Antes de ler o livro de Autran Dourado chamado "Uma vida em segredo" entabulava pensamentos de que tratava-se de um livro que discutiria alguma sorte de introspecção, ou então, alguma vida secreta! Algo interessante de se considerar ou emocionante de se ler se fosse também inteligente.
Li rapidamente o livro, um bom romance na verdade, mas nada do que esperava, talvez porque não houvesse nada oculto nele, nada do que eu imaginava e aí está o ponto.
O bom nome de batismo do romance, entretanto, ainda retumba no pensamento às vezes, principalmente quando algo pouco habitual revela as personalidades, aí sim desabrocham as vidas secretas.
Como foi da vez em que visitando um advogado no domingo, descobri que sua grande paixão era a horta do quintal: lá cultivava cebolinha, alface, pimentão, tomates, couve entre outras hortaliças. Tudo muito bem cuidado. Perguntei, talvez para brincar, se não confiava nas alfaces que se vendem no supermerados ou feiras, pelos agrotóxicos que são usados, e ele disse que também ele usava alguns! Gostava da horta porque lembrava-lhe o pai lavrador e enfim por amor à terra.
Questiono-me se não é assim que vivem as nossas sombras, a sonhar que podemos fazer o que por uma razão ou outra estamos impedidos, no todo ou em parte, de fazer. Talvez a sombra desse advogado nas varas criminais não acompanhasse verdadeiramente a leitura atenta dos autos de algum processo, ou as vociferações de defesa em que se clamava a piedade pessoal do magistrado, sua consideração pelo gênero humano e por fim ao próprio Deus. Talvez essa sombra estive a sonhar em desprender-se daqueles gestos para, disfarçadamente, imitar na sua expressão na parede ou no canto do corredor, alguém com uma enxada, a limpar em volta das alfaces vermes ou outras pragas. Talvez as sombras estejam secretamente ansiando pela revelação de uma vida em segredo.
Fato não questionável, entretanto, é o de que esse advogado adora defender acusados de crimes e talvez essa custosa ocupação seja recompensada nas horas de relaxamento na horta. As sombras aguardam sem muita ansiedade.
Outra vida secreta é a dos adúlteros, essa danosa à sociedade, na medida em que a promessa de fidelidade é descumprida, mas foquemos nos sentimentos verdadeiros do adúltero: desejo por outra mulher, prazer de estar com ela ou a aventura de parecer que não tem responsabilidades. Tudo isso é sonhado pela sombra dele ao entrar no quarto de casa e dizer "boa noite" à esposa acordada à espera. Talvez se sua mulher conseguisse desviar os olhos de cólera da camisa amaçada para a sombra fosca na parede conseguisse perceber mais evidências do que suspeita como atividades extralaborativas do marido. Mas as sombras não são percebidas por sentimentos violentos, temos aí então outra característica delas: para lê-las é preciso não levar nada muito a sério, as vidas em segredo não gostam dessa seriedade dos donos de sombra!
Talvez se houvesse qualquer coisa de sombra na "uma vida em segredo" o romance poderia me ter impressionado mais. Nos segredos, nas sombras e nos sonhos, há coisas insuspeitas, surpreendentemente bem guardadas nessas palavras imaginadas, abstrações do mundo dos donos de sombra. Mas, talvez por essa mesma essência, dificilmente nossas sombras revelam-se ou revelam-nos, silenciosamente sonham por nós.
quinta-feira, outubro 27, 2005
quinta-feira, outubro 20, 2005
A compaixão do canto lírico
A apresentação do grupo de canto lírico da Faculdade de Filosofia de Vitória será hoje à noite. Os participantes ensaiaram durante a semana toda, quem mora no centro da cidade, ao menos nas redondezas, pode atestar a regularidade dos ensaios!
Acho bom que as pessoas queiram aprender a cantar canto lírico. É bonito e além disso fazem bem a si mesmos, já que, conforme o ditado, "quem canta seus males espanta", e fazem bem aos outros, já que é agradável ouvir (desde que afinado e de boa qualidade a voz).
Lembro de um colega da faculdade que passou por algum trauma, algo como fim de namoro ou morte de parente querido, e trancou a faculdade, isolou-se em casa e não apreciava nem o sol da manhã. Pois matriculou-se na aula de canto lírico e advinhem: continuou triste, mas ao menos um triste que sabia cantar bem e alegrar os outros, o que o tornou menos triste no fim das contas.
Levou 2 anos, eu acho, mas voltou a faculdade e à vida normal de um rapaz de vinte e poucos anos, afinal, havia lirismo de novo.
Na sua volta é que ficamos amigos, conversávamos sobre tudo, inclusive canto lírico. O engraçado é que conversávamos sobre canto lírico indo para a faculdade e no meio do ônibus começava o jovem Kaiser a soltar seus agudos e graves, mas nunca sem antes fazer o aquecimento.
Os traumas desse meu amigo do canto lírico também eram interessantes, e eu, talvez por algum impulso mórbido, fazia com que ele explicasse tudo e ficava mesmo surpreso de como ele reagia contra as adversidades, como quando a namorada o deixou por outro e ele contava como que uma piada que a outra pessoa já conhece! Previamente sem esperar fazer rir, mas de bom humor e boa disposição.
Estranhamente eu achava normal um rapaz de 1,90 e bastante barbado gostar de canto lírico. Lembro quando fiquei sabendo e fui na sua primeira apresentação, uma ópera de autor brasileiro, já não me lembro quem, mas era algo moderno e ousado, saiu-se muito bem o meu amigo, arrancou suspiros das calouras e foi o orgulho da rapaziada da sua turma aquele dia.
Hoje, por conta de ficar sabendo dessa apresentação em Vitória, lembrei das suas histórias. A última que fiquei sabendo era muito boa: de como ele conhecera uma namorada. Estava o rapaz ao celular e numa linha cruzada conheceu a moça! Essa todos na faculdade duvidavam, e eu também duvidava, parecia só mais uma das estórias do Kaiser, mas depois conheci a menina, uma loira baixinha e com um sorriso lindo, doida por ele.
Afinal, o canto lírico faz bem à alma do mundo.
Acho bom que as pessoas queiram aprender a cantar canto lírico. É bonito e além disso fazem bem a si mesmos, já que, conforme o ditado, "quem canta seus males espanta", e fazem bem aos outros, já que é agradável ouvir (desde que afinado e de boa qualidade a voz).
Lembro de um colega da faculdade que passou por algum trauma, algo como fim de namoro ou morte de parente querido, e trancou a faculdade, isolou-se em casa e não apreciava nem o sol da manhã. Pois matriculou-se na aula de canto lírico e advinhem: continuou triste, mas ao menos um triste que sabia cantar bem e alegrar os outros, o que o tornou menos triste no fim das contas.
Levou 2 anos, eu acho, mas voltou a faculdade e à vida normal de um rapaz de vinte e poucos anos, afinal, havia lirismo de novo.
Na sua volta é que ficamos amigos, conversávamos sobre tudo, inclusive canto lírico. O engraçado é que conversávamos sobre canto lírico indo para a faculdade e no meio do ônibus começava o jovem Kaiser a soltar seus agudos e graves, mas nunca sem antes fazer o aquecimento.
Os traumas desse meu amigo do canto lírico também eram interessantes, e eu, talvez por algum impulso mórbido, fazia com que ele explicasse tudo e ficava mesmo surpreso de como ele reagia contra as adversidades, como quando a namorada o deixou por outro e ele contava como que uma piada que a outra pessoa já conhece! Previamente sem esperar fazer rir, mas de bom humor e boa disposição.
Estranhamente eu achava normal um rapaz de 1,90 e bastante barbado gostar de canto lírico. Lembro quando fiquei sabendo e fui na sua primeira apresentação, uma ópera de autor brasileiro, já não me lembro quem, mas era algo moderno e ousado, saiu-se muito bem o meu amigo, arrancou suspiros das calouras e foi o orgulho da rapaziada da sua turma aquele dia.
Hoje, por conta de ficar sabendo dessa apresentação em Vitória, lembrei das suas histórias. A última que fiquei sabendo era muito boa: de como ele conhecera uma namorada. Estava o rapaz ao celular e numa linha cruzada conheceu a moça! Essa todos na faculdade duvidavam, e eu também duvidava, parecia só mais uma das estórias do Kaiser, mas depois conheci a menina, uma loira baixinha e com um sorriso lindo, doida por ele.
Afinal, o canto lírico faz bem à alma do mundo.
terça-feira, outubro 18, 2005
O mar avança contra o continente
No litoral sul do Espírito Santo o mar avança contra o continente: fortes marés, centímetro a centímetro, trazem o mar pra mais perto da terra. As ressacas mais fortes deixam à mostra as raízes dos coqueiros do calçadão, testemunhas fatais dessa "travessura" do mar.
Os meninos que brincam na praia não se importam muito, tudo continua bonito: brilha o sol, a água é quente e limpa, há ondinhas bacanas para brincar e ninguém parece estar sofrendo. Alguns lamentam, claro! Os donos de pousadas à beira mar desconversam: sempre foi assim.
Sempre foi natural ser diferente de antes, talvez nem sempre para as praias e suas faixas de areia, mas sempre para as pessoas.
As raízes dos coqueiros à mostra são mais que uma prova de que elas existem mesmo, de que o mar avança ou do que mais se quiser constatar desse exemplo. Assim parece-me o meu rosto de manhã às vezes, como aquelas raízes: sou diferente do que achava que era, embora fosse presumivel que um dia chegaria a esse estado. Sem complicar muito, ninguém é sempre o mesmo, não é? E conforme se conheça a si próprio, é possível prever onde os caminhos escolhidos hoje vão dar amanhã.
Com o mar avançando, fatalmente iria sobrar para as raízes dos coqueiros e se quisermos ser mais ousados, também vai sobrar para todas as avenidas junto a faixa de areia de agora até uns 50 anos! Claro, antes disso o poder público local deve providenciar um aterro, ou coisa que o valha para conter o atlântico sul.
Fatalmente os que conhecem os amigos de uma maneira, logo adiante espantam-se com as suas atitudes e surpreendem-se com suas posições, maneiras de falar, sua disposição de vida.
Era possível prever que de dentro do coração de lembranças e véus roxos a matiz temerária dos seus assassinatos, a curvatura dos sorrisos que viriam do absurdo que se tornaria a vida, tranformariam todas as certezas em bases para perguntas mais sofisticadas, suposições de suposições emoldurariam os dias seguintes, e um azeite prático substituiria o sangue quente que um dia pulsou por aqueles prados. Nem melhor, e nem pior, apenas diferente do que foi.
É preciso compreender que para deixar à mostra as raízes dos coqueiros primeiro o mar teve que chegar até lá e insistir em ser mar.
Os meninos que brincam na praia não se importam muito, tudo continua bonito: brilha o sol, a água é quente e limpa, há ondinhas bacanas para brincar e ninguém parece estar sofrendo. Alguns lamentam, claro! Os donos de pousadas à beira mar desconversam: sempre foi assim.
Sempre foi natural ser diferente de antes, talvez nem sempre para as praias e suas faixas de areia, mas sempre para as pessoas.
As raízes dos coqueiros à mostra são mais que uma prova de que elas existem mesmo, de que o mar avança ou do que mais se quiser constatar desse exemplo. Assim parece-me o meu rosto de manhã às vezes, como aquelas raízes: sou diferente do que achava que era, embora fosse presumivel que um dia chegaria a esse estado. Sem complicar muito, ninguém é sempre o mesmo, não é? E conforme se conheça a si próprio, é possível prever onde os caminhos escolhidos hoje vão dar amanhã.
Com o mar avançando, fatalmente iria sobrar para as raízes dos coqueiros e se quisermos ser mais ousados, também vai sobrar para todas as avenidas junto a faixa de areia de agora até uns 50 anos! Claro, antes disso o poder público local deve providenciar um aterro, ou coisa que o valha para conter o atlântico sul.
Fatalmente os que conhecem os amigos de uma maneira, logo adiante espantam-se com as suas atitudes e surpreendem-se com suas posições, maneiras de falar, sua disposição de vida.
Era possível prever que de dentro do coração de lembranças e véus roxos a matiz temerária dos seus assassinatos, a curvatura dos sorrisos que viriam do absurdo que se tornaria a vida, tranformariam todas as certezas em bases para perguntas mais sofisticadas, suposições de suposições emoldurariam os dias seguintes, e um azeite prático substituiria o sangue quente que um dia pulsou por aqueles prados. Nem melhor, e nem pior, apenas diferente do que foi.
É preciso compreender que para deixar à mostra as raízes dos coqueiros primeiro o mar teve que chegar até lá e insistir em ser mar.
segunda-feira, outubro 17, 2005
Em meio papel
Os títulos de crédito, documentos que garantem direitos creditícios em relação a outrem (na promissória do sacado em relação ao sacador, por exemplo) estão desaparecendo em meio papel, tanto mais no príncipe dos títulos de crédito brasileiros, a duplicata mercantil.
Isso, não em virtude da falta de vigor do instituto, mas em virtude das novas tecnologias que balisam as relações mercantis: tudo é feito em meio magnético, desde a emissão ao protesto, não há necessidade de se colocar no papel esse importantíssimo título.
Nessa tendência, perece um dos requisitos dos títulos de crédito, que é a cartularidade, ou seja, o título material, sua constituição física, palpável.
Apesar de todas as facilidades, muitos ainda guardam ressalvas à descartularização, receosos de que possam ser cometidas fraudes e os mais tradicionalistas, embirram por tradição mesmo.
Talvez na mesma medida possamos tomar a comunicação por cartas e correio eletrônico, ou seja, quem mais escreve cartas estando disponível o meio eletrônico de comunicação?
Ontem, entretanto, recebi uma carta longa do meu querido amigo Roberto, que está morando em Curitiba.
É bem verdade que foi uma carta resposta a uma outra minha, mas enfim, era papel escrito e enviado pelo meu amigo, mais pessoal, trazia sua letra e sua assinatura, enfim, havia naquilo um tanto maior de humanidade, impossível de negar.
Em meio papel, escreveu sobre Curitiba com menos acidez, embora ainda ressabiado pela "soberba" dos curitibanos, a violência dos gatunos e ladrões viciados em drogas e a impertinência dos motociclistas. Toda metrópole guarda elementos maus, Curitiba não é diferente, mas acho que a soberba, os ladrões e motociclistas curitibanos sejam particularmente diferentes na medida de que Curitiba é uma cidade diferente das outras.
Foi esse caráter sui generis daquela capital que motivou a migração de Roberto, entre outras variantes. E corajoso e audacioso, partiu para lá, passando por adversidades e sofrimentos, mas já agora, depois de uns meses, já tem uma certa familiaridade por aquele estado dos pinhais.
Relatou num post scriptum notícias de Juiz de Fora, ao que me fez sorrir um pouco e deixou idéias fortes e senti mesmo sua presença.
Já havíamos trocado impressões por via eletrônica, mas as cartas guardam-se entre as coisas de maior valor, testemunhos de próprio punho de amizade e consideração.
Talvez chegue o dia em que os correios não vão mais aceitar cartas particulares, assim como no direito cambiário é provável que não se mitigue e morra a cartularidade. Mas pelo lado do direito seria questão de praticidade, ninguém se afeiçoa aos títulos de crédito, a não ser os agiotas afixionados, mas quanto às cartas... aboli-las seria mesmo pouco prático para matar as saudades.
Isso, não em virtude da falta de vigor do instituto, mas em virtude das novas tecnologias que balisam as relações mercantis: tudo é feito em meio magnético, desde a emissão ao protesto, não há necessidade de se colocar no papel esse importantíssimo título.
Nessa tendência, perece um dos requisitos dos títulos de crédito, que é a cartularidade, ou seja, o título material, sua constituição física, palpável.
Apesar de todas as facilidades, muitos ainda guardam ressalvas à descartularização, receosos de que possam ser cometidas fraudes e os mais tradicionalistas, embirram por tradição mesmo.
Talvez na mesma medida possamos tomar a comunicação por cartas e correio eletrônico, ou seja, quem mais escreve cartas estando disponível o meio eletrônico de comunicação?
Ontem, entretanto, recebi uma carta longa do meu querido amigo Roberto, que está morando em Curitiba.
É bem verdade que foi uma carta resposta a uma outra minha, mas enfim, era papel escrito e enviado pelo meu amigo, mais pessoal, trazia sua letra e sua assinatura, enfim, havia naquilo um tanto maior de humanidade, impossível de negar.
Em meio papel, escreveu sobre Curitiba com menos acidez, embora ainda ressabiado pela "soberba" dos curitibanos, a violência dos gatunos e ladrões viciados em drogas e a impertinência dos motociclistas. Toda metrópole guarda elementos maus, Curitiba não é diferente, mas acho que a soberba, os ladrões e motociclistas curitibanos sejam particularmente diferentes na medida de que Curitiba é uma cidade diferente das outras.
Foi esse caráter sui generis daquela capital que motivou a migração de Roberto, entre outras variantes. E corajoso e audacioso, partiu para lá, passando por adversidades e sofrimentos, mas já agora, depois de uns meses, já tem uma certa familiaridade por aquele estado dos pinhais.
Relatou num post scriptum notícias de Juiz de Fora, ao que me fez sorrir um pouco e deixou idéias fortes e senti mesmo sua presença.
Já havíamos trocado impressões por via eletrônica, mas as cartas guardam-se entre as coisas de maior valor, testemunhos de próprio punho de amizade e consideração.
Talvez chegue o dia em que os correios não vão mais aceitar cartas particulares, assim como no direito cambiário é provável que não se mitigue e morra a cartularidade. Mas pelo lado do direito seria questão de praticidade, ninguém se afeiçoa aos títulos de crédito, a não ser os agiotas afixionados, mas quanto às cartas... aboli-las seria mesmo pouco prático para matar as saudades.
segunda-feira, outubro 10, 2005
Sólida solidão
Dialética
É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...
Montevidéu, 1960
in Para viver um grande amor (crônicas e poemas)
in Poesia completa e prosa: "Poesia varia"
.
.
.
Esse sentimento, tão cruel e tão comum, habitualmente é tema evitado em todas as conversas: é anti-social falar de solidão, apesar dessa característica típica de ser sentida por todos, mesmo que eventualmente não. É estranho que esse aspecto deprimente só fica mesmo visível se quem é só tenta arranjar gente que lhe console por isso, para lamentar-se por não ter com quem partilhar seus pensamentos e idéias ou mesmo para contar uma piada. Mas também, no outro lado da moeda, há quem não se importa, por vezes gosta e até acha vantagem passar muito tempo sozinho: é bonito fazer tipo, mas às estátuas sobram as fezes dos pombos. A auto-piedade contra os lamentos de solidão também não é boa, o orgulho costuma reclamar dela, mas no fim das contas é triste sentir-se sozinho, não vamos apelar dessa verdade.
Para esclarecer tantos paradoxos, acho boa a noção do que significa solidão, o sentimento na sua inteireza: é o sentir-se sozinho, mesmo tendo companhia. Diria até que não ser entendido e não ter quem entenda é a grande solidão. Como se diz popularmente "sozinho na multidão". Apavora a impressão de que não há quem nos entenda, que ninguém se importa, que não há intimidade possível para falar os mais profundos assuntos.
Comunicar ao mundo que tão breve é a vida para esvair-se em comodismos, em ver a tarde ir embora, ou a matar-se num serviço técnico (embora útil à sociedade), pode não ser possível, as pessoas não entendem bem essa pressa. Tampouco tentar explicar o remorso por partir deixando atrás de si gente que ama sinceramente, ou ter que submeter-se às ordens de gente menos capaz, ou tentar amar e não conseguir: há uma absoluta solidão nesses picos de paixão, ninguém pode completamente livrar-nos de enfrentar conosco mesmo as reflexões dessas condições.
Há coisas que são mais anti-sociais que outras de serem admitidas. Como a dificuldade em ver o belo na vida ou reconhecer nela um sentido puro. É normal o sofrimento e a adversidade desbotarem juntos a beleza de tudo, deixando do que era tristes esqueletos, armações de ferros retorcidos do que foi o símbolo da beleza, do afeto, do motivo essencial: mais um símbolo de um deboche do que o que fora, do que um símbolo do que é belo e significativo, do que faz a vida significativa.
Há então essa grande angústia em comunicar que vive-se por teimosia, ou que vive-se porque abdicar da vida é anti-social demais: é o cúmulo da anti-socialidade! Mas há milhões e milhões (não vou me arriscar nos bilhões, mas é bom lembrar que são feitos de mil milhões cada) de pessoas que vivem por teimosia, a contemplar o horizonte de suas vidas numa esperança verdadeiramente santa de que virá algo bonito a fazer nascer seu sorriso, alguém que lhes reconheça a angústia e ao mesmo tempo seja capaz de calá-la, alguém para fazer-lhes, verdadeiramente, companhia e contar algumas piadas engraçadas.
É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...
Montevidéu, 1960
in Para viver um grande amor (crônicas e poemas)
in Poesia completa e prosa: "Poesia varia"
.
.
.
Esse sentimento, tão cruel e tão comum, habitualmente é tema evitado em todas as conversas: é anti-social falar de solidão, apesar dessa característica típica de ser sentida por todos, mesmo que eventualmente não. É estranho que esse aspecto deprimente só fica mesmo visível se quem é só tenta arranjar gente que lhe console por isso, para lamentar-se por não ter com quem partilhar seus pensamentos e idéias ou mesmo para contar uma piada. Mas também, no outro lado da moeda, há quem não se importa, por vezes gosta e até acha vantagem passar muito tempo sozinho: é bonito fazer tipo, mas às estátuas sobram as fezes dos pombos. A auto-piedade contra os lamentos de solidão também não é boa, o orgulho costuma reclamar dela, mas no fim das contas é triste sentir-se sozinho, não vamos apelar dessa verdade.
Para esclarecer tantos paradoxos, acho boa a noção do que significa solidão, o sentimento na sua inteireza: é o sentir-se sozinho, mesmo tendo companhia. Diria até que não ser entendido e não ter quem entenda é a grande solidão. Como se diz popularmente "sozinho na multidão". Apavora a impressão de que não há quem nos entenda, que ninguém se importa, que não há intimidade possível para falar os mais profundos assuntos.
Comunicar ao mundo que tão breve é a vida para esvair-se em comodismos, em ver a tarde ir embora, ou a matar-se num serviço técnico (embora útil à sociedade), pode não ser possível, as pessoas não entendem bem essa pressa. Tampouco tentar explicar o remorso por partir deixando atrás de si gente que ama sinceramente, ou ter que submeter-se às ordens de gente menos capaz, ou tentar amar e não conseguir: há uma absoluta solidão nesses picos de paixão, ninguém pode completamente livrar-nos de enfrentar conosco mesmo as reflexões dessas condições.
Há coisas que são mais anti-sociais que outras de serem admitidas. Como a dificuldade em ver o belo na vida ou reconhecer nela um sentido puro. É normal o sofrimento e a adversidade desbotarem juntos a beleza de tudo, deixando do que era tristes esqueletos, armações de ferros retorcidos do que foi o símbolo da beleza, do afeto, do motivo essencial: mais um símbolo de um deboche do que o que fora, do que um símbolo do que é belo e significativo, do que faz a vida significativa.
Há então essa grande angústia em comunicar que vive-se por teimosia, ou que vive-se porque abdicar da vida é anti-social demais: é o cúmulo da anti-socialidade! Mas há milhões e milhões (não vou me arriscar nos bilhões, mas é bom lembrar que são feitos de mil milhões cada) de pessoas que vivem por teimosia, a contemplar o horizonte de suas vidas numa esperança verdadeiramente santa de que virá algo bonito a fazer nascer seu sorriso, alguém que lhes reconheça a angústia e ao mesmo tempo seja capaz de calá-la, alguém para fazer-lhes, verdadeiramente, companhia e contar algumas piadas engraçadas.
quarta-feira, outubro 05, 2005
À espera da chegada
Voltei mais cedo do almoço ontem e perto do edifício onde fica o escritório notei a mesma moça dos dias anteriores, desta vez à janela de uma casa vizinha, com um lenço azul claro na mão e os cabelos lisos e pretos soltos.
Olhou para mim de um jeito muito aflito e desviou em seguida o olhar, não procurava pelo meu rosto e estava ansiosa para achar o que procurava.
Sem me dar conta do absurdo, parei e encarei sua expressão de estranhamento com um meio sorriso. Bastante mais à vontade do que poderia supor, perguntei se estava bem, ao que ela secamente disse que sim, sem agradecer por alguém se importar. Segui o trajeto ordinário, humildemente.
Hoje no mesmo lugar já não estava, como um sopro tinha ido. Estramente aquela aflição dela tinha se tornado parte do cenário da rua naquela hora, como se fosse impossível compreender a vida ali destituída daquela ansiedade apaixonada na espera de alguém que não vem...
Talvez alguém mais perspicaz que eu a tenha convencido a deixar daquilo e se acalmar, talvez tenham chamado a ambulância do hospício, talvez tenha morrido de agonia por esperar e talvez ainda, consideremos com fé, tenha chegado o rapaz, aí sim, fica bem a coisa toda.
Esperas me causam náuseas. Dificilmente esperei contente por alguma coisa, mesmo boa. Enquanto cresce o risco na medida em que se toma atitudes ativas ao invés das passivas, eu arrisquei a pele umas vezes, digamos, para saber o resultado que haveria de ser.
Há gente que cultua a prudência, entoa o ditado popular de que "o seguro morreu de velho", mas há também risco na espera. O risco das formas cadavéricas apossarem-se do rosto e dos músculos do corpo, transformando uma linda juventude numa velhice de lamento. Tudo bem, exagerei imensamente, mas a mim o radicalismo da imagem passa bem a noção de se por a esperar insanamente: fica-se à mercê de outras pessoas ou condições, à mercê de eventos que não são senão prováveis enquanto não verificáveis de fato.
Desejei do fundo do coração que o rapaz não tivesse chegado nunca, que a moça lhe tivesse odiado imensamente por isso e, mesmo a custa de descompor o cenário não bonito da hora do almoço na sua rua, ido procurar ler algum romance realista ou então tomar uma cerveja, afinal a verdade é uma só: faz calor na primavera e não se deve perder tempo com angústias secas na garganta.
Olhou para mim de um jeito muito aflito e desviou em seguida o olhar, não procurava pelo meu rosto e estava ansiosa para achar o que procurava.
Sem me dar conta do absurdo, parei e encarei sua expressão de estranhamento com um meio sorriso. Bastante mais à vontade do que poderia supor, perguntei se estava bem, ao que ela secamente disse que sim, sem agradecer por alguém se importar. Segui o trajeto ordinário, humildemente.
Hoje no mesmo lugar já não estava, como um sopro tinha ido. Estramente aquela aflição dela tinha se tornado parte do cenário da rua naquela hora, como se fosse impossível compreender a vida ali destituída daquela ansiedade apaixonada na espera de alguém que não vem...
Talvez alguém mais perspicaz que eu a tenha convencido a deixar daquilo e se acalmar, talvez tenham chamado a ambulância do hospício, talvez tenha morrido de agonia por esperar e talvez ainda, consideremos com fé, tenha chegado o rapaz, aí sim, fica bem a coisa toda.
Esperas me causam náuseas. Dificilmente esperei contente por alguma coisa, mesmo boa. Enquanto cresce o risco na medida em que se toma atitudes ativas ao invés das passivas, eu arrisquei a pele umas vezes, digamos, para saber o resultado que haveria de ser.
Há gente que cultua a prudência, entoa o ditado popular de que "o seguro morreu de velho", mas há também risco na espera. O risco das formas cadavéricas apossarem-se do rosto e dos músculos do corpo, transformando uma linda juventude numa velhice de lamento. Tudo bem, exagerei imensamente, mas a mim o radicalismo da imagem passa bem a noção de se por a esperar insanamente: fica-se à mercê de outras pessoas ou condições, à mercê de eventos que não são senão prováveis enquanto não verificáveis de fato.
Desejei do fundo do coração que o rapaz não tivesse chegado nunca, que a moça lhe tivesse odiado imensamente por isso e, mesmo a custa de descompor o cenário não bonito da hora do almoço na sua rua, ido procurar ler algum romance realista ou então tomar uma cerveja, afinal a verdade é uma só: faz calor na primavera e não se deve perder tempo com angústias secas na garganta.
domingo, outubro 02, 2005
Lança cheia de tripas
Li um poema que fazia uma metáfora com dar-se conta da paixão e ter na barriga uma lança que, ao atravessar o corpo, tinha do outro lado a ponta cheia de tripas. Que violência, pensei comigo. Interpretei como que a constatação da morte certa, saber-se atravessado pela lança e saber-se apaixonado era o mesmo que ver a realidade: não havia muito o que fazer.
É absurdo, quando se está apaixonado, pensar que o resto do mundo possa não estar, não viver sob aquele estado, porque não racionalizado em fato e conseqüências, é bastante bom haver alguém que redima de tudo e que simbolize as áureas esperanças. Gabolices para desprender sorrisos, beijos demorados, apertados abraços de despedida, como isso dói! O poema me explicou: é uma lança varada de tripas. Mas não se morre repentinamente, é um processo gradual.
O nome de mulher costuma viajar pelos pensamentos, e as sílabas cadenciadas tornam-se notas de todas as músicas e mesmo sendo constantemente repetidas, repetidas ao infinito, não há monotonia. Nessa harmonia, pensar em encontrá-la é todo o conforto e é provável que aquele agradável cheiro de ar úmido antes da chuva fique em volta. Mil idéias para fazê-la sorrir, e dois mil sorrisos seus contidos para não deixá-la tão confiante! O que é dado sem que se dê algo em troca, sabe-se bem, não tem valor!
Falar de amor sem tentar dar a ela a angústia das suas conclusões: há um céu aberto para os nossos olhares, um céu de parque a nos testemunhar. E assim, entre braços e abraços, entre beijos e planos impossíveis, entre súbitas afinidades tolas que ganham a dimensão do predestinado e do destino traçado por Deus onipotente, bem, justamente ali tem-se uma lança a varar o corpo, mas não se tem noção dela, isso acontece depois. Nem por isso condeno uma coisa ou outra... Para julgar e condenar temos juízes e solteironas desocupadas. Limito-me ao drama do momento: acho que não há maneira mais plena para se saber da própria morte.
Olhos vermelhos, chorando de felicidade numa madrugada em segredo, quantas vozes interiores não acusaram de ir por um caminho inevitável e insensato? Talvez a tristeza grande seja desacreditar a paixão ao passo que se sabe dominado dela, esse anti-Cristo do amor é mesmo mau e finca seus punhais sem dó, apunhalando pela frente, qual um amigo de verdade. Mas para ter a lança cheia das suas próprias tripas, é preciso ir além, é preciso ir além da dor, é preciso confessar os pensamentos e entre rangidas de dentes, punhos cerrados e beijos enlouquecidos no reencontro, brilhe firme a certeza de não haver morte melhor e que vida seguinte nenhuma valeria a negação daquilo.
É absurdo, quando se está apaixonado, pensar que o resto do mundo possa não estar, não viver sob aquele estado, porque não racionalizado em fato e conseqüências, é bastante bom haver alguém que redima de tudo e que simbolize as áureas esperanças. Gabolices para desprender sorrisos, beijos demorados, apertados abraços de despedida, como isso dói! O poema me explicou: é uma lança varada de tripas. Mas não se morre repentinamente, é um processo gradual.
O nome de mulher costuma viajar pelos pensamentos, e as sílabas cadenciadas tornam-se notas de todas as músicas e mesmo sendo constantemente repetidas, repetidas ao infinito, não há monotonia. Nessa harmonia, pensar em encontrá-la é todo o conforto e é provável que aquele agradável cheiro de ar úmido antes da chuva fique em volta. Mil idéias para fazê-la sorrir, e dois mil sorrisos seus contidos para não deixá-la tão confiante! O que é dado sem que se dê algo em troca, sabe-se bem, não tem valor!
Falar de amor sem tentar dar a ela a angústia das suas conclusões: há um céu aberto para os nossos olhares, um céu de parque a nos testemunhar. E assim, entre braços e abraços, entre beijos e planos impossíveis, entre súbitas afinidades tolas que ganham a dimensão do predestinado e do destino traçado por Deus onipotente, bem, justamente ali tem-se uma lança a varar o corpo, mas não se tem noção dela, isso acontece depois. Nem por isso condeno uma coisa ou outra... Para julgar e condenar temos juízes e solteironas desocupadas. Limito-me ao drama do momento: acho que não há maneira mais plena para se saber da própria morte.
Olhos vermelhos, chorando de felicidade numa madrugada em segredo, quantas vozes interiores não acusaram de ir por um caminho inevitável e insensato? Talvez a tristeza grande seja desacreditar a paixão ao passo que se sabe dominado dela, esse anti-Cristo do amor é mesmo mau e finca seus punhais sem dó, apunhalando pela frente, qual um amigo de verdade. Mas para ter a lança cheia das suas próprias tripas, é preciso ir além, é preciso ir além da dor, é preciso confessar os pensamentos e entre rangidas de dentes, punhos cerrados e beijos enlouquecidos no reencontro, brilhe firme a certeza de não haver morte melhor e que vida seguinte nenhuma valeria a negação daquilo.
Corações a sangrar
Vou poupá-los de nomes, já que a cena por si mesma causa náuseas suficientes. Para o sumário conhecimento da cena: uma tesoura de escritório enterrada dez centímetros no lado esquerdo do peito de uma moça de vinte e um anos. A pele bastante clara e o sangue combinados eram de uma mórbida beleza, agora lembrada não tão bela quanto a fez pelo choque de cores, situação e significados. Tudo lido depois num laudo policial sobre o crime: um faxineiro apaixonado, louco de desejo e com o sangue pleno de álcool. Um bilhete datilografado trazia um falso recado do namorado da moça e tinha as letras em negrito com os dizeres: "Meu anjo, Nessa noite tenho que voltar para casa mais cedo a fim de ter com a minha mãe que sofreu um acidente, nada sério, não se preocupe, mas por isso não vou poder te apanhar no escritório. Lamento. Deixo-te beijinhos imensos e muito carinho deste que te adora de paixão. Emílio." Pelo recado a moça, que chamamos aqui Marta, não foi à porta do prédio esperar pelo namorado que também não estranhou o fato dela lá não estar, costumava ir para casa mais cedo quando ia trabalhar fora. Insistiu para levá-la a faculdade o faxineiro que bisbilhotara o bilhete. Negado o convite. Refeito com juras de amor. Negadas igualmente. Uma vez mais refeito acompanhado de súplicas, gritos e caretas de desespero. Erguia-se frente a moça um rosto de pele seca e enrugada, mais de cinqüenta invernos ajudaram a curtir os vincos fundos e feios do seu rosto, aprofundados na insegurança, na lascívia solitária, na imundície da própria solidão. Talvez a gentileza dela seja amor, pensara mais de uma vez. Como era diferente o seu dia quando ela dizia "bom dia" sorrindo para ele! E que agradável era o seu perfume! Não sabia bem qual o nome, mas era doce como das putas que ele pagava tão mal para livrar-se um pouco da angústia dos domingos à tarde, era doce mas não era vulgar como as meretrizes, trazia um traço de infância, um berço familiar, uma gentileza e um afeto tão originais que os quis para si como nada antes e faria tudo, absoltamente tudo! Ninguém lhe subjugaria daquele vez, não o ameaçariam, nem confundiriam o seu nome nem chama-lo-iam "meu bom senhor" por não sabê-lo. Chamo-me, consideremos aqui, Miguel, disse de si para consigo ao sentar-se em frente a um computador com o plano já traçado. Depois de iludi-la com o bilhete, iria levá-la a faculdade, mas não! A lição daquela noite era sobre ele, de como ele era especial e querido, de como deviam mesmo estar juntos e se amar, pois sem ao menos ter tido antes a chance de ouvi-lo, era já o amava, já era gentil e atenciosa, que se diria depois daquela noite especial entre os dois! Não havia como falhar. Na ira de ser novamente rejeitado, na angústia que sentiu por isso e os resultados da repulsa por si mesmo, estava decidido a não recuar, apanhou uma tesoura, a mesma que usou para recortar o bilhete da inteira folha de ofício em que o imprimira, e levantou-a com a mão direita, acima da cabeça, dando ordem de ir, ao que a moça, talvez por pânico, talvez por indignação frente aquele absurdo, não teve outra reação que não a de lhe dar um belo tapa no rosto, deixando pequenos ferimentos causados pelas unhas, na véspera pintadas, pela última vez de rosa claro, cor favorita do namorado para elas. Tesoura no peito de Marta, olhos esbugalhados de Miguel, coração a sangrar, de ambos.
Subscrever:
Mensagens (Atom)