quarta-feira, julho 13, 2011

O que faz falta



Desde já, digo que o Zeca Afonso faz muita falta, e quanto sentido há nisso.
Há uns dias atrás fui ver o vídeo desta canção e havia lá um comentário algo como isso: "que canção sem sentido... se o pão que comes sabe a merda basta ir comprar outro pão!". Uma ideia que é sintomática da ignorância que anda solta por aí, a espalhar a sua miséria.
Fiquei a pensar comigo mesmo se é preciso estar tudo escrito nos formulários das obrigações inescusáveis para as pessoas conseguirem perceber bem o que se trata.
O canalha que escreveu este comentário de certeza não sabe o que é viver sob uma ditadura. Não sabe o que é ter suas ideias controladas, a sua palavra controlada, a sua vontade controlada. Não sabe o que é ser mandado para o meio do mato em África para lutar e morrer numa guerra estúpida.
A mim faz imensa impressão os 13 longos anos da guerra colonial. Penso nas famílias desfeitas, cá e lá, penso nos colonos portugueses que foram obrigados a largar tudo e retornar, penso no sofrimento, na viuvez, na doença, na mutilação.
Tudo o que poderia ser resolvido de outra forma se houvesse diálogo, se houvesse respeito pelos colonizados, se houvesse consideração pelo futuro deles, se houvesse humildade. Nada disso existe na ditadura. Para ela só existe afirmação, força bruta e uma visão unilateral e obsessiva do destino manifesto das coisas - o que vai variar de acordo com o específico tipo de ditadura.
Não só o pão sabia a merda nesses tempos, mas o vinho, a carne e o próprio ar que se respirava. Nenhum homem verdadeiramente livre poderia viver contente assim. E a verdadeira liberdade, tanto naquele momento como agora, consiste na coragem de reconhecer a tirania, a vilania e a opressão da vida e não aceitá-las, a dizer, não querer comer do pão que sabe a merda.
O rapaz que fez o comentário não sabe que não havia outro pão, senão o que sabia a merda para comer. Ele não sabe que é por causa da coragem de homens como o José Afonso, que ousaram dizer e propagar o que pensavam, que hoje já se pode comer outro pão que não o que sabe a merda.
E por isso, meus caros amigos, o que faz falta, e sempre vai fazer, é a consciência das coisas, da brutalidade do mundo, da mesquinhez das condições a que nos sujeitam, um total circo de opressões que só pode ser descortinado quando nos darmos conta do que faz falta: sensibilidade para perceber, humildade para aprender com a história, coragem para agir.
Este grito imemorial há sempre de ecoar do coração dos justos: o que faz falta é avisar a malta do que faz falta!

quinta-feira, junho 30, 2011

Minha juventude

Sim, é o tempo a passar. Acontece todos os dias quando o sol se levanta e depois e umas boas horas de trabalho, estudo, contemplação ou esquecimento, ele se põe novamente para em seguida nascer e começar tudo de novo.
Quando isso acontece mesmo muitas vezes a ponto de termos alguma experiência da vida e aprendermos como essa dinâmica de coisas serve para nós próprios acontece uma coisa curiosa: acaba-se a juventude.
Não quer isso dizer que ficamos imediatamente decrépitos, como velhos à beira da morte. Não, claro que não. Preserva-se o rosto leve e fresco, os músculos rígidos, a beleza quase intocada. Mas já não somos jovens, passamos à categoria dos simplesmente adultos.
Segue-se agora o faro, o instinto, de alcançar um sentido maior que nós mesmos: fazer fortuna, fazer carreira, pagar a renda, casar com a moça bonita, comprar uma casa, dar de comer aos filhos, fazer eleger o nosso deputado, arrancar umas verbas para o concelho, fazer-se vereador e autarca, comprar umas herdades, publicar uns trabalhos, inventar um prato típico, fazer Portugal suspirar de amor, encher os corações de esperança, lidar com amargura, rebater a inveja, espalhar a compaixão, sufocar a discórdia, construir os templos da virtude e as masmorras dos vícios, viver plenamente, como homem pleno de forças, direitos e obrigações, senhor do seu destino e dos destinos dos outros e do seu país.
Corremos as avenidas da nossa vida, como o nosso sangue pelos nossos braços: buscam depressa o seu destino imediato, com força e propósito, mas é-lhes difícil antever o grande giro que se repete constantemente até a derradeira e principal avenida: a do sentido de tanto esforço.
Ao nosso sangue pulsante, faz todo sentido levar e trazer o que leva e traz: vida e que já deu vida. Para nós, trata-se de levar esperança e colher por vezes frustrações e amarguras, o que antes de sê-los, também foi vida.
Como um grande titã a mirar-me do alto do seu Olimpo de glória, vejo o destino a conduzir-me por avenidas de delícias, que as são simplesmente porque não me foram impostas: são as que de livre-vontade pude escolher seguir e sigo com fé. Se além da montanha desses caminhos há traiçoeiras emboscadas ou maldosos vilões, não duvido: esperam-lhes o meu punhal sob a capa, atento e desembainhado, pronto para a defesa. Hei de vencer, mesmo que seja numa aparente derrota onde possa colher a lição do vitorioso amanhã que chegará a mim.
De tudo isso, vigoroso e longo caminho da vida, saltam-me os vislumbres da beleza que enlaçam-me o coração com tal poder, que giro como um menino encantado, iludido com a fantasia, com o coração preso ao seu propósito.
E talvez por isso, por esse pouquinho menino que não se deve nunca renunciar, o homem forte a levantar a espada saiba que não há amargura e nem frustração, não há derrota ou prostração, a vergar-lhe o espírito: dentro dele queima um fogo ancestral. Arde em si o mistério da poesia que ele não há nunca de negar, custe o que custar.
Por mais que custe acreditar, essa é a verdade, meus bons amigos: a este homem-menino-poeta, nenhuma porta do mundo pode se fechar. Ele tem as chaves todas, todos os corações do mundo amam a ele com devoção, ninguém lhe negará entrada.
Todavia, talvez seja possível dizer que nessa sua glória, nesse seu encanto, nesse seu deslumbramento tão atento à realidade e às condições brutas da vida (uma improvável associação de mundos) também existe uma réstia de gosto amargo em tanta sabedoria.
Sabe-se só, sabe-se insuficiente, sabe-se herdeiro e legatário de um mundo imperfeito, sabe-se frágil e por vezes impotente ante à rudeza das coisas. Mas também sabe-se rijo e determinado.
Todas as avenidas do mundo abrem-se a ele. Que passe, que faça edificar, que ponha abaixo, que mande consolidar. Nenhuma juventude o poderá deter.

domingo, maio 22, 2011

Maio maduro

Abril tem 30 dias, maio tem 31, mas parece mais... Esses longos dias, em que escurece já tão tarde, deixa o pensamento também arrastado para mais que talvez noutra altura não fosse possível.
Maio da Queima das Fitas, com seus cantores da madrugada pelas ruas da alta, a perturbarem-me o sono, maio das longas viagens, maio da Feira de Azambuja, maio a mais não poder.
Suas longas tardes gostam mesmo é de se espalhar para além das 6 horas da tarde, mais duas, quase três.
É mesmo agora por esse mês de maio que já começam a se agitar os partidos com as eleições em julho, é já agora que o calor evoca um verão que ainda demora, ao menos para poder ser gozado, é já agora em maio que se delineia um novo ano na academia.
Lembro-me vivamente, com esse prematuro verão do fim de maio, da minha chegada à boa cidade de Coimbra, para cursar o mestrado. Lá como agora, o impulso da vida parecia levar consigo qualquer outra indisposição, não dando vez a nada a não ser o comando de gozar aquela gentil condição de preparar mas sem afobações e nem angústias.
Vêm-me o cheiro das sardinhas na brasa, o gosto do vinho de Cantanhede, a brisa morna da alta, o transpirar das tardes no árido paço das escolas.
No mesmo fluxo, emerge uma ansiedade positiva de querer ver surgir aquele tempo novo, que então não se podia adivinhar bem e que talvez agora o seu congênere atual seja mais bem talhado nos anos passados.
Faz parecer sempre uma lógica circular do tempo e da vida, que nos reconduz ao recomeço, sempre novo e diferente, no entanto. É bem capaz que seja assim porque a nossa personalidade o diz, porque pede sempre pelo mesmo, pelos mesmos caminhos e pelas mesmas pessoas, mesmo que não seja tudo exatamente o mesmo na sua individualidade, mas a similiridade acaba por buscar a si mesma.
Estive a ter uma doce leitura nas últimas semanas. "Querido poeta" é o livro de correspondências de Vinicius de Moraes. Trata-se mesmo de uma inscurção pelo coração e pela mente do poeta, durante toda a sua vida, pelas cartas mandadas e recebidas desde os anos de 1930 até a última cartinha em 1980, ano da morte de Vinicius.
Essa excessiva aproximação do privado serviu-me para admirá-lo ainda mais, para compreendê-lo, compreender a sua grande gana de se fazer ler e ouvir, seu grande empenho em fazer chegar às pessoas a sua arte, com o intuito inquestionável de dividir com os outros e não o de somar para si.
Mais ainda, a vida de Vinicius, como a minha também e a sua, meu leitor, mostra lindamente o caráter cíclico dos acontecimentos, como nós nos reconduzimos a um perene começo, sempre diferente, mas que traz em si os mesmos elementos da vida que escolhemos para nós próprios: a nossa decisão quanto ao que será do nosso amor, da nossa amizade, da nossa profissão, da nossa fé.
Na doçura de um novo momento, o bom é reconhecer nele seus constituintes passados, sem os quais não haveria, mas acho também que vale viver a sua novidade nas circunstâncias das boas surpresas e dos novos desafios, sem os quais esses longos ciclos da vida iriam dar a lado nenhum.
Tudo isso a se passar nesse nosso maio, maduro maio que teima em não acabar.

quarta-feira, maio 04, 2011

Novíssimas tranças reflectivas

Os longos anos gastos longe da Princesinha de Minas, a bela Juiz de Fora, não serviram para limar o meu amor pela cidade.
Já quase completos dois anos de ausência, o céu parecia dessa vez menos laranja e as esquinas menos ressentidas. Nos prédios e nas avenidas do centro, a mesma gente a mover aquilo para a frente, as mesmas empresas de transporte público com suas tarifas caras a ajudá-los a ir de um lado ao outro.
Juiz de Fora da minha adolescência, que não é revivada no saudosismo triste de tentar trazer de volta o que já não é e que é desmascarado na verdade mais óbvia: nem eu próprio sou o mesmo. Mas a cidade nos seduz nas pequenas sutilezas que o nosso coração não deixa escapar como ordinárias: aquele último abraço, a última volta pelo centro de madrugada, o costumeiro colorido dos nossos sábados, a contínua brisa a soprar as velhas lembranças na avenida Rio Branco.
Assim solto no meio desse redemoinho de emoções, o coração se aperta, tenta ver no tempo e no espaço aquele rapaz que deixou ali um rasto de risos e lágrimas que o tempo não tem podido fazer sumir.
Os velhos amigos dão os braços para me levar às velhas inscursões do espírito, quando leves e puros, rompemos a barreira de mistério que separa o menino da sua definitiva face de homem. Cantam a canção que inicia o rito, que põe-nos em marcha, rumo aquele mesmo sabido ideal de não deixar falhar a mão ao nosso irmão que nos aguarda para a defesa num momento de aperto. Escorrem lágrimas, dão-se gritos, mas os aviões continuarão a patrocinar a distância e os corações e mentes justifica-la-ão como já fizeram tantas vezes.
Não é um desespero, não é uma agonia sem mãe nem pai, não é o fim e nem o começo do mundo. É, isso sim, ter o coração apertado, como se pulsasse com mil pequeninos cortes a tirar dele o fluido vital que é sua razão de ser.
Entre a tristeza e a alegria de existir tanto para mim nessa boa terra de Murilo Mendes, nunca cessarão os meus pensamentos de amor filial para Juiz de Fora e fraternal para com os juizforanos.

quinta-feira, abril 28, 2011

Queda d'água bruta no peito

Num só dia pisei a rampa do Palácio do Planalto e o calçadão da praia de Ipanema. Essa grande jornada das minhas férias de páscoa, se custou ao corpo a sua taxa, ao menos entreteu o suficiente para que o peso das longas horas de viagem não me deixassem chateado.
Depois de quase dois anos, cá estou eu novamente, no seio desta terra onde nasci e que guarda, ainda hoje, a aventura e o mistério, a paixão e o sonho, estas lindas Minas Gerais da minha vida, com seus mil veios de ouro puro a deslumbrar os meus olhos e tornar mais rubro o meu sangue.
Trouxe o meu grau académico para mostrar, porque afinal é pela formalidade das razões que as coisas se explicam mais facilmente, mas o que eu trouxe mesmo vai muito além de uma dissertação de mestrado.
Comigo vieram também o fado e o sol da primavera, a maneira educada de abordar que ao mesmo tempo pode parecer bruta, os olhos postos firmes naquele pré-sorriso que o copo de vinho ajuda um pouco a formar. Um coração cheio de Portugal. Como uma queda d'água bruta no peito, faz-se notar para mim mesmo.
Talvez por isso as coisas do Brasil pareçam tão diferentes agora. Depois de tanto e tão profundo aportuguesamento, tudo parece um pouco fora de sítio: o calor, as roupas das pessoas, o modo de tratar, as confianças não dadas e que os brasileiros sempre acham que podem tomar - embora de boa-fé.
Se cá fosse ficar uns 2 meses, acho que pela quarta semana já estaria adaptado novamente a essa bossa nova daqui. Como não é o caso, quase me sinto estrangeiro no meu próprio país, onde as lembranças dos usos e dos costumes parecem sempre visões turvas de algo que no passado eu conheci, mas que hoje é diferente.
Vejo um país a levantar-se com uma força imensa. Uma nação de braços dados, quase sem religião e com valores confusos, doida para ter e se fazer notar. Uma nova América? Não, não será nunca o que os Estados Unidos são porque não fomos formados naquele protestantismo revanchista, nem temos clara a noção do nosso destino manifesto.
O Brasil se levanta com ambição. Nisso os brasileiros estão todos juntos. Mas a gênese da riqueza lhes escapa covardemente por entre os dedos: ignoram que a prosperidade anda de mãos dadas com os valores que a sociedade defende acima de tudo. Sem os valores (cristãos - na minha humilde e devota perspectiva), o que sobra é uma geleia de interesses a se devorarem uns aos outros para serem no fim enlaçados por um terceiro oportunista que lhes aproveita os esforços mal intencionados, para mais à frente também ser vítima de alguma emboscada vil.
Portugal anda melhor? Não, sinceramente não acho que os portugueses sejam anjos da providência, mas ao menos os valores ainda se fazem sentir com mais força: há o respeito pela propriedade alheia na medida que se quer que a nossa seja respeitada, há recato, há alguma sensatez e muita sobriedade nos discursos das gentes - o que às vezes passa por pessimismo, mas não é. Ninguém mais que o português deseja que as coisas corram bem, o que custa é ver a realidade e sonhar... Mas Portugal sonha e eu também sonho.
De frente para o Palácio do Planalto ou na calçada da praia de Ipanema, um mesmo e grande país a fazer-se ao mundo sem ter clara a razão dessa pretensão toda. Em Portugal, um rosto a mirar o infinito, à espera de que o gigante conte o segredo da sua pujança e desfaça o nevoeiro que há tantos séculos cobre todos os corações lusitanos.

domingo, março 06, 2011

Mas é carnaval...

Hoje não é o meu dia de sair mascarado e nem de fazer as traquinices que no meu tempo de menino eram o grande gozo do carnaval.
Digo carnaval como quem diz entrudo, não o carnaval das extravagâncias da carne, essa estupidez nunca me interessou, para mim não passa de uma grosseira coroação dos instintos que durante o resto do ano se deve repremir, portanto, é um bocado estúpido. Daí também já se vê uma diferença clara entre o carnaval das crianças e o carnaval dos adultos, coisas completamente diferentes, mas que os pequenos tendem a não compreender, como é natural.
Hoje, se calhar, fico feliz já e apenas em lembrar daquele entrudo de quando eu era puto. Dos preparativos das fantasias, das peças a pregar, dos exageros inocentes, daquilo de não ter identidade e poder exagerar nas brincadeiras sem que ficasse ninguém chateado. Talvez também isso fosse estúpido, mas pelo menos não era uma banalização dessa época antes da quaresma, como é para os ateus.
Lembro-me vivamente do carnaval dos meus oito anos quando tinha como missão, para além do meu traje de carnaval, também o dos meus primos, tínhamos de pensar no que queríamos nos fantasiar, depois as mães iam lá ver como arranjar aquilo em condições, nem sempre as mais favoráveis, diga-se de passagem.
A ideia, no entanto, era ter dois trajes de carnaval. Um dos trajes usava-se nos bailes de carnaval, que para as crianças eram matinês, sempre uma ao domingo e outra à segunda-feira, das 16 às 18:30hs, por vezes começava mais cedo. O outro traje era mesmo para o entrudo, também tínhamos máscaras, mas esse traje era mesmo de roupas velhas, coisas que já não importava rasgar ou manchar, e tanto quanto ninguém soubesse quem éramos, melhor. Isso de preservar a identidade era algo para se levar a sério, não bastava uma mascarazinha de nada, só para constar... Não senhor, era preciso cobrir bem o rosto, por vezes utilizando uma fronha velha, fazendo-lhe as aberturas necessárias para respirar e ver, e pintando-a para ilustrar a cara do "sujo", eis como chamávamos a esses mascarados e cada um desses portava uma espécie de porrete, que era para se defender dos que viessem gozar e para as peças também, como é claro. Nos bolsos levávamos farinha de trigo, uns ovos e pouco mais, de acordo com a criatividade.
Era claro que entre o baile de carnaval e a noite de entrudo eu preferia sempre o entrudo. Saíamos eu e os meus primos, sempre num grupo de 4 ou 5, e fazíamos a volta à praça todos juntos, num grupo bem unido. Por vezes encontrávamos outro grupo de "sujos" e aí podia haver guerra, mas era sempre coisa de crianças, sem grandes traumas. Normalmente também acompanhávamos a banda da nossa terra que nos dias de carnaval ainda hoje sai pelas ruas a tocar as marchinhas e a acompanhá-los saem uma boneca gigante cabeçuda a "negra Tereza" e também um senhor a empunhar uma fantasia de touro e um outro numa fantasia de mula, além de um toureiro e a grande festa é a simulação de uma tourada com esses três personagens. Nós acompanhávamos essa turma toda, sendo de alguma forma também parte dela.
Sabia bem ser criança e estar na rua a ver as pessoas do costume e estas não saberem quem éramos nós, havia ali algum gozo e por isso mesmo gozávamos com eles e víamos o que faziam quando atirávamo-lhes um ovo, ou laçávamo-lhes farinha na cara, muito bem sabiam eles que podia ser um sobrinho ou um amiguinho que estava só a gozar, por isso, por regra, nunca nenhum adulto revidava a um "sujo", o que acontecia só quando as coisas ficavam mesmo fora de controle, mas pronto, aí é porque o "sujo" em questão já era mais grandinho e também porque já devia ter tomado um copo ou dois e andava a festejar mais do que o normal.
Bons tempos que já não voltam, e não faz mal que seja assim. Sei bem que mesmo na minha terra essa tradição já não continua, ao menos já não é o que foi. Hoje é só barulheiras e cerveja e gente com pouca roupa a dançar música bahiana... not my cup of tea.
De todo jeito, meus leitores, muita água e muita alegria, além do juizinho habitual, nesses dias antes da quaresma, porque depois do carnaval a vida continua, como bem o sei.

sábado, fevereiro 05, 2011

A menina e os olhos

Estava a espera do autocarro. Estava também um colega de gorro e barba por fazer. Era feio o rapaz, mas metia-se com ela e ela até parecia gostar daquilo, embora coibisse os abusos quando ele a agarrava pela parte de trás do pescoço e a puxava para junto de si.
Era bonita a miúda. Tinha uns olhos cinzentos que pareciam ser castanhos e o cabelo, esse sim castanho, mas brilhante e cumprido. Umas maçãs do rosto bem lusitanas e boca bem feita davam-lhe o aspecto de moça das Beiras, mas sem ter a pele propriamente morena.
Fiquei a observá-los quando eu próprio me encontrava naquele insólito de depender do autocarro para ir de um lado para o outro. Mas foi um curioso parar para observar a vida.
Os dois falavam de outros colegas e de coisas um bocado tolas, do que não vale vir aqui colocar ou reproduzir. No entanto, faziam uma figura engraçada aqueles dois. Eram uma decadência muito colorida, mas ainda assim não propriamente decadente. Pensava onde é que o autocarro os iria levar: se era para casa, se era para um outro encontro, se ainda tinham esperanças de desligar daquelas tolices e ver a beleza daquela idade, daqueles poucos anos que eles tinham ali e que vai desaparecer amanhã numa forma mais madura, embora também possa ser bela.
Chegou o meu autocarro primeiro. Ela ficou a olhar-me nos olhos e o rapaz acabou por reparar no meu passar por eles. Quase sorri, mas não, não o cheguei a fazer. Ficaram lá os dois em meio aquelas brincadeiras idiotas de adolescentes.
Ainda fiquei a pensar naqueles dois por um bocado. Revi os meus momentos de rapazito pateta na procura das coisas novas, mas mais bem comportado que aqueles dois, acho eu. Hoje se calhar as coisas que eram novas naquela altura já são as do costume e as euforias manifestam-se de outras maneiras.
Faz-me falta, entretanto, aquela despreocupação com o resto do mundo, com os olhos e palavras do resto do mundo, ante o nosso maravilhar pela vida, o nosso encanto e a nossa descoberta, a nossa alegria pela liberdade e pelo sonho. Tendo que tudo isso não é exclusividade dos adolescentes, ao menos, cabe invejar-lhes o inocente desleixo com as aparecências, por vezes sem sentido, e que nos conformam a vida para dar tão pouco de volta.
É capaz que quando eu voltar a ver aqueles dois também eles já tenham desaprendido essa liberdade irresponsável que ninguém nos deixa manter quando se quer, ao mesmo tempo, ser levado a sério.

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Vem viver a vida, amor




São frias essas manhãs do início do ano, mas na friagem não há maldade e nem bondade, é como é. Segue-se o caminho de todos os dias, que também não prende e nem liberta, é simplesmente nosso e acho bem que se tire proveito da sua beleza simples, onde houver.


Dar de si, meu amigo, requer muito amor. O amor decidido e desinteressado, não como o amor dos gatos e nem como a conveniência das estações da vida, quando o amor é uma brincadeira tola e infantil.


Mas como dar, como amar, se as pessoas nem se conhecem a si próprias? É um absurdo o que anda por aí de gente a ignorar o comando socrático de conhecer a si mesmo. Por vezes, são os mesmos que desprezam a filosofia e riem dos que discutem com seriedade, essa raça da qual pertencem orgulhosamente os políticos de carreira e os magistrados que não se importam com o ideal da Justiça e, uns e outros, a contribuir para a ruína de Portugal e dos portugueses. Falta muito amor, falta muito conhecimento, falta reflexão e falta também uma metáfora para ilustrar a ideia. Então, vamos a isso.


Noutro dia, vi um guia turístico de Nova Iorque a explicar que a cidade não deveria ter como alcunha "big apple" (grande maçã), mas sim "big onion" (grande cebola), já que tinha várias camadas e não poderia ser concebida na superficialidade do Central Park ou dos arranha-céus de Manhattan. É a verdade.


Eu adoro maçãs, e cruas são muito melhores que as cebolas, mas é capaz que a comparação valha também para as pessoas, ao menos as que são interessantes, porque as outras não são nem uma coisa e nem outra, seriam qualquer coisa que desilude quando vê o que tem dentro, como um maracujá com pouca polpa.


Camada por camada, ano a ano, sobrepõem-se ideias e pensamentos de outrora enquanto novos florescem e passam a estabelecer a nova ordem. E assim, na distância do tempo, torna-se algo artificial estender a mão a quem ficou do outro lado da ponte, como que intransponível agora, que liga o aqui e o lá no tempo.


É como andar à beira do rio a imaginar a vida de Miguel Torga. Ainda ontem comemorava-se algum aniversário relativo a ele, não sei dizer se o de nascimento ou do dia que veio morar para Coimbra... Facto é que gosto muito do Miguel Torga e da forma como ele via a vida.


Poeta sereno, de expressões serenas... e que amava o sereno Mondego, que via do seu consultório no Largo da Portagem.


Acho que essas manhãs frias de Janeiro não chateavam o Miguel Torga. É capaz que ele fosse um homem prático para essas fadigas involuntárias da vida e soubesse que elas são também parte dessas camadas novas que vamos ganhando no decorrer da vida, uma vida vivida "sem angústia e sem pressa".

terça-feira, outubro 26, 2010

Hey, you!


Ando um bocado farto dos formatos repetidos, daí penso que é melhor achar que são reinvenções originais e inocentes do que foi feito antes e, por alguma sorte incrível, repetiram-se em condições semelhantes sem ser iguais no todo, já que guardariam algum frescor novo, algum brilho de descobrir por si.

Já há muito tempo ouvi dizer que a praticidade garante-nos paz de espírito, mas em verdade, os práticos são chatos e vão dar sempre ao mesmo: os resultados. Mas isso importa pouco e quem o sabe não tem paciência para explicar aos chatos.

Pensemos, no entanto, num caminho fácil: resultar é alcançar o que se procura, daí fica menos objetivo dizer-se que um resultado é um sucesso específico, já que até no fracasso pode se alcançar um resultado. Ora bem, isso até faz sentido, mas não acho que um bom tecnocrata ficaria feliz com essa perspectiva. Vamos a mais.

Doutra feita, vamos às nossas certezas e ao método socrático (relativo ao filósofo grego, não ao aldrabão de carreira). O que é bom e o que é mau? O que é certo e o que é errado? Aonde se quer chegar? Por que se vai até lá? Acho que cada um responderia de uma maneira diferente a cada uma dessas perguntas e é por isso que os resultados são conformes a nós mesmos e não a nenhum padrão pré-defenido que vá fazer feliz ao estúpido da esquina que vende um creme milagroso a ajudar o êxito das performances.

Nesse mundo que se vai perdendo à massificação do comportamento e da arte, há muita beleza, há sim que eu sei. Lá ainda se encontram os nossos poetas mortos, a pintura viva sob uma tela morta, o teatro grego dos dramas e das comédias da natureza humana e nossa verdadeira grandeza também lá está, homenageada por toda arte. Mas onde estamos nós? Ah, sim, pois é, já quase me esquecia. Estamos a perseguir objetivos...

E por viver assim perdidos, vamos um dia morrer desencontrados de nós mesmos e dos outros e sem nenhuma fatalidade, ser esquecidos.

Mas não é preciso que seja assim. É capaz que a liberdade no coração e no pensamento possa conduzir a uma boa vontade maior do mundo. E assim ele poderia nos oferecer aquilo que a cultura de massa nos incita a arrancar dele.

terça-feira, outubro 12, 2010

Viva o Rei!

...........................Estátua de Dom Pedro IV no Porto

A forma republicana não é ruim, na sua essência, nem os princípios republicanos são ruins. Mas quando falamos dos Estados nacionais, ou seja, dos países que reúnem um só povo, com uma identidade étnica, religiosa e linguística, não acredito que a república seja uma forma de estado melhor que a monarquia.

Antes de mais, porque a monarquia não é oposto da república e dos seus princípios. Na monarquia constitucional o soberano não é monarca, mas sim o povo, a quem o Rei representa. Com mais legitimidade que qualquer presidente, o Rei deve defender os valores nacionais, a sua identidade, o seu destino manifesto. Assim, a monarquia não é anti-republicana, mas sim mais republicana do que a república, uma vez que também abraça o respeito pelos ideais de igualdade entre os homens e da boa gerência dos dinheiros públicos, com a vantagem de não trazer em si a pressa das realizações com fins popularistas ou a endêmica corrupção da república.

Em Portugal e no Brasil instalaram-se repúblicas tenebrosas, assentadas na força bruta e na ignorância do povo, assassinaram um rei e expulsaram um outro que tinha servido o país por 50 anos para que morresse quase abandonado num hotel de Paris.

Nos dois lados do atlântico, a república serviu aos grupos sociais emergentes para apossarem-se do poder do Estado sem ter que dar satisfações ao fiscal real que não permitiria os seus abusos e desmandos. Foi assim que o século XX será sempre lembrado pelas estúpidas ditaduras que forçaram Portugal e o Brasil aos grilhões da obscuridade e da censura.

A forma republicana foi, portanto, um meio eficaz para iludir os espíritos que pediam mudanças mas sem, de facto, promovê-las. No Brasil tivemos o caso exemplar de Rui Barbosa, que chegou a discursar a favor da república, mas que depois de implantada à força e sem participação popular, viu que nada mudaria, pois os problemas do país não estavam no seu monarca, mas sim em questões estruturais que teriam de ser enfrentadas com trabalho e não com um covarde golpe de Estado.

Há poucos dias vimos o deprimente espetáculo que foram as festividades pelos 100 anos da república em Portugal. Mas festejar o que? As ditaduras que vieram a substituir a democracia dos tempos dos reis? A falta de liberdade de expressão que foi implantada para calar os que contestavam os desmandos? A corrupação que premiava os filhos dos chefes dos partidos e os amigos dos poderosos do aparelho estatal? Afinal, a república vem custar ao povo muito mais, incalculavemente mais do que a monarquia, com o ônus acrescido da sua ilegitimidade.

Todo o quadro fica ainda mais triste de se admirar quando recordamos que Portugal é o mais antigo Estado nacional do mundo, fundado sob a coroa de Dom Afonso Henriques, que conquistou essas terras a lutar cara a cara com os mouros invasores.

Assim como Barbosa, um dos mais destacados intelectuais brasileiros de sempre, se retratou e passou a defender a monarquia pelo resto da sua vida, também é hora desta multidão de indiferentes acordar para a realidade e banir de vez essa escumalha republicana cujo único e perene ideal é espoliar o dinheiro dos impostos ao seu próprio bem e dos seus comparsas e parentes.

Abaixo a república!

Viva o Rei!

sexta-feira, agosto 13, 2010

O poeta e eu


No fundo de mim mesmo vive o poeta, e vivi eu até há poucos dias sem o saber ou suspeitar a medida desta realidade.
Embebido no sonho, lá dentro do mundo fantástico que os sentimentos e a razão constroem para nos fazer quem somos, estive com o poeta maior para lhe criticar a arte, na infinita coragem de instrumentalizar a vida para dar passagem à poesia: o oposto do que toda a gente faz. E nesse aproximar da destruição, se calhar, é que existia a sua magnânima grandeza.
Convidou-me depois para almoçar em sua casa, e na intimidade era afinal tímido e precisava de de muito gin (por acaso não me lembro de ver nenhum whiskey) para sorrir e brincar. Eu era ali um estranho e nem compreendi bem por que me haveria de ter feito o convite, mas depois, a pouco e pouco, foi bem vista a razão: mostrava-me ele, o poeta, o caminho meu que já foi o dele e eu então percebi o porquê das decisões e num rompante imenso de lirismo, vi os rostos de toda a gente que por pouco que fosse já me tocara a alma.
O dia amanhecido foi uma identificação das novas certezas, mas da maneira doce que a falta de obrigações ou imposições conhece.
Vi com mais vigor os traços do meu avô materno nos meus próprios, no meu cabelo e no meu olhar e senti fundo as tradições daquela raça que em mim vingou mais que nos outros e que faz lembrar tempos que já vão tão longe e quando era preciso muita coragem, muita força e uma resistência brutal para que a vida não fosse um exercício de submissão que levava à morte.
Já então nenhuma das minhas decisões parecia mais despropositada e nem havia saudades, nem raivas e nem remorços de nada e nem de ninguém. Apenas uma lembrança de mim mesmo sempre mais clara e que eu não posso, mesmo agora, deixar de estranhar de todo.
Seja lá como for, a simplicidade e a timidez do poeta mostraram-me um caminho que sempre tive comigo, mas que nunca tinha tido a audácia de fazer abrir-se diante de mim, mas que está aberto para a frente, para o futuro.
A bênção, Vinicius.

quinta-feira, junho 17, 2010

Olhos nos olhos

Não diria que Deus é vingativo, como muita gente gosta de dizer. Diria que as coisas que fazemos voltam para nós mesmos, as boas e as más. Antes de acreditar que a infinita bondade e o infinito amor que é Deus são responsáveis por essas maçadas da vida, antes vale ver o caminho por onde se anda, especialmente aqueles sítios onde ao invés do sacrifício para o bem comum, foi visado só um interesse pessoal e egoístico, onde ao invés de esperança e fé, deu-se lugar ao oportunismo e a leviandade, onde a humilhação e a opressão impunham perseverança, deu-se lugar a uma desistência fraca e uma retirada em precipitação.

É um longo caminho por onde passamos, a nossa vida. Vejo-o nos gatos de rua que moram aqui em frente de casa. Se de manhã matam-se a miar pelo pequeno almoço trazido pela dona Fernanda, ao meio da tarde, quando vem o sol quente, desaparecem para algum refúgio fresco, suspeito eu, longe dessas paragens. Mas depois que o sol esmorece, voltam mansinhos a ocupar as suas posições de costume. Fazem da vida essa rotina de estar juntos, nem sempre a lamber-se, mas certamente sempre a contar uns com os outros. Um é chefe e dá as ordens. Os outros obedecem ou então levam na cabeça, que é para aprender de uma vez.

Na sua charmosa bestialidade, os gatos em muito mostram o nosso comportamento (com vantagens notáveis, é verdade: a liberdade, a graça, o desprendimento, a sutileza, etc.). De certo que ignoram de todo a existência de Deus e no alto da sua consciência animal, o certo e o errado levam ao limite do convívio social e da sobrevivência na sua sociedade patriarcal. Todos se submetem as ordens do macho dominante e cada um tem uma função nessa sociedade, porque sabem que juntos tem chances melhores e porque são animais sociáveis, também é verdade.

Ser "esperto como os gatos" talvez também passe por aí. Saber que os verdadeiros vencedores são todos "team players", ou seja, não há êxito verdadeiro quando se mira só o próprio umbigo: vão faltar apoios, vão faltar motivos, vão faltar alegrias.

Sintomático de que o homem (e também a mulher, por que não?!) deve voltar-se para fora de si mesmo é esse magnífico evento: o mundial de futebol, ou a Copa do Mundo. Assim como os gatos que protegem-se uns aos outros, uns de alerta enquanto os outros dormem, também a equipa que vai vencer esse torneio contará com jogadores que salvaguardam as costas dos outros. O gato que conquista um belo petisco não pode tê-lo só para si: sabe que a boa nutrição do grupo é que vai lhe garantir boas performances amanhã. Também o avançado que não passa a bola para o companheiro melhor posicionado para marcar vai ter menos hipóteses de ver sua equipa sair vitoriosa.

Assim, o que se passa com os gatos, o que se passa com os futebolistas, passa-se com toda a gente, em todo o lado, da mesma forma. Põe a mente e o coração para fora de ti mesmo e vais ver Deus na plenitude. Não o Deus vingativo e ditador que os pagãos e ateus gostam de pintar, mas o Deus que é amor, caridade e verdade.

Mas se esse discurso filosófico-religioso, com alegorias a gatos e à Copa do Mundo, não te convence, segue o teu caminho reto dentro de ti mesmo, mas saiba que ele conduz a um destino torto.

sexta-feira, maio 28, 2010

Primavera do adeus


Já agora essas árvores cheias de folhas novamente, anunciam o que até aqui se escondia por detrás da primavera bem-vinda... o seu verdadeiro e cruel cariz de nunca mais em Coimbra não pode ser suspeitado antes da Queima das Fitas e da alegria pela volta do tempo de calor depois de tanto frio, mas ele sempre aparece, surpreendendo a todos em uma curva do caminho com um sorriso entredentes a dizer essa triste palavra que é "adeus".

Lembro-me bem das árvores assim, bonitas e tão vivas a encher o corpo da larga avenida Sá da Bandeira, quando conversava despreocupado na esplanada do bar do TAGV com o Celso, completamente inocente de que aquele estupor de vida era também a época do ano em que essas despedidas aconteciam e que depois, no grande frio que há de segui-la, são tão sentidas.

Facto é que já começou a temporada das despedidas. Já pelo meio do próximo mês volta ao Brasil um bom amigo, com quem convivo deste o meu primeiro mês cá nesta terra, e outros devem segui-lo mais à frente, restando sempre menos e agora percebe-se bem isso de não receber de braços tão abertos os que chegam - há no ar essa perspectiva de despedida repentida e o melhor é vê-los passar e sorrir e deixar como está.
.
Uma nova (velha) vida espera por eles. Talvez o trabalho, talvez o retorno à universidade de origem, de todo jeito não será mais aqui. Esses que retornaram costumam sempre se lembrar com saudades de Coimbra e da "boa malta" daqui. Bem, eu sou um bocado saudosista para servir de parâmetro, mas é capaz que a recíproca seja verdadeira, ao menos em alguma medida.

Eu não sei, meus amigos, a verdade é que não tenho todas as respostas e nem sei se gostaria de tê-las. Mas duas coisinhas a respeito do assunto eu sei bem e vale deixar aqui para vocês: 1.ª só vá a um aeroporto se tiver de apanhar um avião, não acompanhe ninguém até o aeroporto, despeça-se noutro sítio (ou aprenderá a odiar os aeroportos de uma maneira irracional, embora não injustificada); 2.ª a primavera dos outros povos do mundo pode ser feliz, mas em Coimbra tem mais encanto, se calhar, pelo seu relativo desencanto inesperado de todos os anos.

Mais vale ir à rua e beber uns copos às "almas" dos que estão de partida e desejar-lhes o melhor, se é que isso é possível de desejar a um amigo que se vai.

quinta-feira, maio 20, 2010

Pedra bruta e envergonhada


Como um tesouro, de variedade e conteúdo, esconde-o a todo custo dos outros. Mas por instantes, quando vem aquele meigo e sorrateiro sol matutino, vê-se no jogo de luzes um sorriso e o explendor da beleza. Eis o segredo que traz em si e de que mal suspeita.

A toda gente, ao menos à gente com pudor, faz, por vezes, má figura, no entanto. Não é feio, mas anda por essas ruas no cumprimento de um percurso já gasto, pelas muitas gerações de estudantes antes dele, num triste desfile de fragilidades e maus hábitos...
.
Grita e canta pela madrugada quando sobe do Largo da Sé Velha, já bêbado e desorientado, junto dos seus colegas, talvez amigos. Cantam a academia e cantam às gajas que passam... Mas por vezes, quando surge no pensamento um nome de mulher, aquela feição doce, surge-lhe também a lembrança do toque da pele macia dos bracos, e chora, como se o choro guardasse mesmo arrependimento ou servisse para expiar aquele sentimento que não podia de todo definir, ou não queria, mas que sabia bem que não gostava de sentir. E era aí que até as velhas da Alta guardavam os baldes d'água que já estavam prontos para lhe dar um banho de cala-a-boca...

Certos dias do ano, trajado e solene, fazia figura de galo pimpão com os colegas. Rufião de meia-tigela, deixava suas boquinhas às empregadas de mesa e pagava um carioca de 0,35€ com uma nota de 5€ dobrada de comprido entre o indicador e o dedo médio, com um sorriso difícil de descrever mas que passava longe, bem longe de ser inocente. Desfilava uma dignidade que não tinha e aproveitava a pose para pedir dinheiro emprestado e vender porcarias aos turistas.

Após uns 3 finos para refrescar (ou aquecer?) começava a contar suas histórias. Uma caixa de pandora de onde nunca se pudia prever o que iria sair! E os colegas que acompanhavam suas tramóias desde o primeiro ano bem sabiam que era tudo uma grande treta, mas ouviam na mesma, já que o distinto narrador confundia-se e inventava sempre coisas novas. Sabe-se lá como, no entanto, sempre se safava com uma ideia que fazia a malta rir e dar-lhe um tapinha nas costas.

Os profs. não eram tão seus amigos. Abusava da sua paciência, escrevia disparates, ia a orais depois de longas borgas... Até onde sei, já podia ter terminado o curso há pelo menos um semestre, mas não é caso para previsões... Deixem os livros descansadinhos - já se ouviu da sua boca roxa de vinho.

Os pais amam-no, docemente. Lembram-se do menino robusto e intrépido que na sua aldeia era conhecido por imitar lobos à noite, uma mania dele que os vizinhos nunca puderam esquecer e que em cada volta à casa, mesmo hoje, é relembrada com gozo - afinal, alguma desforra.

E é assim que corre a vida a esse rapaz que para mim pouco mais é do que um anónimo, mas que traz em si o segredo e a beleza inarrebatáveis da vida. Se em meio à sua grande confusão e estranheza às formas que lhe pedem a mão encontrasse a porta do mistério, talvez pudesse abri-la e dar numa sala onde a lição valesse, mais ainda que as outras, a sua máxima dedicação: encontraria dentro de si mesmo um sentido que, curiosamente, dá para fora... E, de repente, como uma brutal rajada de vento que muda o rumo de toda uma vida, os seus olhos perderiam o medo e a tristeza, a insegurança e o vazio, e mirar-se-iam na sua verdadeira grandeza.

sexta-feira, abril 16, 2010

À boa ventura

Vinicius de Moraes

Há pouco tempo foi o dia dos meus anos, que transcorreu em paz e em boa companhia. Com muito esforço e muito andar (a fim de reunir ingredientes e utensilhos) foi possível preparar o bolo de coco que em duas das minhas festas de aniversário de menino foi servido aos que tiveram a sorte de lá comparecer e me deixar umas boas prendinhas.

A receita, desaparecida com a confeiteira que tinha elaborado a iguaria de então, foi reconstruída com a memória dos meus cinco anos, a falhar um pequeno detalhe com relação à calda da ameixa (que faz da sobremesa um bolo molhado), mas fez-se festa na mesma pelos meus anos completados. Mas eu sempre fico feliz nessa data pela razão inversa: sempre acredito que vai haver ainda muitos e muitos anos a completar.

Quando se faz aniversário, acho eu, deve-se voltar o pensamento para o futuro, e não para o passado. Os futuros aniversários, os futuros presentes, as futuras surpresas, o futuro que guarda a vida, onde cada dia é diferente e embuído de propósito. Por isso é muito triste que uma pessoa complete anos e não tenha um bolo especial para repartir com os seus... Todo aniversariante tem direito a um bolo à medida do seu sonho.

Lembro-me vivamente (tanto quanto da minha festa infantil com bolo de coco) de estar em casa dos avós no dia dos anos do meu avô materno. Sujeito sério e discreto, é claro que nunca ligou para essas tolices, mas eu decidi que ele devia ter um bolo e fiz lá os possíveis para que quando chegasse a casa abrisse um sorriso de aniversariamente como se deve. E assim foi.

Também cruza o pensamento aquele lindo, doce verso que Vinicius escreveu para sua irmã Lygia nos dia dos anos dela, quando os dois eram ainda meninos, quando a poesia cumpria a função de um presente que o pouco dinheiro não permitia dar:

Com o aumento dessa nova estrela
Para a constelação de tua vida.

Um brinde, meus caros! E com vinho verde, que sabe a futuro. Aos anos a vir, de boa ventura, saúde e confiança nas nossas convicções, e também uma fatia de bolo de coco, que é para não deixar esquecer o sabor da alegria de descobrir o futuro.

terça-feira, março 09, 2010

Os meus tios que se foram

Contam-se poucos meses do passamento do meu tio-avô Domingos Ferreira Rios, homem da indústria, proprietário rural e apreciador da cultura cigana.
Acompanhei eu, e acompanhamos todos nós lá de casa, com pesar mas também com uma solidariedade de amigo o seu momento de descanso, após seus seguidos anos a lutar contra problemas de saúde e visível abatimento com que encarava o porvir.
Morreu na velhice, embora tenha tido a inusitada experiência de ser pai já velho, ele se foi tranquilo quanto ao futuro do seu pequeno Rafael. E tranquilos restamos nós, na fé de que a sua alma encontrou o bom caminho para Deus.
Esse pouco tempo que se conta da morte do do meu tio-avô veio a se encurtar de repente com a tragédia que se abateu sobre nós no fim de semana.
Era tarde de domingo quando, numa curva do caminho (esse tortuoso e surpeendente caminho que é a nossa vida) o meu tio Maximiano despistou-se para encontrar a morte às vésperas do seu 60º. aniversário.
Poderia aqui fazer relembrar inúmeros eventos da minha infância e juventude ligados ao meu tio Max. Poderia encher os vossos corações com esse luto que eu sinto e que em alguma medida tem também a serenidade dele. Mas vou dizer o pouco que significa muito.
Foi um homem bom. Nunca obrou o mal, nunca manipulou e nunca utilizou-se da sua posição para seu benefício próprio. Errou, sim, errou, como todos os homens todos os dias erram, mas fê-lo com o coração comprometido com a certeza de que era o melhor.
Foi amoroso com os seus. Sempre preocupado com a sua família, com os seus irmãos, com os seus pais. Um marido que se dizia sortudo, um pai sempre adorado, um avô apaixonado pelas suas meninas.
Foi um bom tio para mim. Honrou o nosso nome no desempenho das altas funções públicas que durante grande parte da sua vida desempenhou. Deixou-me o exemplo do amor pela coisa pública e da caridade para com os menos favorecidos da nossa terra - uma preocupação que quotidianamente ocupa os meus pensamentos.
Não era um homem velho. Era um homem maduro que se preparava para a velhice. Deixou a nossa família novamente órfã de patriarca 23 anos após a morte do meu avô paterno, sempre presente nas suas palavras e no seu coração.
Um coração integralmente livre, que nasceu livre como o vento e que por toda a vida ditou o caminho trilhado na convicção dos melhores valores que também eu recebi e tenho comigo.
Muitos de vocês que lêem essas linhas nunca estiveram com esse típico e bom "miano", mas acreditem que teria sido um gosto. Nós todos bem o sabemos.
Foi para as mãos de Deus e é preciso ter obediência para aceitar a Sua vontade, na confiança da vida eterna e da ressureição da carne.
Pelo descanso das almas dos meus bons tios, homens de bem, orgulho da nossa raça, eu vos peço uma oração sincera.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Para o Fernando Carvalho


O tão curto convívio que eu tive com o Fernando Carvalho não é proporcional à minha admiração por ele, ainda hoje.

"O que tem que ser, tem que ser e o que tem que ser tem uma força imensa", eis as palavras dele que hoje eu compreendo melhor, bem melhor... Ou então naquela brincadeira privada ao ver meu ar triste na partida, tão bem sabia ele o que eu sentia, que quis brincar: "A Saudade está aqui!".

Por vezes penso na brutalidade de ter sido expluso da terra dele, ainda adolescente, e vir morar na terra dos pais e dos avós, mas que era até então estranha, penso nas suas inúmeras memórias de Moçambique, no seu sotaque moçambicano, aquele português africano cantado e com as vogais altas e alongadas que eu, pessoalmente e com todo o respeito, acho muito engraçado.

Penso por vezes na coragem de desposar uma moça da sua terra, é capaz que por busca e encontro das suas origens, mas tenho convicção, própria e pelos da casa dele, que o fez de todo coração, e esses longos anos têm provado a certeza da sua escolha, mais que a escolha da sua certeza.

Penso nos apertos daquela juventude adulta, penso na linda filhinha que Deus lhe deu tão cedo na vida, penso nas preocupações, penso, sobretudo, no grande e imenso coração desse bravo homem.

Ainda novo tomou a decisão de emigrar para a Suíça, mas o fez sozinho. Em Portugal ficou a mulher e a sua filha ainda pequena. E é aí que eu fico a tentar ver onde ia o seu pensamento naqueles primeiros anos, que julgo eu devem ter sido mais difíceis, quer pela adaptação ao país estranho e à língua estranha, quer pelas próprias misérias que envolvem o se encaixar numa sociedade estrangeira. Mas seguiu em frente, só na Suíça, mas não só no seu sentimento.

Mais tarde teve mais uma filha, uma alegria e também uma companhia para a mulher e a filha mais velha, mas também mais uma responsabilidade, certamente. Concebida nesse vai-e-vem Suíça-Portugal, Portugal-Suíça...

Dia a dia, mês a mês, ano a ano, uma vida inteira! Quem mais é capaz de sacrificar tanto de si mesmo, de dar da própria carne o comer dos outros que ama, de instrumentalizar-se completamente pela felicidade de outros que nem o convívio pode ter!

São todas ideias demasiado odiosas para um individualista, mas aqui tratamos de uma unidade colectiva que atende pelo nome de família, é bem assim. E por isso mesmo cabe aquele precioso ditado que diz que "quem corre por gosto não cansa".

Mais do que dramatização cruel que poderia ver no Fernando Carvalho um escravo que só umas poucas semanas por ano tem o direito de gozar da felicidade que no resto do ano é privado, como no exercício masoquista que apenas serve para que fique a saber melhor aquilo que não pode ter, trata-se, no entanto, de realizar-se como homem, de fazer-se vivo, de completar-se inteiramente, pois nada há de mais maravilhoso que viver o amor.

E por essa grande e nobilíssima virtude, pelo seu grande desprendimento e fidelidade ao ideal, mas sobretudo por esse imensurável amor, esse amor vencedor e glorioso, eu consigo compreender bem que o Fernando Carvalho é muito feliz e que deveriam haver muitos mais homens como ele, ao invés dessa multidão de infelizes egoístas a bater as cabeças nos postes das ruas.

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Vai bugiar, meu menino

Queria que as palavras tivessem sempre o peso certo da expressão interior. Que não se desperdiçasse adjetivos, que não se guardasse uma homenagem justa, que não se calasse a verdade pelo medo, que silenciasse o abuso que vem à fora para nada, a não ser para chatear... Mas talvez essa equação exata não fosse a melhor.
As palavras estão à disposição de todos, os loucos e os sábios. E assim temos de ver nos entrar pelos ouvidos coisas escabrosas, ou ficar à expectativa de um conforto que não é dado.
Acho bem que é nesse espaço entre o excesso e a falta que se encontra o mistério de viver em sociedade.
Criaturas curiosas e bugiadoras que somos, no interior mais secreto, esse ficar sem saber aguça, esse saber o que não interessa até distrái.
Como um longo e doce passeio pela margem do rio, onde as suas serenas águas passam indiferentes à cidade e aos carros, fico à espera de alguma mensagem, de saber como foi e o que esperam do que vai vir na sua viagem até a foz da Figueira, viagem que é tão boa, bem eu sei.
Mas o rio nada diz que ouvidos como os meus possam ouvir. Vão dizer: é a água a passar, tolo! Não... enganam-se muito os que assim pensam. Há ali pormenores, há ali cores, há ali gente e há ali, portanto, história. O rio sabe, melhor que ninguém, como as coisas são. Está ali a passar a séculos imemoriais e mansamente espera e segue, sem nada dizer do que sabe.
Por vezes confunde-me a sua perene inconstância... é sempre novo a cada novo momento, mas no caminho que segue, na margem que toca, nas gentes que banha e de quem arrasta o pensamento, é sempre o mesmo rio.
Mas na generalidade, os mistérios não assumem essa forma fluvial, antes, estão nas pessoas. Muitas poderiam até ver no rio, antes desse mistério que tudo sabe e nada revela, um óbvio que são obrigadas a tolerar, como os portugueses fazem todos os dias em relação ao seu mentiroso Primeiro Ministro. As pessoas preferem outras pessoas, eis uma verdade imutável.
Mas qual o mistério que há em nós? O que guardamos que nos torna interessantes aos outros? E mais, talvez até mais importante, qual o nosso óbvio repetido e aceito que aborrece, que se intromete pelos olhos e ouvidos dos outros e nos faz o cansativo lugar comum?
Se é o rio testemunha silenciosa, sabe bem que a convicção e a fé, em Deus ou mesmo em um ideal, conduzem as vidas das pessoas que realmente importam, como o fluxo do rio conduz os barcos que na superfície se arriscam.
Nada mais somos do que o exercício das nossas bugiações. A externação do que pensamos e sentimos. Com essa forma de influenciar os outros e se deixar influenciar por eles, fazemos o mundo em que vivemos.
Ao contrário do rio, que tudo sabe, mas nada diz, nós, que temos a pretensão de que sabemos, ao menos podemos falar, comunicar, fazer perceber, a dizer, maravilhar ou aborrecer.
E em alguma medida, essa é a vida que se tem para viver.

quinta-feira, janeiro 21, 2010

Os 20 valores de Manuel de Andrade


Nem só de tijolos e livros se faz uma faculdade de direito. Bem o sabe quem estuda ou já estudou em Coimbra.

Cá onde os corredores falam mesmo se vazios, não na voz dos fantasmas a assombrar, mas na história impossível de não notar, há uma reputação a pesar nos ombros desses pobres caloiros que entram para o 1.º ano: honrar essas tradições. Fardo por vezes demasiado pesado, especialmente para os que minguam em talento, possível razão, talvez caiba especular, da grande evasão que acontece: dos 400 caloiros que se matriculam todos os anos, menos de 100 terminam a licenciatura e dois terços ou metade disso seguem para o mestrado e muito menos para o doutoramento.

Essa grande evasão é fundada, dizem alguns, no rigor do curso, onde a obtenção da quantidade mínima de valores (10) para aprovação é em si uma batalha dura, seja qual for a cadeira. Os que terminam o curso com média de 14 valores, mínima para seguir para o mestrado, são uma minoria avalassadora, prémio, não de génios iluminados, mas dos que trabalharam imensamente, com uma carga de organização e de leituras diárias que assustariam qualquer estudante de direito do mundo.

Uma porta, no entanto, resta aberta à beleza: mais que os maquinadores, que reproduzem o conhecimento sem sobre ele refletir, a faculdade de direito deita rosas no caminho dos que se expõe a estarem errados, mas que tentam levar os caminhos do conhecimento jurídico mais à frente, desenvolvendo novas teorias, novas tecnologias capazes gerar paz e justiça social.

É assim que mais de 50 anos após sua morte, Manuel de Andrade, natural de Estarreja, ainda influencia o pensamento dos que por esses corredores andam e nem só.

No convívio social, era um homem de trato simples e muito calmo, dizem os que com ele conviveram, não era dado à discussão leviana... conversava à dois, conciliava, aconselhava, não impunha.

Como professor, acompanhava com atenção o evoluir dos alunos, pois leccionava cadeiras em diferentes anos, provendo-lhes com suas "lições", sempre receoso de publicar seus estudos. Suas ideias, claras e atentas à letra da lei, sempre em busca de uma sua materialização com a participação de um intérprete que lhe confira o positivismo que interessa, penetraram profunda e perenemente no pensamento dos seus alunos, e alguns desses se tornariam mestres dos nossos hodiernos mestres, numa influência espraiada da postura de um professor de direito de Coimbra que ainda hoje se vê plena e consistente.

Talvez por isso tenha levado 12 anos, depois de sua licenciatura, para tirar o doutoramento. Fê-lo, entretanto, com um brilhantismo que já não se pode aspirar igual. Obteve aprovação da tese com 20 valores, a única nota máxima atribuída pela faculdade de direito no século XX. Distinção conferida, ao que parece, por mérito e com justiça.

Feito hoje nome de um dos prémios outorgados anualmente pela faculdade (ao aluno com maior média final de licenciatura), ainda ressoa aos (a dizer, quase todos) que nunca conheceram-no essas façanhas e maneiras. Mais que tudo, surpreende por ter se consagrado na humildade de não querer superar, suplantar, destruir ou implantar. Ensinou o direito e o fez honestamente, sem vaidades maiores e, por isso mesmo, a sua memória ainda muito nos ensina.

sábado, dezembro 05, 2009

Quando se tem amor

Quando se tem amor
A se oferecer em partilha
No dia da grande viagem
Que é o nosso grande amor

Quando se tem amor
Um amor, tu e eu
Para morrer de alegria
A cada hora e a cada dia

Quando se tem amor
Para viver nossas promessas
Sem nenhuma outra riqueza
A não ser a de acreditar sempre

Quando se tem amor
Para enfeitar com maravilhas
E cobrir com o sol
A feiura da miséria

Quando só se tem amor
Como única razão
Como única canção
E única saída

Quando se tem amor
Para vestir o amanhecer
Pobres e bandidos
Com casacos de veludo

Quando se tem amor
Para se unir em oração
A favor dos males desta terra
Como um simples trovador

Quando se tem amor
Para entregar a essa gente
Que vai à luta
Em busca de luz

Quando se tem amor
Para traçar um caminho
E forçar o destino
Em cada encruzilhada

Quando se tem amor
Para falar aos canhões
E bastasse uma canção
Para convencer os tambores

Só então, quando não tivermos mais nada
A não ser esta força que é o amor
Teremos na palma de nossas mãos
Minha amiga, o mundo inteiro!


Jacques Brel