Andava de volta para casa ontem, chovia a continuada chuva de fim de verão, quando revi de relance uma conhecida da faculdade que adorava discutir comigo sobre o valor da vida e sua questão utilitária ante aos valores da democracia e da maioria, na célebre máxima de que "a maioria pode muito, mas não pode tudo", trata-se de ninguém menos que a senhorita Janaína Brulheres.
Com os cabelos presos num longo rabo de cavalo, não tinha mais franja nem optava então pela saia laranja e grená que ficava a meio palmo do joelho, também não tinha camiseta estampada... séria e apressada descendo a avenida dos Andradas, vestia cinza no tailer, com uma camisa feminina num azul bem claro, sapatos pretos de salto médio. Pareceu de relance a metamorfose em transe daquela moça recém-saída da adolescência que eu conheci - nem tão seca e sem vida e nem tão molhada e alegre.
Lembrei-me das suas reclamações comigo na cantina quando suas notas caiam na medida que os seus namorados (no meu último ano de faculdade 2 se alternaram, sempre espaçando o tempo de um mês entre o fim com um e o recomeço com o outro) brigavam entre si e com ela também. Um, chamado André, engenheiro com pai dono de empreiteira e sem talento para engenharia, adorava a maneira como Janaína o desprezava antes de beijá-lo, nas palavras dela "aninha a cabeça no colo e parece não entender que eu não o amo, como se perguntasse para si mesmo 'como ela pode não me amar?' achando-se o melhor produto da prateleira", eu mesmo não gostava quando ela usava esse palavreado de chamar esse rapaz de "produto", mas não interrompia por medo de ceifar aquele momento de frustração e paixão não admitida dela. O outro era quase meu amigo, tinha mesmo boa simpatia por ele, o bom e sincero João Guilherme, freqüentador das boates de má fama nas noites de tristeza, melancólico leitor de Fernando Pessoa, graduando de odontologia que abria as bocas dos pacientes pensando sempre numa mesma boca, na da sua amada Janaína e essa moça, pensando nele, aduzia aos bons lábios para os beijos, ao olhar de incendiar o quarteirão na fúria de frustração, na paciência para falar, na grandissíssima habilidade, invejada por todos os lados no campus universitário, em não demonstrar nunca ciúmes, conversando comigo ele dizia: "há que endurecer, mas sem demonstrar ciúmes jamais!", sofria, é claro, como todo namorado de moça bonita e interessante, mas guardava para si, como tantas outras coisas.
A Janaína olhava para mim e falava que não tinha mais para onde ir nesse mundo, que queria viver com os dois, dar felicidade a ambos, queria que fossem amigos e pensou num plano mirabolante de pedir ao André que conseguisse com o pai dele um apartamento bem grande para os três viverem juntos! Como se estar juntos fosse o bastante para resolver aquele nó górgio que estava dentro do coração dela. Eles a queriam só pra si mesmos, separadamente! Que fique claro! E se tinha que ser assim, se essa paixão de onde e de quando e de como era tão complicada que não tinha saída, Janaína cortou tudo com a espada e deixou cair no chão: nem André, nem João Guilherme, só Janaína, Janaína só.
Da última vez que falamos, poucas semanas antes da minha formatura, ela ainda parecia tão vivaz, tão cheia das bocas e caras que sempre me deixaram tão à vontade de estar com ela, mas também confusa e abatida entre um assunto e outro, enquanto que cada sugestão parecia deixá-la imensamente cansada. Claro, desta última vez estava bem grande a franja.
Quando eu a vi na rua, de repente, a franja já tinha desaparecido. Compondo sua face engajada no mundo de escritórios onde saias laranja e grená são absurdas, Janaína Brulhures estava vestida de mulher para ser levada a sério, pois é sério o fato de no seu coração não haver mais amor nenhum, estava num luto, portanto, e foi assim que sua imagem me pareceu no fim de dia chuvoso e frio do fim do verão. E como o verão, que acaba sem se importar com os órfãos, aquela abundância de amor e desejo de tudo foi embora sem se importar com o sofrimento que sobraria e das marcas de ausência que deixaria na pele dela para provar a audácia de querer toda a felicidade e além.