Para infelicidade geral da comunidade do meu prédio, terminou ontem um lindo romance entre a senhorita Patrícia e um rapaz mais velho que mora no Alto dos Passos.
Alegria da pracinha do bairro, esse casal parecia ter nascido grudado, como siameses do amor! E então quem dissesse que aquilo acabaria, só faria rir aos outros que admiravam: quanta paixão!
Na mesma medida, que drama imenso infestou aquele prédio! Do lado da minha janela a sala de estar de Patrícia, com seu sofá servindo de colo para seu corpo pulsando lágrima e lamento, eu ouvia sem ter escapatória e ainda preso em casa por achar a menina tão querida e tão decidida em amar daquela maneira, fiquei ainda uns longos minutos escutando as bobagens que ela dizia às almofadas.
De repente um rasgo de tristeza entrou forte entre os sentimentos da relativa paz que eu desfrutava já há uns poucos dias e disse tão asperamente para mim que eu tinha culpa naquilo. Maldita mania que tenho de culpar-me pelas desgraças sentimentais do mundo, como se tivesse cometido mesmo o maior dos crimes sentimentais, minha pena é tomar a culpa de todos os outros e me recriminar pelo sofrimento de quem deixa de achar o amor uma boa idéia!
Mas a dor dela despregou meus medos e os fez suar um pouco junto do meu rosto à janela e chorei um pouco com ela, ambos mudos e irracionais aos fatos, apenas obedecendo ao impulso do instante.
O telefone toca, Patrícia atente, mas não sem antes, tentar secar as narinas e as faces. "Alô, quem é? [...] Sim, só preciso de um banho". Foi ao banheiro, pelo visto apenas lavou o rosto e respirou fundo. Em seguida saiu e bateu à minha porta, o que me fez saltar do sofá num pulo, fui atender, já eram mais de 23hs. "Oi, Patrícia, entre", entrou, e sentou-se no sofá. "Preciso que você vá comigo a um lugar". "Onde?", perguntei surpreso, "No Grama, preciso resolver um problema imediatamente" E olhando os imensos olhos verdes ainda bem vermelhos, olhando a boca cerrada e o cabelo preso como que pronta para atacar o inimigo, ao contrário da suavidade de passear com a juga solta, vi uma Patrícia que não poderia nunca andar sozinha na rua àquelas horas. Fui junto depois de uma dose de conhaque que ela não quis compartilhar comigo.
Chegamos depois de 40 minutos em frente à uma casa, uma velha preta atendeu e chamou Patrícia para perto, fiquei de longe olhando. Ela lhe deu uma sacola com algumas coisas dentro e algum dinheiro, não consegui ver quanto. Falaram pouco, parecia que tudo já havia sido combinado por telefone, não interferi.
Voltou-se para mim já com outro semblante, parecia aliviada. Voltamos com a mesma disposição de conversa da ida, ou seja, nenhuma, mas dessa vez não me contive: "Então está mandando lavar a roupa longe de casa?" E me olhando com algum carinho da nossa amizade tão inconstante, mas de tanta afinidade despejou no meu colo aquela sentença cheia de piedade "Ele vai se apaixonar de novo, é o que eu mais quero, mas eu não."
Não sei porque tenho por amigos gente tão generosa, gente ao mesmo tempo tão desprendida desses vícios urbanos de uso e desuso... Depois de tanto grito, de tanto choro, de tanta briga, sobrou para ela não se apaixonar e apenas isso pedia à feiticeira naquela madrugada. Pediu com toda a força do dinheiro e do desespero que secasse toda a empolgação que irrigou no corpo o êxtase que entregou ao rapaz na forma de amor sem medo e que recebeu dele uma traição continuada e uma explicação esfarrapada.
Ao mesmo tempo, eu senti um medo repentino de estar ali com ela, como que se uma palavra errada me colocasse na lista de magia negra de minha vizinha e arrepiei olhando o seu olhar decidido e já seco.
Entramos no prédio, fomos juntos e calados subindo as escadas. "Obrigado, querido, tava com medo". "Eu também, Patrícia". Ela sorriu, entendendo perfeitamente e disse "amanhã tudo volta ao normal, ao menos o que tiver sobrado". Despedimo-nos e entramos com esse mesmo desejo.