"Vida feita de inveja e de medo" foi esse o pensamento mais forte do meu dia! Atingindo-me perto do meio-dia como um raio caído dos abismos do céu diretamente sobre o meu colo, fez parecer que minha camisa pesava mais de 50 quilos e que peixinhos nadavam ao lado dos copos e dos talheres!
Não poderia imaginar que um simples almoço no centro da cidade fosse lançar tantas faíscas e eu fui colher no chão aquela centelha que se apagava para aqui expor todo meu drama naquele momento que na verdade não era meu, mas alheio, totalmente alheio, pertencia a um estranho rapaz que ao meu lado almoçava desassossegado. Cabelos louros bem curtos, olhos castanhos, visivelmente fora de forma, com as unhas destroçadas pelos dentes e pela ansiedade, parecia incapaz de continuar sua refeição depois de ter visto sentada de frente para nós, numa outra mesa, uma linda mocinha de não mais de 18 anos, com os cabelos castanhos bem escuros e lisos à altura do pescoço, com grandes olhos verdes bem aproveitados pela sua franja e pelas sombrancelhas bem feitas, medindo não mais que 1,65m nem menos que 1,60m, parecia a criatura mais formosa do mundo aos olhos do rapaz, enfeitiçado por esse cenário completado apenas talvez pelo seu lindo decote, nem um pouco exagerado, mas suficiente para ter os olhares que desejasse e ainda mais.
Reparando que ele babava pateticamente no seu prato, um impulso pela dignidade masculina correu meu corpo de repente e de maneira mesmo forçada, eu diria, bem a contragosto de qualquer tipo de abordagem gentil e natural, perguntei de solapão: "Então não é idêntica à Natalie Portman?" O rapaz tossiu de repente e foi uma tossida tão alta que o garção do outro lado do restaurante virou-se para ver se tinha alguém passando mal. Depois de recuperar-se, olhou para mim e disse, "olha que acho ainda mais linda" e dizendo tinha nos olhos uma cor que olhando para o seu rosto de lado não tinha suspeitado que tinha, ele tinha então olhos de mar, marejados de angústia, como nos quadros que retratam navegantes costumava-se colocar aquele azul lilás símbolo de saudade angustiada e doce. Voltou vagarosamente a adorar aquela moça, como que curvando-se ante um altar.
Numa segunda observação ao rosto da moça, lembrei-me rápido de quem era, afinal conhecia a sósia de Natalie Portman! Seu nome é Fátima, tem 19 anos (percebi mal sua idade pelo olhar), estuda Artes na universidade federal e estudou francês no Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas quando eu trabalhava lá como monitor desse mesmo idioma. Tendo conversado com ela apenas uma vez para explicações de última hora para um exame, a impressão que restara era de uma pessoa prática e bastante segura, feliz com o que tinha às mãos e nada curiosa, afinal o tipo de mulher que deve estar apaixonada e não fazer apaixonar, embora essa segunda condição seja enfim mais constante nas suas relações.
O rapaz tinha uma expressão tão serena no fim do almoço que eu quase me esqueci que tinha que ir e acabei por atrasar-me um pouco! Nos olhos aquele lilás imaginário e na compostura de seu corpo a certeza de desejar algo que lhe era distante e inalcansável, algo que os padrões, os temperamentos, as circunstâncias não lhe dariam nunca.
Quando o deixei admirando Fátima limpando a boca com o guardanapo de papel, desisti de continuar analisando aquela maciça exposição da fragilidade masculina, talvez sentindo-me compensado por não ter ídolos daquele tipo, talvez cansado de ter compaixão por quem não tem compaixão com o próprio coração.
quinta-feira, março 31, 2005
terça-feira, março 22, 2005
Guerra pelo amor
"...
E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito."
E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito."
IV Soneto de Meditação, Vinicius de Moraes
Eu sou avesso à qualquer tipo de hostilidade. Não me agrada ver gritos, murros cheios de raiva, menos ainda agressividades menos apaixonadas e mais brutais, como a dos criminosos e talvez essa repulsa explique também o meu nojo ao ver sangue.
Agradam-me os esportes porque neles há o sentimento do lúdico e da competição, ambos interessantes de serem curtidos e que confesso que adoro. Neles não há o sentimento de ódio, nem da tara pela morte alheia (ao menos entre competidores normais), de modo que essa agressividade é apenas aparente e serve mais para afirmar a virilidade e masculinidade com algum divertimento do que para humilhar e derrotar propriamente.
Há um outro tipo de competição que consegue não ter hostilidade e nem tampouco ser lúdica por si mesma (embora acabe sendo também lúdica em algum sentido), a competição pelo amor verdadeiro. Chamá-lo de jogo seria diminuir sua importância, seu vulto colossal sobre nossas vidas, diminuir a importância que tem como o caminho que traçamos enquanto achamos infantilmente que um bom emprego e bens de capital nos trarão respeito e paz, deixando um rastro de decisões frias de mãos dadas com muito lamento. Talvez fosse apropriado a pecha de 'guerra', já que é nas guerras que os destinos são decididos e a tragédia coloca pedras nos cruzamentos que não podem nunca ser retiradas e as batalhas tornam-se tão ferozes quanto inesquecíveis e também assim é a luta pelo amor.
Cada romance é uma batalha, cada beijo um tiro, cada olhar uma estratégia, cada abraço uma trégua. Mas nessa guerra os objetivos não são contrários, mas os mesmos, qual seria o famoso amor verdadeiro, aquele conhecido por encher a alma de paz e felicidade. Muito lindo, mas sem muita emoção, de modo que a prática das guerras mostra a faceta maior deste tipo de conflito armado: nem sempre as partes tem esse comum objetivo. Muitas das vezes, há os que querem o amor, simplesmente querem amar e ser amadas, e os que querem livrar-se da solidão, querem outrem pra usar ou pra exibir, os que fazem da guerra um conflito desonesto. Desonesto para a outra parte que guerreia de boa fé e com paixão adentra as linhas inimigas e se deixa adentrar sem medos, mas sobretudo desonesta para esses desafortunados medrosos, pois no fim das contas os grandes amigos que lhe sobram são a solidão e o arrependimento de não ter acreditado e também, se tiverem algum caráter, a angústia de ter magoado.
Batalha após batalha, aprende-se que o amor é uma dura conquista! Quanto tato é preciso para não deixar morrer! Quanta afinidade é necessária para não descubrir-se a luta por uma batalha perdida! Quanta expectativa para sentir um amor a crescer vermelho de vida! E assim seguem-se os amores, como segue sempre a vida impassível. Alguns não suportam as derrotas e desistem da luta, enclausuram-se em verdades que acham absolutas, envolvem-se superficialmente, tornam-se eremitas, matam-se, de todo jeito abdicam do amor de uma maneira muito triste, muito transtornada, numa atitude que merece nossas mais devotadas orações. Mas os mais românticos mantém a chama desta crença, como antigamente se mantinha nas casas a chama dos ancestrais, que não podia se deixar apagar por razão nenhuma nesse mundo! Acreditam no tal do amor, e lutam bravamente, batalha após batalha, carregando humildemente suas cicatrizes e farda surrada com dignidade e sem nenhum constrangimento de ter perdido, isso tudo porque acredita intimamente na vitória que sabe sua.
Na guerra pelo amor há momentos de dúvida, em que cogita-se friamente esquecer tudo isso, e abdicar como tantos fazem da oportunidade de vencer um dia, contentando-se com os restos e sobras que varejam nas esquinas do que é verdadeiramente o amor. Um medo imenso corre a espinha e olha-se nos olhos do futuro "inimigo" como que dizendo: "faça com que eu acredite". Rezando subitamente para que um sinal divino restaure a sua fé e sua vontade de luta, sua gana de vitória, o vigor da artilharia, a frieza apaixonada dos ataques de madrugada, quando o inimigo dorme inocentemente. Reza-se para que essa fé na guerra pelo amor surja de algum canto da alma. E se ela finalmente surge, que bela surpresa! Tanta felicidade, tanto júbilo, tudo por ter recomeçado uma guerra.
Mas para vencer, não basta acreditar e perseverar na luta, é preciso agir! A ação é a própria alma das guerras e com a guerra pelo amor não é nada diferente! Não afastar-se nunca do "inimigo" é um ótimo começo, afinal, só bem de perto para realmente poder feri-lo de morte! O carinho e o afeto são bombas poderosas, a afinidade de gostos é o melhor dos exércitos de ocupação, porque não são agressivos com a população local, muito pelo contrário, são parte dela, embora nunca tenham antes estado ali. Por fim, a conquista do amor exige perseverança na verdade, sim, eis aqui a mãe de todas as bombas que garante a vitória final. A verdade liberta e na guerra pelo amor, como em todas as boas guerras da vida, ela é sempre a melhor arma para vencer, garantindo que entre os mortos e feridos sobre duas almas enlaçadas de um sentimento maior que qualquer outro, enlaçadas no ideal de que todo o sangue não foi em vão.
quinta-feira, março 17, 2005
Brigas e unhas quebradas
Para infelicidade geral da comunidade do meu prédio, terminou ontem um lindo romance entre a senhorita Patrícia e um rapaz mais velho que mora no Alto dos Passos.
Alegria da pracinha do bairro, esse casal parecia ter nascido grudado, como siameses do amor! E então quem dissesse que aquilo acabaria, só faria rir aos outros que admiravam: quanta paixão!
Na mesma medida, que drama imenso infestou aquele prédio! Do lado da minha janela a sala de estar de Patrícia, com seu sofá servindo de colo para seu corpo pulsando lágrima e lamento, eu ouvia sem ter escapatória e ainda preso em casa por achar a menina tão querida e tão decidida em amar daquela maneira, fiquei ainda uns longos minutos escutando as bobagens que ela dizia às almofadas.
De repente um rasgo de tristeza entrou forte entre os sentimentos da relativa paz que eu desfrutava já há uns poucos dias e disse tão asperamente para mim que eu tinha culpa naquilo. Maldita mania que tenho de culpar-me pelas desgraças sentimentais do mundo, como se tivesse cometido mesmo o maior dos crimes sentimentais, minha pena é tomar a culpa de todos os outros e me recriminar pelo sofrimento de quem deixa de achar o amor uma boa idéia!
Mas a dor dela despregou meus medos e os fez suar um pouco junto do meu rosto à janela e chorei um pouco com ela, ambos mudos e irracionais aos fatos, apenas obedecendo ao impulso do instante.
O telefone toca, Patrícia atente, mas não sem antes, tentar secar as narinas e as faces. "Alô, quem é? [...] Sim, só preciso de um banho". Foi ao banheiro, pelo visto apenas lavou o rosto e respirou fundo. Em seguida saiu e bateu à minha porta, o que me fez saltar do sofá num pulo, fui atender, já eram mais de 23hs. "Oi, Patrícia, entre", entrou, e sentou-se no sofá. "Preciso que você vá comigo a um lugar". "Onde?", perguntei surpreso, "No Grama, preciso resolver um problema imediatamente" E olhando os imensos olhos verdes ainda bem vermelhos, olhando a boca cerrada e o cabelo preso como que pronta para atacar o inimigo, ao contrário da suavidade de passear com a juga solta, vi uma Patrícia que não poderia nunca andar sozinha na rua àquelas horas. Fui junto depois de uma dose de conhaque que ela não quis compartilhar comigo.
Chegamos depois de 40 minutos em frente à uma casa, uma velha preta atendeu e chamou Patrícia para perto, fiquei de longe olhando. Ela lhe deu uma sacola com algumas coisas dentro e algum dinheiro, não consegui ver quanto. Falaram pouco, parecia que tudo já havia sido combinado por telefone, não interferi.
Voltou-se para mim já com outro semblante, parecia aliviada. Voltamos com a mesma disposição de conversa da ida, ou seja, nenhuma, mas dessa vez não me contive: "Então está mandando lavar a roupa longe de casa?" E me olhando com algum carinho da nossa amizade tão inconstante, mas de tanta afinidade despejou no meu colo aquela sentença cheia de piedade "Ele vai se apaixonar de novo, é o que eu mais quero, mas eu não."
Não sei porque tenho por amigos gente tão generosa, gente ao mesmo tempo tão desprendida desses vícios urbanos de uso e desuso... Depois de tanto grito, de tanto choro, de tanta briga, sobrou para ela não se apaixonar e apenas isso pedia à feiticeira naquela madrugada. Pediu com toda a força do dinheiro e do desespero que secasse toda a empolgação que irrigou no corpo o êxtase que entregou ao rapaz na forma de amor sem medo e que recebeu dele uma traição continuada e uma explicação esfarrapada.
Ao mesmo tempo, eu senti um medo repentino de estar ali com ela, como que se uma palavra errada me colocasse na lista de magia negra de minha vizinha e arrepiei olhando o seu olhar decidido e já seco.
Entramos no prédio, fomos juntos e calados subindo as escadas. "Obrigado, querido, tava com medo". "Eu também, Patrícia". Ela sorriu, entendendo perfeitamente e disse "amanhã tudo volta ao normal, ao menos o que tiver sobrado". Despedimo-nos e entramos com esse mesmo desejo.
Alegria da pracinha do bairro, esse casal parecia ter nascido grudado, como siameses do amor! E então quem dissesse que aquilo acabaria, só faria rir aos outros que admiravam: quanta paixão!
Na mesma medida, que drama imenso infestou aquele prédio! Do lado da minha janela a sala de estar de Patrícia, com seu sofá servindo de colo para seu corpo pulsando lágrima e lamento, eu ouvia sem ter escapatória e ainda preso em casa por achar a menina tão querida e tão decidida em amar daquela maneira, fiquei ainda uns longos minutos escutando as bobagens que ela dizia às almofadas.
De repente um rasgo de tristeza entrou forte entre os sentimentos da relativa paz que eu desfrutava já há uns poucos dias e disse tão asperamente para mim que eu tinha culpa naquilo. Maldita mania que tenho de culpar-me pelas desgraças sentimentais do mundo, como se tivesse cometido mesmo o maior dos crimes sentimentais, minha pena é tomar a culpa de todos os outros e me recriminar pelo sofrimento de quem deixa de achar o amor uma boa idéia!
Mas a dor dela despregou meus medos e os fez suar um pouco junto do meu rosto à janela e chorei um pouco com ela, ambos mudos e irracionais aos fatos, apenas obedecendo ao impulso do instante.
O telefone toca, Patrícia atente, mas não sem antes, tentar secar as narinas e as faces. "Alô, quem é? [...] Sim, só preciso de um banho". Foi ao banheiro, pelo visto apenas lavou o rosto e respirou fundo. Em seguida saiu e bateu à minha porta, o que me fez saltar do sofá num pulo, fui atender, já eram mais de 23hs. "Oi, Patrícia, entre", entrou, e sentou-se no sofá. "Preciso que você vá comigo a um lugar". "Onde?", perguntei surpreso, "No Grama, preciso resolver um problema imediatamente" E olhando os imensos olhos verdes ainda bem vermelhos, olhando a boca cerrada e o cabelo preso como que pronta para atacar o inimigo, ao contrário da suavidade de passear com a juga solta, vi uma Patrícia que não poderia nunca andar sozinha na rua àquelas horas. Fui junto depois de uma dose de conhaque que ela não quis compartilhar comigo.
Chegamos depois de 40 minutos em frente à uma casa, uma velha preta atendeu e chamou Patrícia para perto, fiquei de longe olhando. Ela lhe deu uma sacola com algumas coisas dentro e algum dinheiro, não consegui ver quanto. Falaram pouco, parecia que tudo já havia sido combinado por telefone, não interferi.
Voltou-se para mim já com outro semblante, parecia aliviada. Voltamos com a mesma disposição de conversa da ida, ou seja, nenhuma, mas dessa vez não me contive: "Então está mandando lavar a roupa longe de casa?" E me olhando com algum carinho da nossa amizade tão inconstante, mas de tanta afinidade despejou no meu colo aquela sentença cheia de piedade "Ele vai se apaixonar de novo, é o que eu mais quero, mas eu não."
Não sei porque tenho por amigos gente tão generosa, gente ao mesmo tempo tão desprendida desses vícios urbanos de uso e desuso... Depois de tanto grito, de tanto choro, de tanta briga, sobrou para ela não se apaixonar e apenas isso pedia à feiticeira naquela madrugada. Pediu com toda a força do dinheiro e do desespero que secasse toda a empolgação que irrigou no corpo o êxtase que entregou ao rapaz na forma de amor sem medo e que recebeu dele uma traição continuada e uma explicação esfarrapada.
Ao mesmo tempo, eu senti um medo repentino de estar ali com ela, como que se uma palavra errada me colocasse na lista de magia negra de minha vizinha e arrepiei olhando o seu olhar decidido e já seco.
Entramos no prédio, fomos juntos e calados subindo as escadas. "Obrigado, querido, tava com medo". "Eu também, Patrícia". Ela sorriu, entendendo perfeitamente e disse "amanhã tudo volta ao normal, ao menos o que tiver sobrado". Despedimo-nos e entramos com esse mesmo desejo.
quarta-feira, março 16, 2005
Doce por dentro
Na perspectiva de não sofrer as saudades de férias longe dos amiguinhos, meu priminho Mateus fez bonecos de massa de modelar dos que gosta.
Contornava com cuidado a cabeça de cada qual, como se afagasse a cabeça verdadeira e contornava os traços com um palito de dentes.
Os olhos fixos pareciam alegrar-se imensamente quando trazia da massa inanimada a feição parecida com a original e ele sorria generosamente sua ingenuidade e amor infantis.
"Mas Mateus, os bonecos não falam, não andam, não são nada além de bonecos de massa!", tentava provocá-lo para ver sua argumentação e ele "pois é", concordando sem muita insatisfação com a provocativa. "Pois então de que serve fazê-los?", continuei e ele "ora, serve para eu não esquecer que gosto deles" e disse muito bem o pequenino.
Continuava lá entretido a comparar as fotos da estante com os bonequinhos que ia fazendo e a alegrar-se com qualquer progresso.
Enquanto meu priminho alegrava-se com a grande idéia, eu escutava "metamorfose ambulante" e imaginava se as imagens cofirmariam para mim o amor que representam.
Talvez eu pudesse mesmo fazer bonecos dos amigos que não vejo há muito tempo e olhar para eles para lembrar-me o quanto foi boa nossa convivência, o quanto fomos felizes e o quanto gosto deles. Mas por outro lado, daí já aprofundo mais que meu primo, fossem o símbolo da falta de atenção com a nossa amizade, do desleixo em ligar, em marcar encontros, em dar continuidade aos projetos, daí seria o símbolo de um deboche.
Vem a próxima música do Raul: "quem não tem colírio..." e eu penso se me faltou colírio para deixar de receber as ligações dos meus amigos, ou se da parte deles sobraram óculos escuros para não se importar também e não ver que cada pequena ausência fazia essa maior e tão ameaçadoramente definitiva.
Em seguida começou a "tente outra vez"! Sim, "a água viva ainda tá na fonte" e esse determinismo todo começa engalfinhar e tornar turva a bela imagem poética de esperança que o Mateus tão gentilmente criou para si e me deixou tão impressionado.
Eu não vou usar de massa de modelar, uso das minhas lembranças para não esquecer-me dos amigos. Vem cá dentro aquela vez que fizemos issos e aquilos, conversamos, rimos e nos importamos com as mesmas coisas, das músicas que dançamos juntos e das nossas idiotices que foram suportadas sem muito escárnio.
Os bonecos da imaginação são mais interativos, mas tenho pena que encenem sempre as mesmas situações. O bom seria ter lembranças novas e mais que isso, conseguir confirmar se eles também tem um boneco meu, se também se importam e sofrem como eu essa nossa ausência.
O fato que não deve ser ignorado é que nem todos lidam com isso da mesma forma, e deixam mesmo morrer até as memórias que tivessem sobrevivido à amizade o que aborrece muito. Mas eu não me dou o luxo de esquecer, apesar de ser o pouco que restou, é meu, sim, meus bonecos dos meus amigos. :D
Contornava com cuidado a cabeça de cada qual, como se afagasse a cabeça verdadeira e contornava os traços com um palito de dentes.
Os olhos fixos pareciam alegrar-se imensamente quando trazia da massa inanimada a feição parecida com a original e ele sorria generosamente sua ingenuidade e amor infantis.
"Mas Mateus, os bonecos não falam, não andam, não são nada além de bonecos de massa!", tentava provocá-lo para ver sua argumentação e ele "pois é", concordando sem muita insatisfação com a provocativa. "Pois então de que serve fazê-los?", continuei e ele "ora, serve para eu não esquecer que gosto deles" e disse muito bem o pequenino.
Continuava lá entretido a comparar as fotos da estante com os bonequinhos que ia fazendo e a alegrar-se com qualquer progresso.
Enquanto meu priminho alegrava-se com a grande idéia, eu escutava "metamorfose ambulante" e imaginava se as imagens cofirmariam para mim o amor que representam.
Talvez eu pudesse mesmo fazer bonecos dos amigos que não vejo há muito tempo e olhar para eles para lembrar-me o quanto foi boa nossa convivência, o quanto fomos felizes e o quanto gosto deles. Mas por outro lado, daí já aprofundo mais que meu primo, fossem o símbolo da falta de atenção com a nossa amizade, do desleixo em ligar, em marcar encontros, em dar continuidade aos projetos, daí seria o símbolo de um deboche.
Vem a próxima música do Raul: "quem não tem colírio..." e eu penso se me faltou colírio para deixar de receber as ligações dos meus amigos, ou se da parte deles sobraram óculos escuros para não se importar também e não ver que cada pequena ausência fazia essa maior e tão ameaçadoramente definitiva.
Em seguida começou a "tente outra vez"! Sim, "a água viva ainda tá na fonte" e esse determinismo todo começa engalfinhar e tornar turva a bela imagem poética de esperança que o Mateus tão gentilmente criou para si e me deixou tão impressionado.
Eu não vou usar de massa de modelar, uso das minhas lembranças para não esquecer-me dos amigos. Vem cá dentro aquela vez que fizemos issos e aquilos, conversamos, rimos e nos importamos com as mesmas coisas, das músicas que dançamos juntos e das nossas idiotices que foram suportadas sem muito escárnio.
Os bonecos da imaginação são mais interativos, mas tenho pena que encenem sempre as mesmas situações. O bom seria ter lembranças novas e mais que isso, conseguir confirmar se eles também tem um boneco meu, se também se importam e sofrem como eu essa nossa ausência.
O fato que não deve ser ignorado é que nem todos lidam com isso da mesma forma, e deixam mesmo morrer até as memórias que tivessem sobrevivido à amizade o que aborrece muito. Mas eu não me dou o luxo de esquecer, apesar de ser o pouco que restou, é meu, sim, meus bonecos dos meus amigos. :D
segunda-feira, março 14, 2005
O amor das cobras selvagens
Meus poemas envelheceram de repente quando os reli no sábado. Estavam muito bem medidos os sonetos, os versos livres continuavam bem livres, todos em itálico e com o título todo em maiúsculas, tudo lindo e quase tudo velho e cansado.
Como o passar do tempo em relação aos edifícios de arquitetura neoclássica, a chuva, o vento, o sol violentaram também os meus versos e fizeram crescer ramos de sabambaia, longas línguas pretas pela parede, desbotamento das cores da pintura, enegrescimento das faces das estatuetas que guardavam o portão no alto das colunas.
Andei pelos corredores do meu palácio poético e os fiz ranger as velhas tábuas do piso com os meus passos decididos, e fiquei assustado quando o vento fez bater as portas e janelas, lançando ao chão fragmentos da madeira apodrecida. A casa respondia à minha presença como um velho defende-se da agressão que sabe que sofrerá em seguida, mas pela própria debilidade trazida pelo tempo, sabe que não tem chances de sucesso, sobra a raiva.
Olhei dentro dos quartos e senti um cheiro de outros tempos. Lembrei-me doutros amores e medos, de outros pensamentos noutras avenidas, priorizados então os primeiros sentimentos. Na antiga pretensão, quase infantil, de reduzir tudo a um verso rancoroso e feroz, reluziu para mim meu maroto jeito de esperar o inesperado surgir de repente, trazendo a solução que, à parte da fé que eu tinha, não veio. Num tempo em que eu achava que o amor das cobras selvagens continha alguma paixão, olhava-as com respeito, mas hoje está tudo desmentido!
Analisando cruamente a culpa é toda minha, por óbvio. Isso de colocar a culpa no vento, no sol e na chuva é um argumentozinho metafórico muito besta! Eu fui quebrando secretamente nas madrugadas os pilares desse edifício poético e passei a maldizer as antigas verdades como que tentando saber se sobreviveria com altivez a minha própria renúncia de natureza e embora o processo não esteja ainda totalmente completado, sei que a tampa da banheira foi retirada e a água está indo embora com muito boa vontade, essas leis naturais são mesmo muito prestativas. Versos novos são a nova água para meu banho. Versos mais encorpados de um bom carinho e tempero de inteligência, sim, versos assim merecem o papel. Tenho pensado em poetas inspiradores de tempos mais remotos, como William Blake e mesmo Oscar Wilde que lia muito antes de entrar para a universidade. Esses poetas tem um estilo muito particularmente esculpido nas paixões e pensamentos parametrados em coisas verdadeiras. Blake foi um iconoclasta, Wilde um inovador genial, neles talvez encontre riso e prazer pra pensar em versos meus mais afetos ao meu atual propósito.
Resta uma resposta que deve estar perturbando o autor mais atento: por que abrir aqui as mais secretas opiniões sobre a própria produção poética? Bem, primeiro porque não encontrei razão verdadeira para omitir isso, segundo porque é uma maneira de materializar e destribuir os pensamentos, herança do antigo estilo que ainda não me desfiz completamente já que ainda me conforta muito, terceiro porque é a verdade e a verdade é o melhor dos argumentos.
Agora me dêem licença, por favor. Nesse exato instante imagino um lindo poema! Será inclusive um dos pilares do novo edifício poético: 120 andares, com lojas, estacionamentos, escritórios, academias de musculação, cinemas, restaurante na cobertura com vista panorâmica para toda a cidade e ainda rampa de pulo para paraquedistas! Espero que todos se divirtam tanto quanto eu e apreciem as novas instalações.
Como o passar do tempo em relação aos edifícios de arquitetura neoclássica, a chuva, o vento, o sol violentaram também os meus versos e fizeram crescer ramos de sabambaia, longas línguas pretas pela parede, desbotamento das cores da pintura, enegrescimento das faces das estatuetas que guardavam o portão no alto das colunas.
Andei pelos corredores do meu palácio poético e os fiz ranger as velhas tábuas do piso com os meus passos decididos, e fiquei assustado quando o vento fez bater as portas e janelas, lançando ao chão fragmentos da madeira apodrecida. A casa respondia à minha presença como um velho defende-se da agressão que sabe que sofrerá em seguida, mas pela própria debilidade trazida pelo tempo, sabe que não tem chances de sucesso, sobra a raiva.
Olhei dentro dos quartos e senti um cheiro de outros tempos. Lembrei-me doutros amores e medos, de outros pensamentos noutras avenidas, priorizados então os primeiros sentimentos. Na antiga pretensão, quase infantil, de reduzir tudo a um verso rancoroso e feroz, reluziu para mim meu maroto jeito de esperar o inesperado surgir de repente, trazendo a solução que, à parte da fé que eu tinha, não veio. Num tempo em que eu achava que o amor das cobras selvagens continha alguma paixão, olhava-as com respeito, mas hoje está tudo desmentido!
Analisando cruamente a culpa é toda minha, por óbvio. Isso de colocar a culpa no vento, no sol e na chuva é um argumentozinho metafórico muito besta! Eu fui quebrando secretamente nas madrugadas os pilares desse edifício poético e passei a maldizer as antigas verdades como que tentando saber se sobreviveria com altivez a minha própria renúncia de natureza e embora o processo não esteja ainda totalmente completado, sei que a tampa da banheira foi retirada e a água está indo embora com muito boa vontade, essas leis naturais são mesmo muito prestativas. Versos novos são a nova água para meu banho. Versos mais encorpados de um bom carinho e tempero de inteligência, sim, versos assim merecem o papel. Tenho pensado em poetas inspiradores de tempos mais remotos, como William Blake e mesmo Oscar Wilde que lia muito antes de entrar para a universidade. Esses poetas tem um estilo muito particularmente esculpido nas paixões e pensamentos parametrados em coisas verdadeiras. Blake foi um iconoclasta, Wilde um inovador genial, neles talvez encontre riso e prazer pra pensar em versos meus mais afetos ao meu atual propósito.
Resta uma resposta que deve estar perturbando o autor mais atento: por que abrir aqui as mais secretas opiniões sobre a própria produção poética? Bem, primeiro porque não encontrei razão verdadeira para omitir isso, segundo porque é uma maneira de materializar e destribuir os pensamentos, herança do antigo estilo que ainda não me desfiz completamente já que ainda me conforta muito, terceiro porque é a verdade e a verdade é o melhor dos argumentos.
Agora me dêem licença, por favor. Nesse exato instante imagino um lindo poema! Será inclusive um dos pilares do novo edifício poético: 120 andares, com lojas, estacionamentos, escritórios, academias de musculação, cinemas, restaurante na cobertura com vista panorâmica para toda a cidade e ainda rampa de pulo para paraquedistas! Espero que todos se divirtam tanto quanto eu e apreciem as novas instalações.
quinta-feira, março 10, 2005
Estrela derradeira
Se a nostalgia é um sentimento ligado quase sempre aos que são mais velhos e vivem se queixando das 'modernidades' e elevando os 'bons tempos que não voltam mais', tenho que recusar a partir de agora esse arquétipo.
Talvez a nostalgia não surja do fundo abissal do oceano por acaso, talvez surja pela tristeza de não se ter mais, é um sentimento de perda. Com esse caráter a nostalgia e a melancolia dão as mãos para rememorações bem quietas e silenciosas, carregadas de apego e inconformismo com a sugestão do desapego.
A amizade que enfraquece e acaba, o amor que se aflige e se machuca, a boa conversa que não se repete, a felicidade agora impossível de ser como antes tem de mudar o tom. Tem de se colorir com sorrisos novos, tem de levantar alto novos sonhos, tem que se convencer doutras vias para alcançar a paz, porém, a tentação de antes é poderosa e pode-se, ao experimentá-la, ter noção do lamento dos velhinhos.
Como uma escavadeira que remexe entulhos e faz brotar da terra sobreposta cadáveres em decomposição que ainda guardam as expressões humanas, cadáveres vivos para o resto do mundo, mas que morreram para aquele amor que os uniu um dia e dessa morte emparelhada contra a parede da realidade não cabe tentativa de reanimação, não há pára-médico que acuda, nem extrema-unção que liberte do tormento: o zumbi continua nos pensamentos.
Entre essas lembranças, sempre vivas no coração e não mais vivas na realidade, o lado bom e feliz de cada qual contribui na mesma medida para a angústia de ter acabado e vem aqueles suspiros sem muito exagero, sem muito ânimo, mas que denunciam esse toque que não toca mais, esse emaranhado de sentimentos, esse complexo adorno que ficou depois que a banda foi-se e parou de tocar a melodia para a dança, até então, bastante animada.
Como no fim da madrugada eu procurava a última estrela a morrer ante a luz do novo dia. O grande prazer de olhar o céu cinza quase azul e buscar nele aquela estrela mais forte que as outras, a que resistiria mais e mais e brilharia porque queria me entregar alguma fé na vida.
Quando eu a encontrava eu ficava feliz, e tomava um suspiro daquele ar frio da manhã ainda pequena. Pensava que estava tudo bem e de certo estava. Achava que esse sinal iria me privar de duvidar do que eu sentia e pensava, queria muito que fosse assim.
A estrela derradeira também morre conforme cresce a manhã, conforme o sol enche o céu com mais luz e fica sem rival a desfilar por horas seguidas a sua supremacia.
Mas de novo vem a noite, vêm as estrelas, a madrugada das dúvidas e dos ventos, e a manhã da vida traz de volta a estrela derradeira.
Lá no alto, num canto perdido do espaço, ainda brilha, como há tanto tempo atrás também brilhava do mesmo modo. Ela liberta essa grande nostalgia de ser só memória com uma decisão que lembrou num susto a minha própria decisão em seguir os meus caminhos, e nessa empolgação de rir, de falar, de beijar, de ouvir, de sentir, brilhou por um instante como brilhava antes e olhando o céu eu me lembrei, entristeci e depois sorri.
Talvez a nostalgia não surja do fundo abissal do oceano por acaso, talvez surja pela tristeza de não se ter mais, é um sentimento de perda. Com esse caráter a nostalgia e a melancolia dão as mãos para rememorações bem quietas e silenciosas, carregadas de apego e inconformismo com a sugestão do desapego.
A amizade que enfraquece e acaba, o amor que se aflige e se machuca, a boa conversa que não se repete, a felicidade agora impossível de ser como antes tem de mudar o tom. Tem de se colorir com sorrisos novos, tem de levantar alto novos sonhos, tem que se convencer doutras vias para alcançar a paz, porém, a tentação de antes é poderosa e pode-se, ao experimentá-la, ter noção do lamento dos velhinhos.
Como uma escavadeira que remexe entulhos e faz brotar da terra sobreposta cadáveres em decomposição que ainda guardam as expressões humanas, cadáveres vivos para o resto do mundo, mas que morreram para aquele amor que os uniu um dia e dessa morte emparelhada contra a parede da realidade não cabe tentativa de reanimação, não há pára-médico que acuda, nem extrema-unção que liberte do tormento: o zumbi continua nos pensamentos.
Entre essas lembranças, sempre vivas no coração e não mais vivas na realidade, o lado bom e feliz de cada qual contribui na mesma medida para a angústia de ter acabado e vem aqueles suspiros sem muito exagero, sem muito ânimo, mas que denunciam esse toque que não toca mais, esse emaranhado de sentimentos, esse complexo adorno que ficou depois que a banda foi-se e parou de tocar a melodia para a dança, até então, bastante animada.
Como no fim da madrugada eu procurava a última estrela a morrer ante a luz do novo dia. O grande prazer de olhar o céu cinza quase azul e buscar nele aquela estrela mais forte que as outras, a que resistiria mais e mais e brilharia porque queria me entregar alguma fé na vida.
Quando eu a encontrava eu ficava feliz, e tomava um suspiro daquele ar frio da manhã ainda pequena. Pensava que estava tudo bem e de certo estava. Achava que esse sinal iria me privar de duvidar do que eu sentia e pensava, queria muito que fosse assim.
A estrela derradeira também morre conforme cresce a manhã, conforme o sol enche o céu com mais luz e fica sem rival a desfilar por horas seguidas a sua supremacia.
Mas de novo vem a noite, vêm as estrelas, a madrugada das dúvidas e dos ventos, e a manhã da vida traz de volta a estrela derradeira.
Lá no alto, num canto perdido do espaço, ainda brilha, como há tanto tempo atrás também brilhava do mesmo modo. Ela liberta essa grande nostalgia de ser só memória com uma decisão que lembrou num susto a minha própria decisão em seguir os meus caminhos, e nessa empolgação de rir, de falar, de beijar, de ouvir, de sentir, brilhou por um instante como brilhava antes e olhando o céu eu me lembrei, entristeci e depois sorri.
quarta-feira, março 09, 2005
Turmalinas
Depois de passar por mais de duas centenas de vezes pela frente de um edifício próximo à minha casa, percebi que seu nome é "Turmalinas", fato que ocupou meus pensamentos, sempre a fazer conexões e a buscar sentidos em todas as coisas.
Imaginei que deveria ter sido idéia da construtora ao lançar os apartamentos à venda dar aquele nome, talvez tivesse pensado em batizar o prédio desta maneira para demonstrar alguma coisa. Se fosse para demonstrar o significado de turmalina, o prédio remeteria à ser a falsa jóia, ou melhor, a jóia de menor valor. Ainda tratando-se de alguém que conhece a poesia da história de Minas Gerais, essa pedra está envolvida na história das bandeiras do século XVII, expedições formadas sobretudo por paulistas que empenhavam-se em concontrar pedras e metais preciosos no Brasil, sobretudo nas latitudes correspondentes à exploração da prata em Potosi, na Bolívia, onde os espanhóis haviam tido êxito nesse propósito.
Estimulado pelas promessas de prêmios e de honrarias(títulos de nobreza), o bandeirante Fernão Dias, famoso apresador de índios, partiu de São Paulo, em 1674, à procura de prata e esmeraldas. Durante sete anos, sua bandeira percorreu os sertões mineiros, partindo de São Paulo à cabeceira do Rio das Velhas até a região do Serro Frio.
Conhecido como o "caçador de esmeraldas", Dias foi responsavel pelo estabelecimento de vários arraiais, desbravando verdadeiramente regiões que não eram conhecidas por europeus.
Sua bandeira, entretanto, não viveu momentos sempre gloriosos. Composta por seu filho Garcia Rodrigues Pais, Matias Cardoso de Almeida, seu genro, Manuel Borba Gato e seu filho bastardo, José Dias Pais, padeceu de um incidente de insurreição levantado por esse último, que acusado de traição, foi condenado à morte e enforcado por seus companheiros.
Imaginando ter encontrado esmeraldas, a bandeira regressa e antes dela chega a notícia do seu êxito. Fernão Dias morre mesmo acreditando ter encontrado esmeraldas, mas na verdade tratava-se de turmalinas, gemas que quase não tem valor.
A saga deste célebre bandeirante paulista talvez tenha sido o motivo do batismo desse edifício como "Turmalinas", remetendo ao fato de ser uma jóia, sim, mas uma jóia de valor menor, que não merece tanto apego quanto parece à primeira vista.
Se a idéia foi essa, não deixa de soar estranho morar num lugar que tenha esse espírito. Como se respondesse à alguém que pergunta: "moro nas 'Turmalinas', aquele edifício que parece uma esmeralda, mas é só uma gema de menor valor". Acho quase impossível alguém responder isso, na verdade, mas se eu morasse lá e alguém me perguntasse, eu iria sempre pensar nessa resposta e seria dificílimo responder: "moro nas "Turmalinas", aquele edifício em frente à praça de São Mateus".
Mas o que parece no fim das contas é que estou abstraindo demais, talvez porque seja um entusiasta da saga de Fernão Dias, talvez por sempre procurar sentido nos nomes das coisas, o mais razoável é pensar que a idéia desse nome ao edifício foi quase ao acaso, o batizador, por misteriosas e pessoais razões, gosta desse nome, quando muito de turmalinas, e achou que seria bastante e suficiente esse nome e essa é a melhor das apostas.
Da minha parte, entretanto, nunca moraria nesse prédio.
Imaginei que deveria ter sido idéia da construtora ao lançar os apartamentos à venda dar aquele nome, talvez tivesse pensado em batizar o prédio desta maneira para demonstrar alguma coisa. Se fosse para demonstrar o significado de turmalina, o prédio remeteria à ser a falsa jóia, ou melhor, a jóia de menor valor. Ainda tratando-se de alguém que conhece a poesia da história de Minas Gerais, essa pedra está envolvida na história das bandeiras do século XVII, expedições formadas sobretudo por paulistas que empenhavam-se em concontrar pedras e metais preciosos no Brasil, sobretudo nas latitudes correspondentes à exploração da prata em Potosi, na Bolívia, onde os espanhóis haviam tido êxito nesse propósito.
Estimulado pelas promessas de prêmios e de honrarias(títulos de nobreza), o bandeirante Fernão Dias, famoso apresador de índios, partiu de São Paulo, em 1674, à procura de prata e esmeraldas. Durante sete anos, sua bandeira percorreu os sertões mineiros, partindo de São Paulo à cabeceira do Rio das Velhas até a região do Serro Frio.
Conhecido como o "caçador de esmeraldas", Dias foi responsavel pelo estabelecimento de vários arraiais, desbravando verdadeiramente regiões que não eram conhecidas por europeus.
Sua bandeira, entretanto, não viveu momentos sempre gloriosos. Composta por seu filho Garcia Rodrigues Pais, Matias Cardoso de Almeida, seu genro, Manuel Borba Gato e seu filho bastardo, José Dias Pais, padeceu de um incidente de insurreição levantado por esse último, que acusado de traição, foi condenado à morte e enforcado por seus companheiros.
Imaginando ter encontrado esmeraldas, a bandeira regressa e antes dela chega a notícia do seu êxito. Fernão Dias morre mesmo acreditando ter encontrado esmeraldas, mas na verdade tratava-se de turmalinas, gemas que quase não tem valor.
A saga deste célebre bandeirante paulista talvez tenha sido o motivo do batismo desse edifício como "Turmalinas", remetendo ao fato de ser uma jóia, sim, mas uma jóia de valor menor, que não merece tanto apego quanto parece à primeira vista.
Se a idéia foi essa, não deixa de soar estranho morar num lugar que tenha esse espírito. Como se respondesse à alguém que pergunta: "moro nas 'Turmalinas', aquele edifício que parece uma esmeralda, mas é só uma gema de menor valor". Acho quase impossível alguém responder isso, na verdade, mas se eu morasse lá e alguém me perguntasse, eu iria sempre pensar nessa resposta e seria dificílimo responder: "moro nas "Turmalinas", aquele edifício em frente à praça de São Mateus".
Mas o que parece no fim das contas é que estou abstraindo demais, talvez porque seja um entusiasta da saga de Fernão Dias, talvez por sempre procurar sentido nos nomes das coisas, o mais razoável é pensar que a idéia desse nome ao edifício foi quase ao acaso, o batizador, por misteriosas e pessoais razões, gosta desse nome, quando muito de turmalinas, e achou que seria bastante e suficiente esse nome e essa é a melhor das apostas.
Da minha parte, entretanto, nunca moraria nesse prédio.
segunda-feira, março 07, 2005
Política, poder e alienação da natureza
Na cidade antiga todas as famílias eram de descendentes de fundadores da cidade, o contato com o estrangeiro era uma praga que se evitava a todo custo e o emaranhado das leis que serviam para guiar o comportamento de todos era sagrado, não sendo conhecido senão pelos sacerdotes.
Como toda instituição humana, entretanto, esse modelo de sociedade envelheceu e a própria ordem de brutalidade e violência entre as cidades fez surgir escravos e plebeus no seu meio - pessoas que não pertenciam à cidade, não eram membros de nenhuma família e lá não tinham seus manes, ou seja, seus ancestrais a quem deviam culto sob a condição de ser por eles perseguidos no caso de omissão desse dever.
A cidade de Roma, entretanto, algo como que um século após o fim da monarquia, viu-se na hipóstese de não ter mais plebeus, já que despojados do direito da cidade, absolutamente sem garantias e sendo hostilizados por todas as formas imagináveis, decidiram todos partir para fora dos muros da cidade, indo estabelecer-se no monte sagrado.
Os patrícios celebraram de início a pureza reconquistada da gente romana, formada exclusivamente pelas famílias dos fundadores da cidade e seus clientes (espécie de servos ligados pela religião à família). Entretanto, logo começaram a surgir rumores de que a saída da plebe seria ruim aos propósitos de ambição romana: "como defender-se dos etruscos, dos sabinos, dos outros latinos? Apenas os patrícios não bastariam para tanto e Roma fatalmente seria destruída." Trata-se de um argumento inflamado se considerar-se que Roma era bastante forte para manter-se sozinha, mas sem a plebe não avançaria mais e aqui está o ponto decisivo de toda a questão: a ambição por dominar, subjugar e expandir-se.
A plebe, doutra maneira, não tinha leis, religião, organização de classes e assim, vivia a esmo no monte sagrado, como um bando de cabras inconseqüentes sobre um pasto que não será suficiente para elas por muito tempo, mas que não parecem se importar com isso enquanto pastam. A plebe precisava de Roma, da sua organização social, da religião (mesmo que de modo grosseiro, visto que não poderiam ter deuses lares, já que não descendiam de ninguém).
Assim, o senado romano decidiu chamar de volta a plebe e fez de seus componentes cidadãos romanos.
Pedra no cruzamento da vida, o senado romano tinha tomado sua decisão mais importante em séculos inteiros, uma decisão que asseguraria o constante crescimento do maior império que existiu sobre a terra e ao mesmo tempo o germe maligno que destruiria implacavelmente, ano após ano, a pureza da origem da civilização ocidental, desfazendo a crença no culto dos ancestrais, dos deuses lares, na sacralidade das leis, substituindo o personagem social da família da pátria ou gens (família de origem do fundador da cidade) para a qual toda a vida social voltava-se, para o indivíduo, transmutando da propriedade seu valor sagrado ligado à gens, ou seja, ligado às origens da famílias, a propriedade e o solo eram o símbolo do sangue que se ergue da terra, daí em diante a propriedade adquire pela primeira vez seu valor individual e ordinário que transmuta de mão em mão sem nenhum tipo de formalidade ou significado maior que facilitar trocas e aprofundar diferenças entre classes. Pela primeira vez no ocidente o homem passou a valer pelo que tinha e não pelo que era.
Em troca dessa decisão, Roma ganhou o mundo inteiro nos séculos seguintes, mas perdeu para sempre sua alma, razão inclusive de sua decadência, já que o romano em origem era um fiel seguidor da fé dos seus deuses lares, vivia obedecendo à religião e padeceu pela crise moral e pela falta de crença em si mesma, agonizava sobre os palácios de mármore de Carrara como um sopro sujo de sua alma gloriosa, guerreira, plena de fé e da pretensa verdade de ser a mãe e o centro do mundo todo.
Como toda instituição humana, entretanto, esse modelo de sociedade envelheceu e a própria ordem de brutalidade e violência entre as cidades fez surgir escravos e plebeus no seu meio - pessoas que não pertenciam à cidade, não eram membros de nenhuma família e lá não tinham seus manes, ou seja, seus ancestrais a quem deviam culto sob a condição de ser por eles perseguidos no caso de omissão desse dever.
A cidade de Roma, entretanto, algo como que um século após o fim da monarquia, viu-se na hipóstese de não ter mais plebeus, já que despojados do direito da cidade, absolutamente sem garantias e sendo hostilizados por todas as formas imagináveis, decidiram todos partir para fora dos muros da cidade, indo estabelecer-se no monte sagrado.
Os patrícios celebraram de início a pureza reconquistada da gente romana, formada exclusivamente pelas famílias dos fundadores da cidade e seus clientes (espécie de servos ligados pela religião à família). Entretanto, logo começaram a surgir rumores de que a saída da plebe seria ruim aos propósitos de ambição romana: "como defender-se dos etruscos, dos sabinos, dos outros latinos? Apenas os patrícios não bastariam para tanto e Roma fatalmente seria destruída." Trata-se de um argumento inflamado se considerar-se que Roma era bastante forte para manter-se sozinha, mas sem a plebe não avançaria mais e aqui está o ponto decisivo de toda a questão: a ambição por dominar, subjugar e expandir-se.
A plebe, doutra maneira, não tinha leis, religião, organização de classes e assim, vivia a esmo no monte sagrado, como um bando de cabras inconseqüentes sobre um pasto que não será suficiente para elas por muito tempo, mas que não parecem se importar com isso enquanto pastam. A plebe precisava de Roma, da sua organização social, da religião (mesmo que de modo grosseiro, visto que não poderiam ter deuses lares, já que não descendiam de ninguém).
Assim, o senado romano decidiu chamar de volta a plebe e fez de seus componentes cidadãos romanos.
Pedra no cruzamento da vida, o senado romano tinha tomado sua decisão mais importante em séculos inteiros, uma decisão que asseguraria o constante crescimento do maior império que existiu sobre a terra e ao mesmo tempo o germe maligno que destruiria implacavelmente, ano após ano, a pureza da origem da civilização ocidental, desfazendo a crença no culto dos ancestrais, dos deuses lares, na sacralidade das leis, substituindo o personagem social da família da pátria ou gens (família de origem do fundador da cidade) para a qual toda a vida social voltava-se, para o indivíduo, transmutando da propriedade seu valor sagrado ligado à gens, ou seja, ligado às origens da famílias, a propriedade e o solo eram o símbolo do sangue que se ergue da terra, daí em diante a propriedade adquire pela primeira vez seu valor individual e ordinário que transmuta de mão em mão sem nenhum tipo de formalidade ou significado maior que facilitar trocas e aprofundar diferenças entre classes. Pela primeira vez no ocidente o homem passou a valer pelo que tinha e não pelo que era.
Em troca dessa decisão, Roma ganhou o mundo inteiro nos séculos seguintes, mas perdeu para sempre sua alma, razão inclusive de sua decadência, já que o romano em origem era um fiel seguidor da fé dos seus deuses lares, vivia obedecendo à religião e padeceu pela crise moral e pela falta de crença em si mesma, agonizava sobre os palácios de mármore de Carrara como um sopro sujo de sua alma gloriosa, guerreira, plena de fé e da pretensa verdade de ser a mãe e o centro do mundo todo.
sexta-feira, março 04, 2005
Franja desaparecida
Andava de volta para casa ontem, chovia a continuada chuva de fim de verão, quando revi de relance uma conhecida da faculdade que adorava discutir comigo sobre o valor da vida e sua questão utilitária ante aos valores da democracia e da maioria, na célebre máxima de que "a maioria pode muito, mas não pode tudo", trata-se de ninguém menos que a senhorita Janaína Brulheres.
Com os cabelos presos num longo rabo de cavalo, não tinha mais franja nem optava então pela saia laranja e grená que ficava a meio palmo do joelho, também não tinha camiseta estampada... séria e apressada descendo a avenida dos Andradas, vestia cinza no tailer, com uma camisa feminina num azul bem claro, sapatos pretos de salto médio. Pareceu de relance a metamorfose em transe daquela moça recém-saída da adolescência que eu conheci - nem tão seca e sem vida e nem tão molhada e alegre.
Lembrei-me das suas reclamações comigo na cantina quando suas notas caiam na medida que os seus namorados (no meu último ano de faculdade 2 se alternaram, sempre espaçando o tempo de um mês entre o fim com um e o recomeço com o outro) brigavam entre si e com ela também. Um, chamado André, engenheiro com pai dono de empreiteira e sem talento para engenharia, adorava a maneira como Janaína o desprezava antes de beijá-lo, nas palavras dela "aninha a cabeça no colo e parece não entender que eu não o amo, como se perguntasse para si mesmo 'como ela pode não me amar?' achando-se o melhor produto da prateleira", eu mesmo não gostava quando ela usava esse palavreado de chamar esse rapaz de "produto", mas não interrompia por medo de ceifar aquele momento de frustração e paixão não admitida dela. O outro era quase meu amigo, tinha mesmo boa simpatia por ele, o bom e sincero João Guilherme, freqüentador das boates de má fama nas noites de tristeza, melancólico leitor de Fernando Pessoa, graduando de odontologia que abria as bocas dos pacientes pensando sempre numa mesma boca, na da sua amada Janaína e essa moça, pensando nele, aduzia aos bons lábios para os beijos, ao olhar de incendiar o quarteirão na fúria de frustração, na paciência para falar, na grandissíssima habilidade, invejada por todos os lados no campus universitário, em não demonstrar nunca ciúmes, conversando comigo ele dizia: "há que endurecer, mas sem demonstrar ciúmes jamais!", sofria, é claro, como todo namorado de moça bonita e interessante, mas guardava para si, como tantas outras coisas.
A Janaína olhava para mim e falava que não tinha mais para onde ir nesse mundo, que queria viver com os dois, dar felicidade a ambos, queria que fossem amigos e pensou num plano mirabolante de pedir ao André que conseguisse com o pai dele um apartamento bem grande para os três viverem juntos! Como se estar juntos fosse o bastante para resolver aquele nó górgio que estava dentro do coração dela. Eles a queriam só pra si mesmos, separadamente! Que fique claro! E se tinha que ser assim, se essa paixão de onde e de quando e de como era tão complicada que não tinha saída, Janaína cortou tudo com a espada e deixou cair no chão: nem André, nem João Guilherme, só Janaína, Janaína só.
Da última vez que falamos, poucas semanas antes da minha formatura, ela ainda parecia tão vivaz, tão cheia das bocas e caras que sempre me deixaram tão à vontade de estar com ela, mas também confusa e abatida entre um assunto e outro, enquanto que cada sugestão parecia deixá-la imensamente cansada. Claro, desta última vez estava bem grande a franja.
Quando eu a vi na rua, de repente, a franja já tinha desaparecido. Compondo sua face engajada no mundo de escritórios onde saias laranja e grená são absurdas, Janaína Brulhures estava vestida de mulher para ser levada a sério, pois é sério o fato de no seu coração não haver mais amor nenhum, estava num luto, portanto, e foi assim que sua imagem me pareceu no fim de dia chuvoso e frio do fim do verão. E como o verão, que acaba sem se importar com os órfãos, aquela abundância de amor e desejo de tudo foi embora sem se importar com o sofrimento que sobraria e das marcas de ausência que deixaria na pele dela para provar a audácia de querer toda a felicidade e além.
Com os cabelos presos num longo rabo de cavalo, não tinha mais franja nem optava então pela saia laranja e grená que ficava a meio palmo do joelho, também não tinha camiseta estampada... séria e apressada descendo a avenida dos Andradas, vestia cinza no tailer, com uma camisa feminina num azul bem claro, sapatos pretos de salto médio. Pareceu de relance a metamorfose em transe daquela moça recém-saída da adolescência que eu conheci - nem tão seca e sem vida e nem tão molhada e alegre.
Lembrei-me das suas reclamações comigo na cantina quando suas notas caiam na medida que os seus namorados (no meu último ano de faculdade 2 se alternaram, sempre espaçando o tempo de um mês entre o fim com um e o recomeço com o outro) brigavam entre si e com ela também. Um, chamado André, engenheiro com pai dono de empreiteira e sem talento para engenharia, adorava a maneira como Janaína o desprezava antes de beijá-lo, nas palavras dela "aninha a cabeça no colo e parece não entender que eu não o amo, como se perguntasse para si mesmo 'como ela pode não me amar?' achando-se o melhor produto da prateleira", eu mesmo não gostava quando ela usava esse palavreado de chamar esse rapaz de "produto", mas não interrompia por medo de ceifar aquele momento de frustração e paixão não admitida dela. O outro era quase meu amigo, tinha mesmo boa simpatia por ele, o bom e sincero João Guilherme, freqüentador das boates de má fama nas noites de tristeza, melancólico leitor de Fernando Pessoa, graduando de odontologia que abria as bocas dos pacientes pensando sempre numa mesma boca, na da sua amada Janaína e essa moça, pensando nele, aduzia aos bons lábios para os beijos, ao olhar de incendiar o quarteirão na fúria de frustração, na paciência para falar, na grandissíssima habilidade, invejada por todos os lados no campus universitário, em não demonstrar nunca ciúmes, conversando comigo ele dizia: "há que endurecer, mas sem demonstrar ciúmes jamais!", sofria, é claro, como todo namorado de moça bonita e interessante, mas guardava para si, como tantas outras coisas.
A Janaína olhava para mim e falava que não tinha mais para onde ir nesse mundo, que queria viver com os dois, dar felicidade a ambos, queria que fossem amigos e pensou num plano mirabolante de pedir ao André que conseguisse com o pai dele um apartamento bem grande para os três viverem juntos! Como se estar juntos fosse o bastante para resolver aquele nó górgio que estava dentro do coração dela. Eles a queriam só pra si mesmos, separadamente! Que fique claro! E se tinha que ser assim, se essa paixão de onde e de quando e de como era tão complicada que não tinha saída, Janaína cortou tudo com a espada e deixou cair no chão: nem André, nem João Guilherme, só Janaína, Janaína só.
Da última vez que falamos, poucas semanas antes da minha formatura, ela ainda parecia tão vivaz, tão cheia das bocas e caras que sempre me deixaram tão à vontade de estar com ela, mas também confusa e abatida entre um assunto e outro, enquanto que cada sugestão parecia deixá-la imensamente cansada. Claro, desta última vez estava bem grande a franja.
Quando eu a vi na rua, de repente, a franja já tinha desaparecido. Compondo sua face engajada no mundo de escritórios onde saias laranja e grená são absurdas, Janaína Brulhures estava vestida de mulher para ser levada a sério, pois é sério o fato de no seu coração não haver mais amor nenhum, estava num luto, portanto, e foi assim que sua imagem me pareceu no fim de dia chuvoso e frio do fim do verão. E como o verão, que acaba sem se importar com os órfãos, aquela abundância de amor e desejo de tudo foi embora sem se importar com o sofrimento que sobraria e das marcas de ausência que deixaria na pele dela para provar a audácia de querer toda a felicidade e além.
terça-feira, março 01, 2005
Além do Bojador
Penso nas ambições guardadas dentro do peito. Em segredo imagino que elas conversam entre si. Discutem sobre seus pais: as paixões de que nasceram; elogiam-se mutuamente, guardando uma inveja secreta; riem todas juntas quando aquele que as hospeda no nicho mais sagrado da sua alma resolve alimentar a qualquer delas; choram todas juntas quando esse anfitrião expulsa alguma do coração, deixando-o mais leve, e talvez mais perdido também.
Ambicionar fortuna, reconhecimento, beleza, felicidade... ambicionar ou simplesmente viver, opções igualmente perigosas e igualmente tentadoras. Como seria confortável não desejar nada além de repouso, alimento e sexo: as três necessidades essenciais de um ser humano. De outro lado, as paixões que temos fazem as ambições nossas senhoras e obedecemos cegamente, porque de alguma maneira é prazeroso satisfazer às paixões e ver-nos maiores ou melhores que os outros.
E por ver tanta radicalidade nas coisas do mundo, tanta opressão sem poesia e sem fé, há momentos que sinto toda essa tristeza em mim. Penso na pobreza, na exclusão social, na ignorância, na luxúria, no orgulho, na malícia... um rio imenso, de perder de vista a outra margem, seguindo rumo a um mar não alcança, segue sempre cheio de sujeira, sempre poluído, sempre carregado de determinismo e lágrimas de chumbo.
Suspiro, relaxo, vejo alguma beleza e tento levantar os olhos, e então lembro da minha menina que é sempre tão doce comigo, tão sincera, tão querida. Talvez a rapidez dessa alegria fosse capaz de me tirar da grande cilada da autocompaixão, mas eu morro de medo de trazê-la para dentro desta espiral assassina que gira sem parar dentro da minha cabeça. Incluir seus doces sonhos nas estantes onde repousam as cinzas do que um dia foram os meus, e dar aos seus olhos a visão generosa de não ter medo de nada, ah! visão que eu persigo com tanta sanha! Paixão de ter paz.
Fica bem quietinha cá comigo, entretanto. Fica comigo que através dos olhos dela busco a alavanca que faça parar essa espiral de medo, busco essa resposta para o meu desassossego de não saber, mergulho sem dizer uma palavra na generosidade do seu coração e lá do fundo escuto ecos amorosos que aquecem o frio impertinente da madrugada da minha vida e repetem docemente aquelas suas palavras: "não se preocupe."
A paixão, desta segurança de sentir o amor, desperta a ambição de alimentá-la com todos os esforços, nutri-la de cuidados, cercá-la de zelo e de atenção, submetê-la à fabrica de sonhos da cabeça e fazer surgir dela um lindo adereço para minha vida que traga o nome do meu amor gravado com bastante destaque para que sempre que eu olhe para ele saiba que não preciso mais ter medo de andar pelos becos escuros sem ter a quem perguntar: "o que faço com a minha vida?"
Eu sei, sabendo isso com grande felicidade, que ela diria "vive, simplesmente vive", daí, mais leve por abandonar outra ambição má enquanto abraçava essa nova não menos perigosa, eu viveria além do Bojador e talvez além da dor de sentir.
Hoje, num espetáculo quase demente, minhas ambições choram e riem ao mesmo tempo.
Ambicionar fortuna, reconhecimento, beleza, felicidade... ambicionar ou simplesmente viver, opções igualmente perigosas e igualmente tentadoras. Como seria confortável não desejar nada além de repouso, alimento e sexo: as três necessidades essenciais de um ser humano. De outro lado, as paixões que temos fazem as ambições nossas senhoras e obedecemos cegamente, porque de alguma maneira é prazeroso satisfazer às paixões e ver-nos maiores ou melhores que os outros.
E por ver tanta radicalidade nas coisas do mundo, tanta opressão sem poesia e sem fé, há momentos que sinto toda essa tristeza em mim. Penso na pobreza, na exclusão social, na ignorância, na luxúria, no orgulho, na malícia... um rio imenso, de perder de vista a outra margem, seguindo rumo a um mar não alcança, segue sempre cheio de sujeira, sempre poluído, sempre carregado de determinismo e lágrimas de chumbo.
Suspiro, relaxo, vejo alguma beleza e tento levantar os olhos, e então lembro da minha menina que é sempre tão doce comigo, tão sincera, tão querida. Talvez a rapidez dessa alegria fosse capaz de me tirar da grande cilada da autocompaixão, mas eu morro de medo de trazê-la para dentro desta espiral assassina que gira sem parar dentro da minha cabeça. Incluir seus doces sonhos nas estantes onde repousam as cinzas do que um dia foram os meus, e dar aos seus olhos a visão generosa de não ter medo de nada, ah! visão que eu persigo com tanta sanha! Paixão de ter paz.
Fica bem quietinha cá comigo, entretanto. Fica comigo que através dos olhos dela busco a alavanca que faça parar essa espiral de medo, busco essa resposta para o meu desassossego de não saber, mergulho sem dizer uma palavra na generosidade do seu coração e lá do fundo escuto ecos amorosos que aquecem o frio impertinente da madrugada da minha vida e repetem docemente aquelas suas palavras: "não se preocupe."
A paixão, desta segurança de sentir o amor, desperta a ambição de alimentá-la com todos os esforços, nutri-la de cuidados, cercá-la de zelo e de atenção, submetê-la à fabrica de sonhos da cabeça e fazer surgir dela um lindo adereço para minha vida que traga o nome do meu amor gravado com bastante destaque para que sempre que eu olhe para ele saiba que não preciso mais ter medo de andar pelos becos escuros sem ter a quem perguntar: "o que faço com a minha vida?"
Eu sei, sabendo isso com grande felicidade, que ela diria "vive, simplesmente vive", daí, mais leve por abandonar outra ambição má enquanto abraçava essa nova não menos perigosa, eu viveria além do Bojador e talvez além da dor de sentir.
Hoje, num espetáculo quase demente, minhas ambições choram e riem ao mesmo tempo.
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