quinta-feira, março 10, 2005

Estrela derradeira

Se a nostalgia é um sentimento ligado quase sempre aos que são mais velhos e vivem se queixando das 'modernidades' e elevando os 'bons tempos que não voltam mais', tenho que recusar a partir de agora esse arquétipo.
Talvez a nostalgia não surja do fundo abissal do oceano por acaso, talvez surja pela tristeza de não se ter mais, é um sentimento de perda. Com esse caráter a nostalgia e a melancolia dão as mãos para rememorações bem quietas e silenciosas, carregadas de apego e inconformismo com a sugestão do desapego.
A amizade que enfraquece e acaba, o amor que se aflige e se machuca, a boa conversa que não se repete, a felicidade agora impossível de ser como antes tem de mudar o tom. Tem de se colorir com sorrisos novos, tem de levantar alto novos sonhos, tem que se convencer doutras vias para alcançar a paz, porém, a tentação de antes é poderosa e pode-se, ao experimentá-la, ter noção do lamento dos velhinhos.
Como uma escavadeira que remexe entulhos e faz brotar da terra sobreposta cadáveres em decomposição que ainda guardam as expressões humanas, cadáveres vivos para o resto do mundo, mas que morreram para aquele amor que os uniu um dia e dessa morte emparelhada contra a parede da realidade não cabe tentativa de reanimação, não há pára-médico que acuda, nem extrema-unção que liberte do tormento: o zumbi continua nos pensamentos.
Entre essas lembranças, sempre vivas no coração e não mais vivas na realidade, o lado bom e feliz de cada qual contribui na mesma medida para a angústia de ter acabado e vem aqueles suspiros sem muito exagero, sem muito ânimo, mas que denunciam esse toque que não toca mais, esse emaranhado de sentimentos, esse complexo adorno que ficou depois que a banda foi-se e parou de tocar a melodia para a dança, até então, bastante animada.
Como no fim da madrugada eu procurava a última estrela a morrer ante a luz do novo dia. O grande prazer de olhar o céu cinza quase azul e buscar nele aquela estrela mais forte que as outras, a que resistiria mais e mais e brilharia porque queria me entregar alguma fé na vida.
Quando eu a encontrava eu ficava feliz, e tomava um suspiro daquele ar frio da manhã ainda pequena. Pensava que estava tudo bem e de certo estava. Achava que esse sinal iria me privar de duvidar do que eu sentia e pensava, queria muito que fosse assim.
A estrela derradeira também morre conforme cresce a manhã, conforme o sol enche o céu com mais luz e fica sem rival a desfilar por horas seguidas a sua supremacia.
Mas de novo vem a noite, vêm as estrelas, a madrugada das dúvidas e dos ventos, e a manhã da vida traz de volta a estrela derradeira.
Lá no alto, num canto perdido do espaço, ainda brilha, como há tanto tempo atrás também brilhava do mesmo modo. Ela liberta essa grande nostalgia de ser só memória com uma decisão que lembrou num susto a minha própria decisão em seguir os meus caminhos, e nessa empolgação de rir, de falar, de beijar, de ouvir, de sentir, brilhou por um instante como brilhava antes e olhando o céu eu me lembrei, entristeci e depois sorri.