Na cidade antiga todas as famílias eram de descendentes de fundadores da cidade, o contato com o estrangeiro era uma praga que se evitava a todo custo e o emaranhado das leis que serviam para guiar o comportamento de todos era sagrado, não sendo conhecido senão pelos sacerdotes.
Como toda instituição humana, entretanto, esse modelo de sociedade envelheceu e a própria ordem de brutalidade e violência entre as cidades fez surgir escravos e plebeus no seu meio - pessoas que não pertenciam à cidade, não eram membros de nenhuma família e lá não tinham seus manes, ou seja, seus ancestrais a quem deviam culto sob a condição de ser por eles perseguidos no caso de omissão desse dever.
A cidade de Roma, entretanto, algo como que um século após o fim da monarquia, viu-se na hipóstese de não ter mais plebeus, já que despojados do direito da cidade, absolutamente sem garantias e sendo hostilizados por todas as formas imagináveis, decidiram todos partir para fora dos muros da cidade, indo estabelecer-se no monte sagrado.
Os patrícios celebraram de início a pureza reconquistada da gente romana, formada exclusivamente pelas famílias dos fundadores da cidade e seus clientes (espécie de servos ligados pela religião à família). Entretanto, logo começaram a surgir rumores de que a saída da plebe seria ruim aos propósitos de ambição romana: "como defender-se dos etruscos, dos sabinos, dos outros latinos? Apenas os patrícios não bastariam para tanto e Roma fatalmente seria destruída." Trata-se de um argumento inflamado se considerar-se que Roma era bastante forte para manter-se sozinha, mas sem a plebe não avançaria mais e aqui está o ponto decisivo de toda a questão: a ambição por dominar, subjugar e expandir-se.
A plebe, doutra maneira, não tinha leis, religião, organização de classes e assim, vivia a esmo no monte sagrado, como um bando de cabras inconseqüentes sobre um pasto que não será suficiente para elas por muito tempo, mas que não parecem se importar com isso enquanto pastam. A plebe precisava de Roma, da sua organização social, da religião (mesmo que de modo grosseiro, visto que não poderiam ter deuses lares, já que não descendiam de ninguém).
Assim, o senado romano decidiu chamar de volta a plebe e fez de seus componentes cidadãos romanos.
Pedra no cruzamento da vida, o senado romano tinha tomado sua decisão mais importante em séculos inteiros, uma decisão que asseguraria o constante crescimento do maior império que existiu sobre a terra e ao mesmo tempo o germe maligno que destruiria implacavelmente, ano após ano, a pureza da origem da civilização ocidental, desfazendo a crença no culto dos ancestrais, dos deuses lares, na sacralidade das leis, substituindo o personagem social da família da pátria ou gens (família de origem do fundador da cidade) para a qual toda a vida social voltava-se, para o indivíduo, transmutando da propriedade seu valor sagrado ligado à gens, ou seja, ligado às origens da famílias, a propriedade e o solo eram o símbolo do sangue que se ergue da terra, daí em diante a propriedade adquire pela primeira vez seu valor individual e ordinário que transmuta de mão em mão sem nenhum tipo de formalidade ou significado maior que facilitar trocas e aprofundar diferenças entre classes. Pela primeira vez no ocidente o homem passou a valer pelo que tinha e não pelo que era.
Em troca dessa decisão, Roma ganhou o mundo inteiro nos séculos seguintes, mas perdeu para sempre sua alma, razão inclusive de sua decadência, já que o romano em origem era um fiel seguidor da fé dos seus deuses lares, vivia obedecendo à religião e padeceu pela crise moral e pela falta de crença em si mesma, agonizava sobre os palácios de mármore de Carrara como um sopro sujo de sua alma gloriosa, guerreira, plena de fé e da pretensa verdade de ser a mãe e o centro do mundo todo.