusão, dá pancadas torpes e fortes, marcando fundo o seu sonho, exigindo partilhar o seu encantamento pela beleza do mundo, ou morrer de amor.
Do fundo dos brejos das almas, onde a sua ambição comanda e o seu pragmatismo abre estradas onde antes não havia nada, o amor perece à mercê da espera. O mineiro tem um plano: quer vender seus queijos, precisa de apanhar uma condução para Belo Horizonte, fez amizade com um sócio potencial, rezou para que a Virgem Santíssima lhe dê a bênção para fechar o negócio. Quer muito, e de tanto querer deixa à margem de si mesmo o que tem de mais bonito, justamente porque não o divide com ninguém. Amparado na sua inabalável convicção de que é preciso poupar para o amanhã, sacrifica o hoje no altar das certezas frias, as mesmas que lhe negarão beijos e abraços, e que irão de mão dada com outro, conforme o seu jogo de oferta e procura.
Fosse o visitante mais avisado, compreendendo essa brutal circunstância que nem toda a gente tem o cuidado de entender, talvez ele pudesse fazer o caminho sinuoso que leva até o coração do mineiro.
Qual o veio sonhado, esse coração abre-se à ilusão de pés fincados no chão, e o sonho se realiza.
Penso que para tanto colaboram alguns cuidados e atitudes. Primeiro, há que ter em conta o seu arrepio às precipitações: nada de rompantes por capricho, ou palavras inopinadas: a ponderação, ou melhor, o seu primo aparente, o silêncio, valem ouro (e todos sabemos como o mineiro gosta de ouro). Depois, é fundamental trazer um tanto de encanto, de deslumbramento pela vida, de ilusão um tanto feita de ambição - quem não acredita em si mesmo e não sente a necessidade de se pôr à prova não pode amar à mineira. Por fim, há que escolher com o coração aberto, sem medos, quem nos possa amar. A coragem é ingrediente essencial à mistura. Medo, toda a gente tem... se não tem não é gente. A diferença está no que se faz com o medo e é aí que esse amor exigente pede a sua maior prova, a necessidade de se acreditar e de dar de si incondicionalmente.
Passados pelos arcos dos olhos, visitados os sonhos e as tragédias, testado este nobre e complexo coração, resta ao visitante deixar de o ser para, afinal, ir morar lá dentro do mineiro.
Convém que escolha o seu lugar entre as coisas belas e os tesouros, entre amor à terra, à família e a Deus. Familiarizado com essa tríade sagrada, sossegado quanto às limitações desse espírito sempre pronto para vencer com o carisma dos seus gestos simples e a pujança do seu trabalho discreto, o agora residente vai se dar por satisfeito ao descobrir dentro do outro, ponderado e resiliente, um correspondido amor, também ele, à mineira.

quinta-feira, junho 09, 2016

A alvorada da Nova República

Daqui de longe, na nossa Coimbra antiga, eu tento acompanhar o que se vem passando no cenário político brasileiro, com todas as inevitáveis implicações que estes factos acarretam na economia e mesmo na cultura nacionais.
A primeira impressão (sim, impressão, pois tendo como fonte a comunicação social, mesmo que seja imparcial, é sempre um contato em segunda ou terceira mão com a realidade) que tenho é que nada disso é mau, nem triste, nem é sinal de ruína da nossa ordem constitucional.
É doloroso, isso é claro, mas não significa que não deva ser visto com o grande valor simbólico que faz levantar desde tantas convulsões.
As demais impressões são, portanto, de uma ponderação no significado desses eventos, e não deles em si mesmos.
O impedimento da Presidente Dilma Rousseff, que ainda será decidido pelo Senado Federal, é um sinal de que o presidente da república já não tem aquela majestade de que gozavam os presidentes da República do café-com-leite, ou das didaturas do Estado Novo ou Militar. O impedimento do Presidente Collor de Melo já tinha deixado isso claro, embora não tenha sido tão enfático quanto agora porque Collor não dispunha de qualquer base de apoio política.
Obviamente que não é positivo afastar uma presidente eleita pelo voto direto, no entanto, dadas as circunstâncias em que está a ser processada, os crimes de que é acusada parecem estar diretamente ligados à péssima situação económica do Brasil nesse momento, o que todos os brasileiros conseguem sentir na pele.
À volta da questão principal, estão questões acessórias, mas que são da maior importância. Um ex-presidente da república que é feito Ministro de Estado por razões várias, mas não propriamente coincidentes com o interesse público, um Ministro de Estado da Justiça que faz insinuações de ameaça à Polícia Federal, um Advogado Geral da União que, deixando de lado a sua elegância pessoal, abraça uma defesa por ideologia político-partidária, instrumentalizando um órgão federal pensado para defender a União Federal, e não propriamente a Presidente da República.
A movimentar todo esse panorama imensamente sensível, está a operação Laja-Jato da Polícia Federal de Curitiba. Despoletada desde uma investigação sobre corrupção na Petrobrás, a força-tarefa da operação tem utilizado do novo mecanismo da delação premiada para obter espantosas evidências probatórias contra figuras de primeira linha da administração da pretolífera estatal e mesmo dos Governos Federais desde 2003.
A perda de mandato do Senador Delcídio do Amaral por ter tentado subornar um dos delatores, aparentemente em cumprimento de orientações do Partido dos Trabalhadores de que era filiado, foi apenas uma das consequências propriamente fantásticos desta operação.
Há dois dias, no entanto, uma das mais poderosas cúpulas políticas do Brasil foi atingida de frente pelo pedido de prisão pelo Procurador Geral da República Rodrigo Janot ao STF contra o ex-presidente José Sarney, o Presidente do Senado Renan Calheiros, o Presidente Interino do PMDB Senador Romero Jucá, fundamentado em evidências de que estariam a conspirar para enfraquecer e esvaziar a operação Lava-Jato.
Outros eventos que estão também vinculados a esse momento devem ser lembrados: a iniciativa do Promotor Dallagnol, coordenador da força-tarefa do Ministério Público no âmbito da operação Lava-Jato, em entregar ao Congresso Nacional um pedido de alteração de lei contra a corrupção desde a iniciativa popular também indica o mesmo caminho.
Outro símbolo que não se deve perder (este de enorme estatuto moral): as faixas verde-amarelas amarradas às árvores em frente à Polícia Federal em Curitiba, os laços verde-amarelos com que foram reunidas as mais de 1,5 milhões de assinaturas em favor do projeto de lei com as 10 medidas anti-corrupção.
Tudo isso é a alvorada da Nova República que foi anunciada por Tancredo Neves.
A nossa ordem constitucional não está a cambalear, ela está a afirmar-se. Não há ruína político-institucional no Brasil, o que estamos a ver é uma interpolação de regimes para além da constituição escrita, é a constituição a impor-se às velhas práticas da conveniência e da corrupção que se achavam imunes aos princípios. É em boa medida uma interpolação de gerações com mentalidades diferentes.
Filhos da Nova República, Dallagnol e seus pares não cresceram propriamente numa ditadura. Foram educados sob os princípios democráticos da presente ordem constitucional que tenho certeza que irão defender a qualquer custo.
De um lado, a geração e a mentalidade que está a ser vencida, em que um Ministro de Estado da Justiça, oriundo do Ministério Público, ameaça a Polícia Federal, de outro a geração que condena essa mesma mentalidade e quer fazer valer a Constituição Cidadã, propondo leis anti-corrupção de iniciativa popular e implicando criminalmente uma das mais poderosas cúpulas políticas do país, que pensava que os princípios constitucionais não se aplicavam a eles.