Isso de pintar abstrações pode ser defensável sob vários aspectos estéticos, de outro tipo de sensibilidade ou conforme se queira defender, entretanto não há abstração que seja tão sutil quanto os retratos para mostrar a realidade pretensamente como ela não é, fingindo que a retrata como é.
O quadro Bathing de Monet transmite-me isso: acho que não vou encontrar no mundo beira de cais com reflexos tão lindos.
Assim como os reflexos das pessoas que Monet pintou tão magistralmente não foram nunca reflexos de ninguém, há várias outras simulações que acabam por bastar a si mesmas, como dos atores que figindo que se amam conseguem emocionar as donas de casa, ou dos treinamentos de incêncio para quebrar o tédio das aulas de geometria analítica e finalmente o açúcar como substituto às autênticas alegrias para liberar as substâncias orgânicas que acalmam e trazem conforto.
Não me sai da cabeça o famoso 'Mito da Caverna' de Platão ao falar desse assunto. O grande filósofo grego viu a maioria da humanidade condenada a uma infeliz condição. Imaginou (no Livro VII de "A República", um diálogo escrito entre 380-370 a.C.) todos presos desde a infância no fundo de uma caverna, imobilizados, obrigados pelas correntes que os atavam a olharem sempre a parede em frente. O que veriam então? Supondo a seguir que existissem algumas pessoas, havendo ainda uma escassa iluminação vindo do fundo do subterrâneo, disse que os habitantes daquele triste lugar só poderiam enxergar o bruxuleio das sombras daqueles objetos, surgindo e se desafazendo diante deles. Era assim que viviam os homens, concluiu ele. Acreditavam que as imagens fantasmagóricas que apareciam aos seus olhos (que Platão chama de ídolos) eram verdadeiras, tomando o espectro pela realidade. A sua existência era pois inteiramente dominada pela ignorância (agnóia).
Na mesma medida, nossa exposição continuada às simulações pode cegar, fazer com que se tome por verdadeiro algo que, na origem, é simulado. Isso explica muita coisa, como por exemplo, por que algumas mulheres não podem ser amadas, mesmo que alguém queira amá-las: na verdade nunca receberam amor verdadeiro e não suspeitam do que seja. Quando finalmente lhe oferecem esse sentimento ela não pode reconhecê-lo, pois só recebera simulações, como os homens acorrentados no fundo da caverna não reconheceriam como um homem se vissem sua figura normalmente, mas apenas se visse a sua sombra.
Dá arrepios pensar nos efeitos provocados pela ignorância acompanhada do vício de uma simulação, mas está mais presente do que se imagina, como na cortesia dos comerciantes, recepcionistas de hotel e taxistas, ou nos sorrisos de um político em campanha, ou na face contraída de quem acusa ou defende num tribunal com paixão pela vitória, antes de ser pela justiça: todos simulam e nós apreciamos suas simulações, pois são parte integrante do nosso modo de vida, que inclusive, no aspecto do trato social, deixam as coisas mais dóceis.
Entretanto, parafrasendo meu professor de literatura ao falar dos escritores engajados numa literatura sem conteúdo, há que saber se prefere-se as remelas ou os olhos. Na mesma medida há que saber se é suficiente dar 'bom dia' às sombras, ou às pessoas que são suas donas, saber se prefere-se os reflexos na água simulados numa pintura ou ir junto a margem olhar para o próprio reflexo e compreender a beleza de descobrir-se e ao mundo.