domingo, maio 24, 2009

A Travessa da Esperança

Não vás tão docilmente

Não vás tão docilmente nesta noite linda:
Que a velhice arda e brade ao término do dia;
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Embora o sábio entenda que a treva é bem vinda
Quando a palavra já perdeu toda a magia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O justo, à última onda, ao entrever, ainda,
Seus débeis dons dançando ao verde da baía,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda,
Sem saber que o feriu com a sua ousadia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da
Aurora astral que o seu olhar incendearia,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Assim, meu pai, do alto que nos deslinda,
Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia:
Não vás tão docilmente nessa noite linda,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.



Dylan Thomas

É uma travessa curta e estreita. Não chegou em tamanho e proporções para ser chamada rua, não era tão estreita para ser beco, é uma travessa, mas não é uma travessa qualquer: falamos da travessa da esperança.
Estimosa via junto ao Largo Rangel de Sampaio, localizada aqui na boa e mui antiga freguesia da Sé Nova, lar dos estudantes e dos senhores mais velhos e ponto de encontro para a conversa matutina da dona Fernanda e da dona Afonsa e das empregadas da residência universitária.
Escolho a ela e não a outras mais famosas e prestigiadas vias para as minhas inscurções à Baixa. Prefiro essa humildade cantada e discreta quando, de frente para a minha janela, dá-me a tranquilidade de sua (talvez) involuntária expressão poética.
É ali que espreito, todas as manhãs, o sol chegar primeiro e iluminar a bela roseira do jardim da casa ao lado enquanto que pela rua e sobre os carros os gatos mais bonitos de Coimbra estiram-se e numa divina paz de consciência aquecem-se aos raios meigos da manhã nova. Em volta, um mundo de desassossego parece não se dar conta de tanta fortuna, de tanto mérito, de tanta poesia.
Um grito de pavor, um amor verdadeiro falhado, um bilhete arrasador, um constrangimento, um abuso, um sem número de tragédias... Um cortejo de carnaval, um passeio de domingo, um abraço de reencontro, um sorriso amigo no lado oposto, um sem número de glórias... Tanto há na vida! Quanta coisa por fazer, quanto por viver, quanto por atravessar!
Na perseverança de um dia poder me aquecer de manhã como fazem aqueles gatos, continuo sempre a optar pela Travessa da Esperança.

quarta-feira, maio 06, 2009

A redenção pelo amor

Saiu de casa após o jantar sem o casaco, era uma noitinha quente como essas que vamos tendo agora na primavera, o que contribuia para ter o pensamento leve. Nas suas roupas um cheiro forte de alecrim, na pele um frescor de menta, aroma seu que a brisa docemente carregava consigo.
A essa imagem da boa composição de seu aspecto, à doçura de seus gestos e simplicidade das palavras, contrastava o que trazia dentro de si e que não se lia senão num fugaz fixar dos olhos vez por outra. Tentavam ver para além da vista que havia diante de si, tentavam alcançá-la na incorruptível paisagem dos seus sonhos, em que seu grande sorriso de bonança iluminava e aquecia como o próprio sol, o sol de sua vida.
As lembranças desses e doutros gestos assaltavam-no, no descuido de qualquer pensamento inocente era levado a cabo para ouvir a voz a dizer a certeza e o carinho, estava de novo presente para testemunhar a paisagem plena daquela presença, na atmosfera à sua volta o ar novamente vibrava com aquele riso, a mesma curiosa combinação de elementos que orbitava a mulher que como nenhuma outra percorreu os caminhos sinuosos que levavam ao seu coração.
Esperavam-no na tasca, seu copo já estava cheio e os abraços dos amigos ansiosamente à sua espera. Sua vida vinha tornando para caminhos demasiado previsíveis e aquela noite parecia como todas as outras em que negava a si mesmo: estéril e maçante, tudo aquilo a que diligentemente adimplia na vida, todos os seus dedicados esforços de êxito, suas noites longas de trabalho, nada daquilo tinha brilho, nada comunicava-lhe valor. Resignado, aceitava e seguia, sempre seguia em frente, não por gostar do que poderia o futuro trazer-lhe, simplesmente havia bons motivos maus, como o orgulho e a teimosia. Alguma coisa lhe provocara um impulso de revolta, entretanto.
Naquela noite depois de deixar a casa, sem que nenhuma estrela tivesse despencado do céu, sem que tivesse ganhado a lotaria, sem que nada de especial tivesse provocado o resultado, encontrava-se completamente convicto de sua condição: amaria.
Subitamente, seu coração ardeu à intensidade do sonho e lhe soube bem ter a face quente pela emoção e então quis que ardesse até a própria cinza, à grandeza de ser redimido pelo amor que tinha em si, violado e domado, naquela noite, exaltado.
Olhou a lua apaixonadamente e mandou-lhe um beijo com as mãos e disse para si mesmo o nome da mulher que amava e sentiu sobre o seu rosto o aproximar do seu rosto, o toque das suas mãos, a completude do mundo e do sentido de tudo que havia no seu abraço.
À condição do segredo e do destino, continuou resoluto o percurso. Ao chegar à tasca ouviu seu nome ser gritado, em seguida os copos ao alto: soube então que estava para sempre redimido.

terça-feira, abril 21, 2009

O mais profundo desejo

Ai de quem gritar outro nome! Não há, meus amigos, não há desejo nenhum maior do que o de ser livre. Podem tirar do homem os seus bens, o seu conforto e até o futebol aos domingos, mas é sempre demasiado cruel retirar-lhe a capacidade de decidir por si e assim, por ele mesmo, definir o seu destino, a sua fortuna, pelas suas próprias escolhas.
O amor à liberdade tem subido às cabeças e as vidas de milhões de jovens foram sacrificadas nas guerras do século passado (e de tantos séculos antes...) em defesa desse ideal.
Hoje é o dia de Tiradentes, o meu herói. Um homem que de seu, além dos instrumentos de dentista e de umas poucas mudas de roupa, tinha o ideal da liberdade a arder a cada respiração sua. Queria-a para si, mas também a queria para todos os outros e, principalmente para sua pátria. Traído por duas vezes, preso e quando do seu julgamento, quando confrontado com a possibilidade de trocar uma sentença de morte por uma de degredo no caso de negar a sua fé na independência do Brasil e jurar fidelidade à D. Maria I, preferiu sacrificar a própria vida do que negar aquilo que lhe dava mais sentido. Fê-lo honradamente, com a sua dignidade revolucionária que tantos outros contagiou mas que esses não partilharam ao ponto de partilhar com ele o mesmo destino e, por isso mesmo, ele é que é o herói que merece ser lembrado e, mais ainda, reverencidado pelo legado que nos deixou.
Curiosamente, nessa mesma semana comemora-se um outro dia de orgulho para a liberdade do mundo. Há quase 35 anos, jovens oficiais das forças armadas portuguesas, em associação com diferentes forças da sociedade e expressando um desejo uníssono do povo português, resolveram terminar com uma ditadura despótica e envelhecida, uma que privava as mulheres do direito de voto e que tinha lançado a juventude portuguesa ao sacrifício vão de uma guerra injusta por longos 13 anos. O 25 de Abril trouxe liberdade política à Portugal e às antigas colónias, que foram libertas do julgo da metrópole, mas não só isso, trouxe consigo uma corrente morna, embuída de convicto cheiro de cravos, de que era possível ter esperança em uma vida mais feliz e mais digna, em que os destinos que se revelassem, bons ou maus, teriam sido aqueles que foram escolhidos pelas pessoas, em liberdade, e não por qualquer outro que quisesse decidir por elas.
Essa corrente de sentimento ainda circula por esse valente e heróico país. Está nas mentes e nos corações, a impulsionar a todos com a sua força vibrante, a redimir das misérias, a trazer esperança quando das tristezas no seu significado de amor à liberdade e por isso, deve ser celebrado sempre.
Nesse 25 de Abril, mais que nos outros dias todos do ano, lembremo-nos daqueles que viveram sob a repressão e a tirania e sofreram-nas para que hoje pudéssemos escolher por nós mesmos, mas lembremos sobretudo de que o que moveu aqueles revolucionários de 1974, como aqueles que Tiradentes liderou em 1789, foi o mesmo e mais profundo desejo da alma humana que é desejo de ser livre.
Aos exemplos dos nossos heróis, a coragem para levar a cabo as nossas revoluções particulares para nos libertar das opressões que magoam e, por fim, ter coragem para dar efeito ao que nos pede o coração para fazer, sentir e viver.

terça-feira, abril 14, 2009

Não é fácil...

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

(...)

Soneto de Aniversário, Vinicius de Moraes



Após um longuíssimo repouso, retorna a vida ao Colégio da Trindade, em Coimbra. O quarteirão inteiro que o velho edifício ocupa entre a Faculdade de Direito e a Couraça de Lisboa será o endereço do Tribunal Universitário Europeu, agora já em construção, como bem o sabem os passarinhos das árvores próximas e os turistas que espiam a obra a partir do pátio das escolas. Eu a observo da Sala do Mestrado, no Colégio de São Pedro, onde se defende tradicionalmente os relatórios e onde há uma pequena sacada que proporciona uma vista objectiva do velho colégio.
Sempre me chamou a atenção o facto das suas ruinas ali estarem, em meio à opulência do resto da universidade, do que me foi explicado que o dono não quis negociar o imóvel na altura em que o Estado Novo destruiu metade da alta de Coimbra para ampliar a universidade. Assim, desde o final dos anos de 1940 até o início dos anos de 1970, o Colégio da Trindade perseverou sem grandes reformas, tendo por último servido como residência até quando já não mais aguentava a sua decrepta estrutura, enquanto no seu entorno tudo era ampliado, aumentado e melhorado para o crescimento da universidade.
O dia, entretanto, chegou, como acima já foi anunciado. Afinal, o Colégio da Trindade vai ter destino ainda mais nobre que os seus congêneres da primeira infância da academia portuguesa, quando foram dadas as primeiras aulas, há mais de 700 anos.
Era bom se fôssemos como os prédios antigos e a nossa paciência fosse muito mais do que a condição humana nos permite. É pena que na nossa condição seja difícil ver que a redenção sempre nos alcança enquanto nos mantivermos de pé e com alguma dignidade na cara.
Os dias trazem a todos coisas novas, surpresas novas, idades novas. É bom ficar mais velho sem deixar envelhecer o amor, sem torná-lo amargo e desconfiado, sem contrariá-lo, sem desacreditá-lo. É a fé na sua graça, a sua parte mais íntima em nós, que o faz ser sempre belo e potente, como da verdadeira primeira vez.
É como tentam fazer ao Colégio da Trindade: ao invés de deitar todas as ruinas abaixo e construir um prédio novo e moderno, preservam tudo o que podem e das velhas fundações medievais vai se levantar um edifício recomposto em facilidades e propósitos. No fundo, ainda vai guardar os traços mais basilares da sua natureza, a gradação mais profunda da sua verdade, afinal, redimida.

terça-feira, março 31, 2009

A simular a vida com estranhos

Rose

Já faz quase um ano. Naquela altura não se tinha ainda sobre a cabeça o sol brilhante de Portugal, mas sim a espessa camada de nuvens que deixa Londres com seu aspecto soturno e introspectivo. No coração, no entanto, fazia sol. Pareceu bem uma vida de sacrifícios em segredo, no aguardo de uma felicidade que, afinal, não se verificou, ao menos não como fora esperada. Ter o que fazer, algo pelo que esperar e alguém para amar - eis o que os gregos consideravam ser a felicidade, se não acertaram, ao menos circundaram com muito jeito.

O início da primavera em Londres no ano passado foi muito mais uma continuação do inverno do que um primeiro sorriso a preparar o verão. Os dias não eram tão curtos, é verdade, mas perseverava a chuva ocasional e fria, o entardecer com vento, a necessidade das roupas pesadas - nada que eu deteste mais em termos de desconforto que estar de casaco todo o tempo. Ninguém se animava a ter esperanças sobre o verão: o do ano anterior tinha sido tão frustrante, tão molhado e ventoso, que nos olhares havia resignação com o tempo, toda gente a sonhar com casas no sul de Espanha ou no Algarve.

Entre os estudantes estrangeiros era sempre aquele estúpido "simular a vida com estranhos", como a celebração do natal, do ano novo ou do dia dos anos, ou as conversas sobre coisas pessoais, ou as viagens... não havia naquilo nada mais que uma simulação do que deveria ser algo muito mais significativo, profundo, relevante. Simulavam o amor, diziam tolices, mas não era para fazer rir, de facto, depois de alguma reflexão eram mesmo para chorar.

Abrir a caixa de pandora e dizer a eles que aquilo era um bocado sem sentido era o mesmo que dizer uma verdade inconveniente, aquela que toda gente conhece mas que ninguém quer admitir. Faltava-lhes coragem até para isso!

Não que todos os males dos relacionamentos fingidos sejam culpa dos estudantes intercambistas - eles, ao contrário de todos os outros praticantes, estão escusados com honras: só quem já enfrentou o além-mar sabe do que se trata, estar onde não há ninguém em quem confiar, ninguém com quem falar, nada que se conheça, lugar nenhum onde se possa ir. Do que a coragem é ganha quando se enfrenta esse mundo desconhecido e das suas paredes de fumo compor alicerces de uma vida nova, mesmo que provisória e assim tentar adaptar àquilo as coisas que são queridas: os colegas são rapidamente promovidos a amigos e com eles se gasta muitíssimo tempo a fazer turismo pela capital e a planejar festas, as viagens tornam-se marcos da existência, como uma forma de retirar um pouco da dureza da vida nova e ter algo a frente que tem potencial de dar alguma alegria, o curso assume uma função muito mais de entreter e desanuviar do que propriamente de aprender, enquanto outras preocupações tomam forma, nomeadamente, conseguir um trabalho a tempo parcial (o que na altura em que lá vivi fora mais fácil do que nos dias que correm, suponho eu).

De toda a palhaçada que gira em torno desses relacionamentos sociais, ou melhor, para ser mais politicamente correcto, de toda a superficialidade deles, transbordava vez ou outra uma gotinha de poesia, do que sentia o meu corpo todo se aquecer como uma lâmpada incandescente subitamente iluminada e alimentava-me daquilo com tanta gula que podia ser comparado ao faminto que, a estar a morrer a fome é presenteado com um banquete, sem a garantia, entretanto, de que vai voltar a comer.

Foi assim algumas vezes no Cittie of Yorke, o pub medieval que frequentava com meus colegas e que ficava próximo ao nosso college. Esse foi um dos únicos sítios poupados pelo grande fogo de 1666 que destruiu Londres, um acto que prova a infinita sabedoria e bondade de Deus, segundo os frequentadores mais antigos. Foi lá que ouvi Blake - um dos seus frequentadores célebres - ser declamado por um rapaz que segurava um copo de pint vazio, mas que trazia a voz cheia de paixão, foi lá que, entre sorrisos embaraçados, celebrou-se o final dos exames, foi no nosso Cittie que a vida deixou de parecer uma continuação sem sentido e fez-nos lembrar que éramos todos muito mais do que estranhos obrigados a conviver uns com os outros e destinados a uma inevitável separação - por aqueles breves instantes em que nos esquecíamos disso, das ambições e obrigações, fomos seres humanos a dividir um sorriso colectivo de satisfação, como se dividíssimos um mesmo coração venturoso e aberto, como se houvesse felicidade grega para toda gente e toda gente soubesse desses indizíveis segredos e pudesse percebê-los!

A primavera é outra, o país é outro, mas pouca coisa mudou, à excepção que cá em Coimbra não há pubs e muito menos, que Deus me perdoe, o nosso Cittie of Yorke!

terça-feira, março 17, 2009

Minha chávena de chá

À parte da constipação que faz pesar a cabeça e arder os olhos, não há nada que incomode nesse belo dia de sol. Cantam os passarinhos poucos e no Jardim Botânico o cenário paradisíaco da natureza ganha na sua ordem algum maior encanto, já é quase primavera.
Um passar de olhos pelo jornal: uma anaconda que engoliu um cãozinho de estimação na Austrália e ficou mto pesada para poder evadir-se, um golpe de Estado em Madagascar, o desaparecimento das Ilhas Maldivas e o presidente do Brasil a contar vantagens sobre o seu país, com alguma razão de fazê-lo, mas para que dizer se é possível fazer?
Como um corpo adormecido na cama desfeita evade, com mais facilidade que a anaconda do Território do Norte, o pensamento. Desprendido das outras atenções, a arder nas curvas das considerações devido a essa sorte de doença, deságua no velho oceano do afecto e dilui-se num gozo tolo e doce.
Acção. Eis o que realmente é capaz de fazer esse considerar ser expresso aos outros, de nos deixarmos saber, conhecer, de partilharmos. O silêncio, se por um lado priva os outros de se certificarem da nossa estupidez, lado outro oculta o brilho, a poesia, o encanto, esse não-sei-o-quê capaz de fazer dar voltas à cabeça e arrancar os sorrisos de satisfação. Agir, é preciso agir já, nesse belo dia, nessa hora de pasto que seja, nesse minuto de reflexão, nesse segundo ardido na minha garganta.
Já agora fará mais sentido ter uma agenda para os afazeres. Não convém deixar as pequenas tarefas do dia sobreporem-se, o melhor é resolvê-las. Vai-se à ordem do dia, aos estudos, às coisas da casa, à rotina que dá a face da sanidade da vida tantas vezes.
Um belo copo de vinho para acompanhar o almoço, um peixe grelhado com umas batatas boas bem assadinhas, as cebolas e a salsa. Eis por onde passeia o pensamento nesse minuto, de certo modo a desanuviar-se das obrigações, como se assim elas deixassem de existir. É claro que não é assim.
Relembrando uma vez mais a doce "Blackbird", é preciso apanhar nas asas quebradas e aprender a voar e ver que só se esperava por esse momento para levantar-se, mesmo como numa revolução ou então, na mágica cena de Fred Astaire e Ginger Rogers, reconhecer-se nessa condição de dançar com o rosto colado.
Às armas, cidadãos! Mas enquanto não fico curado da constipação, e não é uma solução má, o melhor é encontrar conforto na minha chávena de chá.

sexta-feira, março 06, 2009

Difícil de explicar

Alguns episódios vivem sempre calmamente no imaginário. São paredes dessa casa subconsciente que não têm de fazer sentido e muitas das vezes não fazem.
Uma dessas paredes é o episódio do Capão à Traição, episódio que marcou o fim da guerra pelas minas, entre os paulistas e os portugueses, brasileiros de outras regiões e o povo das minas.
Os paulistas foram derrotados (esses senhores encontraram os primeiros veios e queriam ser os únicos a explorá-los), e nós os vencedores, mas foi uma vitória indigna. Após seguidas derrotas e reduzidos a umas poucas centenas, os paulistas encontravam-se cercados num capão, que nada mais é que uma porção de mata isolada. Após 2 dias de cerco, os paulistas pediram a rendição em troca de um salvo-conducto para fora da região das minas. O comandante emboaba, Bento do Amaral Coutinho, um "carioca alentado, homicida e insolente", chegou a jurar pela santíssima trindade que garantiria o acordo se os paulistas depusessem as armas, mas logo depois que esses cumpriram a sua parte, os emboabas os massacraram covardemente. Depois da guerra, as capitanias foram separadas, do que marca o nascimento de Minas Gerais. Sempre me questionei se valia a pena ganhar assim, perdendo a si mesmo... E talvez por isso o episódio tenha se tornado uma das paredes (das mais intrusivamente visíveis) desse mundo interior.
Alucinações de uma madrugada junto à Ponte de Santa Clara, uma trova escrita numa porta de casa de banho, um copo de whiskey pela metade e a larga generosidade dos bons amigos. Tudo isso também compõe esse mundo que habita dentro, que é inacessível para os outros e também para nós mesmos.
Como se se fosse adentrar num sonho do conhecimento oculto de nós mesmos, em que a grande piscina nos olhos da amada fosse cheia de licor de anis e houvesse naquele banho o desejo ardente de se embriagar e depois de se dissolver, de se deixar ir, incorporar e passar a testemunhar os crimes e os heroísmos que tocam aquele coração, ser parte dele na sua infinita beleza, ser o seu susto de desespero, ser o seu pulsar apaixonado, ser a sua coragem para o sacrifício, ser a sua paz de ser amada e nunca mais ter medo. Ninguém consegue perceber nada disso, é muito difícil de explicar.
Bonitas mesmo são as luzes da disco a piscar ritmadas e o transe geral, resultado da batida, do álcool, da combinação ocasional de outros estimulantes, num só contemplar desses segredos íntimos, indizíveis e desconhecidos, o apreciar desse eu profundo perdido entre tantas camadas das coisas que as pessoas percebem, aceitam e para as quais devotam suas vidas. Naquele piscar das luzes a comunhão geral (e circunstancial) da nossa condição ante o mistério e o magia da existência.
Lado outro, cabe ponderar que é um portal perigoso de se cruzar. Sessões de hipnose têm sido utilizadas por psiquiatras a fim de auxiliar pacientes que sofreram traumas graves a perceberem melhor toda a situação e, assim, serem curados. Essa técnica de indução permite que se acesse esses conteúdos subconscientes, sendo assim percebidos com mais clareza. O mal que se pode causar reside no facto de nem todas essas lembraças ocultas serem felizes, há muitas que foram propositadamente ignoradas pela mente a fim de ser permitida uma vida de maior paz, sem que se fosse eternamente atormentado pela culpa, pela amargura e pelo remorso. Ainda assim acho que faz muito sentido e que representa uma possibilidade muito útil de se saber o que nós não permitimos a nós mesmos.
É preciso confrontar esses desenganos. Olhá-los nos olhos, desafiá-los. Tão duras e penosas que são essas lembranças ocultas, pode ser que nos esmaguem e nos impeçam de viver o presente de uma maneira desprendida do que aconteceu antes.
O que não se deve nunca esquecer, no entanto, é que a verdade é a única força capaz de nos libertar, de nos permitir sermos nós mesmos, de nos dar a genuína paz que nem os truques do subconsciente, nem o medo da vida seriam capazes de dar.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

O abrigo

Foi uma viagem de carro como outra qualquer. Saímos logo depois de tomar o pequeno almoço e pelas primeiras horas tivemos o noticiário matinal a nos entrar pelos ouvidos através do rádio para romper o silêncio.
As mãos no volante frio, a agarrar-lhe para as curvas, para lá, para cá, para lado nenhum talvez, apenas a ir... íamos os dois.
Um belo dia de sol, uma vista para não se esquecer, a experiência que talha na personalidade a sua forma e que vai ser evocada instintivamente por toda vida quando tivermos de nos comportar naquele tipo de situações outra vez.
Na volta, a imersão na sensação de gozo, a amizade boa e generosa, o riso fácil e a preciosa voz de se ouvir fizeram todas um outro momento da vida, na altura em que se acha que a bondade pode ser repartida só por teres tido a sorte (que cada vez mais parece maior) de ter tido com boa gente na tua vida até aquele momento.
Chegamos e separamo-nos, mas não era totalmente verdade. Houve participações recíprocas nos pensamentos alheios. Construiu-se uma boa via de "dar de si" que nos levava a lugares fantásticos, uma via de mão dupla, é bom fazer constar.
Foi aquela viagem, muito provavelmente, a constatação do abrigo que existia em cada um.
Impossível não associar com a emblemática conferência do doutor Campolina na Semana de Filosofia da minha universidade, quando, falando sobre aspectos da ética, ensinou que na primitiva origem grega, "ethos" significa refúgio, abrigo, ou lugar onde se está bem, acostumado. Para mim a ética, desde então, tomou uma feição mais íntima: onde encontramos a nós mesmos na hora de decidir, sem mais mentiras e fingimentos.
Qual um feroz animal em noite de tempestade que encontra um abrigo, encontrou-se paz naquele estado de cumplicidade enamorada. Como se fosse comum aquele tipo de identificação, nem espanto havia e por isso mesmo é que a alegria era sempre original, simples e viva.
Olho para a satisfação de viver com os olhos dela, não são propriamente meus esses olhos. Abraçam quem eu amo uns braços que em muito são os dela e se gargalha também num ritmo que é o da minha amiga. Só quem nos ama verdadeiramente é capaz de nos fazer melhores e nos dar o sentido, a excelência e a beleza que todo o resto das pessoas pode admirar e querer para si, mas que não lhes pertence.
Esse abrigo que é tão confortável, que sabe tão bem desfrutar, tão rico e luminoso, é feito por ela, além de todos os outros que primeiramente deram amor, ao invés de quererem ser amados. Esse abrigo é o que eu me tornei.

sábado, fevereiro 07, 2009

Vamos, vamos, minha gente!

Coimbra passa as noites em claro... não mais nos bares e nas ruas, como na época da festa das latas, mas na solidão dos quartos, sobre as secretárias e os livros, a trabalhar no solitário processo da assimilação dos conhecimentos que, somado ao constante medo do chumbo, marca essa altura do ano para os estudantes. A época de exames está quase no fim, é verdade, mas não será esquecida enquanto perdurarem as obrigações acima das vocações.
Este é o ambiente de opressão geral que é compartilhado na cidade académica, nada capaz de provocar uma onda de suicídios, mas é claro que incomoda, deixando na boca um gosto amargo logo que o pensamento vem à cabeça.
Somado a tudo isso, ainda há as obrigações de cuidar da alimentação, dos exercícios físicos, da casa... Do que não há tempo para nada, nem para quem mais o mereceria, o que realmente faz apertar o coração...
Lado outro, também há vantagens, como não? A pesquisa e a investigação progridem a bom passo: recolha bibliográfica, marcos teóricos, hipóteses, variantes, estratégias de acção e resultados possíveis ocupam as mentes dos estudantes do mestrado em direito, e também desse que vos escreve, meus leitores, no entanto há faíscas de boa fortuna nas cinzas do inverno e para além das opressões e tirania, há ventura, já que nossos conhecimentos nos tornam pessoas mais úteis e preparadas. Um pensamento preenche a imensidão, como um dia disse Blake.
Foi inevitável, nessas circunstâncias, recordar uma das cenas mais doces do cinema de animação: a "the work song" do filme Cinderella, dos estúdios Disney, produção de 1950. A versão brasileira é especialmente bela, pela maneira como a canção foi traduzida, pelas palavras escolhidas: assentam ao ouvido como o amor verdadeiro ao peito.
Nessa cena, os ratinhos e os passarinhos, os únicos amigos que a solitária e sobrecarregada de tarefas da Cinderella tinha, decidem ajudá-la a ir ao baile, preparando o seu vestido, já que ela não teria tempo de fazê-lo por si mesma, devido às suas obrigações (injustamente impostas, diga-se de passagem).
Para Março teremos a IX Semana Cultural da Universidade de Coimbra, maioritariamente encabeçada pela Faculdade de Direito. Digamos que será nossa primavera, nosso grande baile, uma vez que os eventos são bastante interessantes e vão envolver toda a comunidade académica, sempre com um conteúdo interactivo.
Um primeiro renascimento para os convívios e as serenatas, as preparações para a Queima e os fados do Diligência, o estar com quem se quer estar... mas sem descuidar da dissertação!
Entre o frio e a neblina, a chuva constante e os livros pesados para cima e para baixo nas ladeiras antigas, transparece ainda mais o bom propósito do esforço e a liberdade de se ter escolhido esse caminho que, mesmo que custoso, é nosso.
Força, Cinderella.

domingo, janeiro 25, 2009

Antiga, mui nobre, sempre leal e invicta

Ponte Dom Luiz I vista das escadas do café Mira Douro

Não bastou o centenário de Manuel de Oliveira, nem os convites dos amigos, teve mesmo de ser por obrigação que acabei por me ver em meio à doçura tão própria das ruas da cidade do Porto.

Hoje o Porto é a segunda maior cidade do país, com uma economia mais pujante que a das outras regiões em diversos sectores, especialmente os de tecnologia. Para além disso, persevera o seu talento natural para a vinicultura, na produção do mundialmente famoso e tão bom vinho do Porto.

Suas ruas, largos, avenidas, jardins, edifícios e igrejas parecem afinal um só, numa unidade que é difícil de definir mas que é plena desse genuíno conceito que informa o que é verdadeiramente português.

A cidade recebeu-me com seu habitual sorriso, mesmo em meio à chuva e ao frio que o inverno lhe impele, deixando às sombras umas feições tão formosas e cheias de confiança, que refletem com perfeição o próprio povo portuense.

Trata-se de uma satisfação que me acompanha da época da segunda infância, quando lia sobre a fantástica história do cerco do Porto no século XIX, numa guerra em que estava em jogo a liberdade e a justiça. Nesse conflito em que os números pendiam largamente para o lado de um poder opressor e absolutista, em muito deve-se à cidade do Porto o triunfo da verdade e da soberania do povo português.

Ao percorrer as ruas do Porto antigo, a descer até à Ribeira para junto do rio Douro, imagino os combates e a emoção, mas sobretudo a privação e os sacrifícios pelos quais o povo do Porto teve de atravessar e resistir, como a fome, a morte dos amigos, vizinhos e parentes... Uma luta que não lhes rendeu bens ou títulos, mas que, motivada pelos mais altos ideais, significou um legado de honra e bravura imperecíveis.

O líder dos liberais, vencedor do conflito, era um homem que, mesmo não tendo nascido no Porto (nasceu mesmo em Lisboa), tinha um coração portuense. Tanto assim que o legou à cidade do Porto, encontrando-se até hoje na Igreja da Lapa como uma relíquea o coração do Imperador Dom Pedro I do Brasil ou El-Rei Dom Pedro IV de Portugal.

Não tenho intenção de liderar revolução nenhuma, toda gente merece a paz. Mas assim como aqueles senhores que lutaram do lado liberal preferiam a morte do que uma vida de sujeição ao mal e à tirania, também eu não teria receio de defender o ideal, o mais íntimo comprometimento com nós mesmos.

Em segredo, a olhar a ponte Dom Luíz I na sexta-feira passada, desejei que mais e mais acasos acontecessem a me trazer ao Porto, como é bom lá estar, como me é natural tudo aquilo. Se eu não nasci no Porto, pelo menos sei com toda certeza a que terra pertence o meu coração.

domingo, dezembro 28, 2008

O verão do ano que vem

Mallu e Marcelo

Um ano que se vai é como um trabalho que se termina: seu começo, seu desenvolver e o seu concluir parecem unidos sob o mesmo véu que, uma vez levantado no dia 31 de Dezembro, deixa à mostra o que significou a vida naquele espaço de tempo: os projectos, os sonhos e perspectivas, as incertezas que agora se confirmaram para o bem e para o mal.
Dentre outras coisas, vou me lembrar sempre de 2008 pelo lançamento do primeiro disco solo de Marcelo Camelo, dos Los Hermanos. O "Sou" é um bocado inclassificável, mas há ali bossa nova, pop rock, marchinha de carnaval e o gênero "um banquinho e um violão" de MPB.
Numa das faixas do disco, logo ouvi uma vozinha feminina que me chamou muito a atenção: era bem afinada, corajosa (lembra até a Amália na coragem de imposição da voz) e infinitamente doce. O nome da moça é Mallu Magalhães e embora eu nunca tivesse antes ouvido falar dela, rapidamente passou a fazer parte das colectâneas que ando a escutar e em muito contribui para a alegria deste rapaz.
O convite do Marcelo para que a Mallu participasse do seu disco reverteu, como foi o meu caso, no encontro de quem gosta dos Los Hermanos com essa moça, mas mais que isso, penso eu, resultou, um pouco mais à frente, no romance dela com o barbudo.
O detalhe que os poderia afastar é que a moça tem 16 anos completados há pouco e o senhor Camelo já caminha para os seus 31. No coração, no entanto, são muito próximos... como ambos compõe o que cantam, é possível ter uma idéia de como pensam e as coisas convertem para os mesmos lados, assim como se converteram seus abraços.
Duvido muito que o Marcelo esperasse por algo assim. Grande romântico que é, o Camelo é dos que já viveram essas cenas amorosas mais intensamente e assim costumam vestir luvas antes de tocar alguém. A Mallu, entretanto, é a própria simplicidade, senso de atitute e beleza, é a musa do poeta, pequena e incorrompida, e por isso mesmo há ali aquela reciprocidade que faz as coisas darem certo, pois como bem dizia o nosso Vinicius de Moraes, nós não fazemos amigos [ou amores], mas sim reconhecemo-los.
2008 para mim foi isso: o acaso inesperado, a beleza da vida a se desenhar com o passar dos dias, a fortuna que é reservada aos que procuram ventura, mais que aventura e confiam que estarão preparados para o que quer que venha.
Nessa perspectiva e por estar contraído de frio, (pois escrevo de frente para a janela aberta do quarto, a tirar proveito da linda vista), sobe pelas entranhas o desejo do verão do ano que vem, numa sanha tão doida que só pode ser explicada pelo conforto de vestir roupas mais leves, de ver mais cores, de estar mais à vontade pelas ruas, entre outras múltiplas e quentes vantagens.
O inverno tem seu charme (menor que o do outono, de certeza), mas nos priva de muita coisa, diria até que é uma estação menos sociável, não favorece muito os convívios, senão indirectamente (é a época que se encontram nos supermercados as cervejas pretas ou stouts, que embora não sejam como as britânicas já são melhores que o resto).
A esse desejo dos dias quentes, soma-se saber o quão ensolarada anda a linda América do Sul, seus vales e montanhas, rios e praias, suas cidades e aldeias, inundadas de sol, calor e boas promessas: o sul americano é um optimista por natureza e para esse espírito contribui muito a fartura de beleza e calor que o circunda por toda a vida. Ademais, diga-se que os últimos três verões desse que vos escreve foram tipicamente ingleses: nebulosos, cheios de chuva e malogrados dias de sol.
Há uma fome de calor, de sorriso, de bem-estar, de respirar fundo, há mais que tudo a esperança na renovação de tudo de belo que envolve a vida, os amigos, os lugares, a fé, o ideal, as lutas.
Lembro-me ainda vivamente do soturno Finsbury Park no inverno, as caveiras saltadas para junto do pêlo dos esquilos, as folhas apodrecidas na calçada, assim como dos fogos junto ao rio Tâmisa na noite de fim de ano, quando aquele milhão e tal de pessoas, originárias de todos os cantos do mundo, uniram-se num (mais ébrio do que fraterno) abraço à espera do que viria em seguida ao espetáculo pirotécnico. Nada mais substituiu as luzes do que o fumo. De tudo, resta no coração mais o caminho do que o destino.
O fumo a encobrir o horizonte do futuro parece o mesmo que aquele feito do queimar de roupas do falecido: de onde se acaba uma tarefa já adiante toma forma uma outra que, ano a ano, aprendi a chamar de "o verão do ano que vem".

sábado, dezembro 20, 2008

A esperança do Natal

Da varanda do Instituto Justiça e Paz, acompanhado da chícara de café e imerso num grande silêncio, vejo as luzes ao longo do rio que corre lá em baixo e o frenesi de esperanças da época do natal.
Muita gente viaja. A maioria para ir ter com os entes queridos, outros para algum sítio exótico, para fazer um passeio, para ignorar o feitio familiar do natal. É possível que esse seja o sentido mais apropriado para se perceber essa altura do ano, aquele que se refere à família.
Evidentemente, foi no dia 25 de Dezembro que Jesus nasceu e isso é o que é celebrado, natal é um adjectivo para nascimento. Tivemos nesse dia a chegada do Salvador.
A alegoria do nascimento numa manjedoura, da grande solidão de Maria e de José sem saberem como aquilo iria correr e, ponto alto, a circunstância do menino ter nascido saudável e bem constituído, dá-nos a perfeita idéia do que é chamado a Sagrada Família.
Embora o homem e a mulher quando se unem, seja lá através de que cerimônia for, formem uma família, a mesma só é concretizada mais amplamente quando dos frutos dessa união, ou seja, os filhos. No dia 25 de Dezembro do ano 1 Jesus veio enlaçar aquele amor comum de Maria e José, embora não sendo propriamente filho desse último, o que não importa nada no fim das contas.
Nesses termos, o dia 25 de Dezembro é o dia da família, o dia do amor familiar, o dia em que as pessoas devem lembrar-se de onde vieram, de quem os amparou na débil idade de criança e os deu valores e formação, outros devem lembrar-se alegremente da responsabilidade de prover um lar com os mesmos valores e constituído nos mesmos princípios.
É tempo de festejar uma das mais santas instituições da nossa civilização e que, embora venha há muito sofrendo os duros golpes do individualismo exacerbado, ainda existe e, em muitos casos, vigorosa e lindamente.
Por conta do amor das famílias do mundo é que devemos ter esperanças. Nada é capaz de nos humanizar mais, de nos tornar mais próximos da caridade e do espírito de dever do que a perfeita compreensão da importância da família e do seu significado: eis a grande prenda que se pode dar e receber no Natal e durante todo o ano.
Dentro dessa percepção das coisas é que desejo aos meus amigos e familiares um Bom Natal e ano novo com muita saúde e alegrias.
Bebam e celebrem por mim.

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Gepeto: faz para mim essa mulher

Eis a frase escrita no paredão em frente à entrada do jardim botânico e já a envelhecer junto de todas as outras coisas que sofrem com o tempo: "Gepeto: faz para mim essa mulher".
Quem a escreveu não assinou e é melhor que seja assim, esse desejo que não se comunica a ninguém e que quando é feito, é feito no segredo do anonimato.
Quando o Gepeto fez o Pinóquio foi porque queria ter um filho. O velho marceneiro via os bambini a correr felizes pelas ruas e a ele a solidão de uma casa vazia. Depois de se esmerar e terminar o mais bonito de todos os bonecos de madeira já feitos, chorou frente a sua obra ao sentir no fundo da alma a sua miséria, e deu-lhe o nome de Pinóquio, lamentando-se que não fosse que um inanimado objecto.
No decorrer daquela noite que se seguiu, entretanto, coisas se passaram. Uma fada madrinha apareceu, a Fada Azul, e sensibilizada com as lágrimas do velhote, resolveu dar vida ao boneco. Com um toque da varinha mágica, Pinóquio veio à vida, falador e deslumbrado com tudo. A fada explicou-lhe que ele era filho de um homem muito bom chamado Gepeto e que deveria obedecer-lhe e ser um bom menino, do que o boneco concordou entusiasticamente, prometendo ainda que não iria nunca mentir, sob pena de ter o nariz espichado cada vez que o fizesse.
Na manhã seguinte Gepeto foi à oficina logo cedo e, para sua surpresa, Pinóquio estava vivo, a dar saltinhos animados e muito bem disposto. Uma grande alegria invadiu o coração do velho senhor, como a chegada de uma primavera por muito esperada, a vingar um desolador inverno que lhe deixara vincos no belo coração, mas que não o massacrara a ponto de virar-lhe para a maldade. Alegrou-se tão sinceramente como uma criança experimenta a alegria, sem dela suspeitar nenhuma ponta de futura mágoa. Pinóquio adorou seu paizinho, sempre lembrando de sua promessa à Fada Azul.
Logo surgiu na alma do boneco vivo, entretanto, um grande desejo de ser um menino de verdade - não mais andar descalço como se de sapatos estivesse, não mais olhos pintados crispados, mas sim carne macia e pele morna, cabelos ao vento e uma linguinha para sentir o sabor das coisas do mundo. Sim, o mundo. Pinóquio ia desenvolvendo uma gigantesca curiosidade sobre as coisas do mundo, a primeira fonte de seu triste fado. O velhote, entretanto, não tinha fantasias tolas a lhe tirar o foco da situação das coisas: estava feliz em não ser mais só e se o Pinóquio era só um boneco de madeira, pronto, tal importava pouco ou nada... o importante é que tinha saúde!
Vê-se que mais que vida ao boneco de madeira, a fada madrinha deu-lhe uma alma humana.
"Gepeto: faz para mim essa mulher", não é exactamente uma encomenda de uma mulher toda gira e bem disposta... (embora não haja nada de errado nisso). É, antes e com muito mais razão, o desejo de ter ao lado a que nos perceba completamente, a que mereça aquele amor mítico a que os poetas louvam como incondicional, coroado na amizade, ratificado pela intensidade recíproca, o único que enobrece a condição humana e da a ela sua verdadeira e mais bela razão de ser e existir.
Será que esse profundo nível de entrega é mesmo possível quando o ouro de tolo que nos é apresentado como valor maior (o fugaz, genérico e obtuso termo "felicidade" pode designar esse prémio) manda não dar muita atenção ao que lhe compromete?
Não consigo conceber nada a não ser essa profunda e incondicional fé no sentimento pela pessoa que se quer para estar conosco como digna de ser chamada "amor". Todo o resto são expressões menores ou simulacros dele, tentativas de corações perseverantes que vão por vezes perecer, ou um desporto mórbido praticado por tolos que gostam de mentir para os outros e para si mesmos.
Nesse nosso mundo de tão pouca fé, entretanto, ainda existem bons Gepetos a acreditar no amor verdadeiro. Umas inventivas e generosas pessoas que querem ir além de si mesmas e que deixam o mundo tão melhor do que era antes delas existirem.
Quanto aos mentirosos, embora não tenham o nariz na cara crescido para desmascarar seus falsos, têm na alma alguma coisa diminuída... Encarrega-se o tempo e as próprias circunstâncias da vida de dar-lhes a volta, dando-lhes miséria pela miséria que aos que neles confiaram deram, privando-lhes da grande alegria que é a participação da poesia na coragem no amor, relegando-os a uma vida sem nortes maiores que os pequenos fins egoísticos e plena de uma sólida e definitiva solidão.
Por isso, meus bons leitores, cuidadinho com isso de gostar de alguém: muito zelo, muita paixão e muita, mas mesmo muita coragem. Nada pelo que se vão arriscar na vida vale tanto.

quarta-feira, novembro 19, 2008

Especial

A comissária para assuntos regionais da União Européia já alertou que Portugal tem de começar a investir em suas pequenas e médias empresas, ao invés de continuar a comprometer recursos comunitários em pontes e comboios de alta velocidade, como quer o primeiro ministro que penteia o cabelo para frente, como se calvo potencial fosse.
Pode parecer uma maçada falar em assuntos assim, entretanto, quando o cinto apertar e faltar dinheiro para as viagens, o cinema e até para a gasolina do carrinho querido, aí talvez seja interessante saber o que se passa no mundo.
Foi puramente por amor ao debate que estive a conversar com um colega sobre o assunto um desses dias, com o Diário Económico à mão, quando ouvi o argumento de que era um investimento especial o que se deveria fazer fazer em infraestrutura e portanto não poderia se perder tempo com outras discussões.
Como a boa retórica manda, a primeira atitude para vencer um argumento é desacriditá-lo e isso se faz com perguntas quanto a raiz da idéia contrária.
O que é ser especial? És tu especial? A tua família? Tua casa? Tua cidade? Teu país? Vale tudo isso de alguma coisa?
O método socrático é perigoso, é administrar em doses suaves para não haver desmaios nem indisposições.
É especialmente interessante notar que Portugal precisa de fazer do que é pequeno e médio, grande. E não me refiro ao espírito pessimista de alguns, isso se melhorasse adiantava muito, mas a idéia aqui é dinamizar os meios de produção para uma escala continental.
Então por que as senhoras que fazem doce em potes na Madeira não podem exportar para a Alemanha? E por que o recém licenciado em farmácia não pode abrir um estabelecimento com outro colega para venderem remédios à encomenda para o mercado local e de Espanha? E os engenheiros que pretendem lançar projectos imobiliários, em sua própria empresa, e vender para França e Inglaterra, não tem apoio e orientação?
Porque, meus amigos, mais que abrir linhas de crédito e micro-crédito para Portugal se levantar da estagnação para a prosperidade, mais que criar mais centros de fomento à pesquisa e inovação tecnológica que acrescentarão mais valia ao esforço e ao suor que corre pela nossa cara, mais que libertar do desemprego e da dependência, da miséria e da humilhação, da privação... mais que tudo que seria certo fazer de verdade, há o que seria ESPECIALMENTE interessante fazer: mais uma ponte sobre o Tejo e o TGV para ligar Lisboa ao Porto.
E assim passam-se os anos... e assim padece, por tantos mais anos quanto não se sabe, toda a gente portuguesa que não é dona de bancos.

terça-feira, novembro 04, 2008

Terra querida

Nina e Mariana

A minha terra espera por mim como quem guarda para toda vida um querer-bem sem nenhuma obrigação de fazê-lo.
Eu procuro bem fugir às saudades e numa bela medida tenho até conseguido! Faz muito bem estar na capital do amor em Portugal, junto dessa boa gente daqui que é sempre tão generosa e com quem partilho uma grande afinidade de gostos e com quem é tão normal sorrir. Entretanto, vão chegando notícias do lado de lá que ficam a passear no pensamento subtilmente e delas trazem outras e mais outras lembranças.
A minha prima Mariana, tão pequenina, já vai se formar em breve. O meu irmão deu um presente caro à namorada. O meu primo Júlio comprou a mota de competição que sempre quis. O meu tio Maximiano perdeu as eleições municipais!
Parece-me que estão todos bem. Ao menos me tem poupado das aflições e contam só coisas boas. São muito cuidadosos em geral e contam como vai aquela boa vida na nossa pátria, onde ser feliz é algo natural e simples.
Também fiquei a saber que já foi reaberto o parque do Museu Mariano Procópio, o que por si só causou-me imensa impressão.
Trata-se, precisamente, de um sítio muito belo, onde fui da primeira vez ainda criança para conhecer o museu e que me fez amar Juiz de Fora pela sua beleza íntima.
O parque é portanto uma vasta área com muitos jardins e lagos com ilhotas, há um monumento à Princesa Isabel, a redentora, e muitos caminhos por onde se segue para chegar ao alto do monte onde está o museu. Muitas vezes passeou o menino ali com sua amiga bicicleta nas manhãs de domingo, especialmente quando era época de exames e precisava aliviar a tensão! Outras vezes era ali que se ia quando queríamos impressionar os que eram de fora e visitavam a cidade da primeira vez. Muitas vezes, apenas a passear pela cidade era aquele por vezes o sítio eleito quando apetecia estar só.
Foi agora entregue ao público após uma ampla reforma, todo reestruturado, com novas plantinhas, gaivotas para se passear pelo lago, o mini-zoo condicionado com boas estruturas, um bom café com gente simpática a servir as pessoas, os caminhos mais pavimentados e bem feitinhos, uma área de brincadeiras para os pequenos, enfim... tudo novo e com muito bom aspecto, como merece a nossa bela Juiz de Fora, princesa de Minas Gerais.
Eu fico a acompanhar todos esses acontecimentos aqui de longe sem saber bem quando é que vou lá ver isso tudo, ter com essa boa gente que me ama com toda a paciência, mas plenamente consciente e grato por existirem os senhores parentes e amigos e a boa terra, doces criaturas e lugares que eu amo e estão sempre comigo.

quarta-feira, outubro 29, 2008

Simples, leve e doce

Para quem ainda não sabe, andamos numa altura do ano muito especial em Coimbra. É época da festa das latas, a ocasião que sucede as praxes e que marca portanto o início do ano académico e da recepção dos caloiros (tratados por alguns de "animais") no meio.
Mas festa das latas por quê? Iriam perguntar os senhores que nunca ouviram falar nisso. A coisa toda começou por conta de se comemorar nessa época também o final tardio do ano académico anterior, quando quem estava para chumbar vazia os exames de 2ª época e no último minuto conseguia passar. Daí saiam os estudantes a partir da Faculdade de Direito para as ruas da Alta com panelas, latas e tudo quanto houvesse nas mãos para comemorar aquilo.
Hoje em dia, entretanto, é mais porque no dia do cortejo amarram-se latas aos pés do caloiro para que toda gente saiba que lá vem o dito senhor.
Ontem foi esse dia, o esperado desfile dos caloiros. Fantasiados das coisas mais engraçadas, sempre a obedecer as cores do curso e a partir da cidade universitária, foram descendo as ruas, passando pela Praça da República, depois a Avenida Sá da Bandeira, sempre em direcção ao rio Mondego, para serem baptizados!
Os doutores é que comandam, como tem de ser. Cada caloiro tem um doutor como padrinho que portanto deve zelar pelo novato. Havia doutores, entretanto, que levavam seus caloiros à coleira e o fulano a rir-se daquilo como se fosse a coisa mais engraçada do mundo! Outros marmanjos com meias-calça ou mesmo de tanguinha, apesar do frio brutal da tarde!
Toda a gente a descer como uma onda em direcção ao rio. Também lá fomos nós um pouco embalados naquilo e muito bem abraçadinhos, no melhor espírito académico!
Aos colegas do direito até foi doada uma moeda de 20 cêntimos... e para rebater a fome, um saquinho de pipocas doces... quanta doçura!
Ao pé do Mondego, uma grande friagem, mas digamos que o pessoal já se encontrava bem "aquecido" e assim foram descendo as escadas que iam mergulhar nas águas. Os caloiros e os veteranos. Aqueles com seus penicos, estes com seus sorrisos. E faziam lá os baptismos, escolhiam nomes, faziam festas. O que vale no fim são as amizades que se cria, eis o propósito original e mais bonito das latadas: a integração dos mais velhos com os mais novos, os vínculos de amizade, a confraternização.
Tudo muito verdadeiro e por isso muito simples, muito leve e muito doce, como a vida deveria ser.

terça-feira, outubro 21, 2008

Ajuda-me a perceber

Há qualquer coisa a pairar sobre as casas da Alta de Coimbra.
Esse sítio tão especial onde eu moro e onde até os tijolos das casas sabem recitar poesia, do tanto que vêm ouvindo e testemunhando ser vivida no decorrer dos séculos, parece tomado por qualquer coisa boa que não se sabe bem o que é, ou ao menos alguns de seus moradores parecem bastante afectados por ela.
Um exemplo mais tangível desse evento, digamos assim, seria o das senhoras da rua da Matemática que sempre foram simpáticas comigo quando lá passo de manhã para ir à Universidade. Nesses últimos tempos, entretanto, tem sido mais que simpáticas. Andam a dizer-me: "Bom dia, lindo menino", e eu a responder sempre: "Bom dia, senhora. Então o gatito por onde anda?", digo pra disfarçar porque fico constrangido com elogios de estranhos, chego mesmo a não gostar e em muitos casos fico ofendido por saber que a pessoa não tem fundamento para ter aquela opinião, mas no caso dessas senhoras é capaz que me leiam nos olhos essa beleza nova que há em mim e que nem eu mesmo compreendo bem... daí não fico ofendido, mas não deixo de ficar surpreso com a perspicácia delas. Afinal devem ter aprendido com seus gatos ou vice-versa.
Todos aqui tem gatos... digo os residentes de facto, não os estudantes. Vivem os senhores idosos, casais ou irmãos solteiros, com seus gatos pelas pernas a pedir uma festinha a viver suas vidas simples à sombra da aparente ausência de casais novos e de crianças na vizinhança. Os pobres dos gatos devem fazer as vezes da pequenada no que toca às brincadeiras e à alegria.
Nunca vi uma só criança a correr pelas ladeiras da Alta ou a brincar por aqui. Hoje de manhã, entretanto, vi um infantário e fiquei bastante admirado, afinal existem crianças! Mas vivem bem escondidinhas, ninguém as vê. Passam despercebidas como eu achei que passava por entre a gente toda até ser descoberto pelas senhoras da rua da Matemática.
Qualquer coisa se passa na Alta de Coimbra.
Hoje já sei que há crianças e que há esperanças e que em meio a tanta poesia, Deus do céu... não pode haver medos e deve haver alguma coragem, pois o que somos e sentimos verdadeiramente comunica-se mesmo quando queremos estar calados.

quinta-feira, outubro 16, 2008

Galiza do meu coração

Estive na Galiza por alguns dias na semana passada e tive o prazer de conhecer Vigo e Santiago de Compostela. Que belo o país é aquele que, ao norte de Valença, parece entretanto ainda ser Portugal na língua, no trato e na beleza da gente.
Em Vigo cheguei já curioso de conhecer a baia e reimaginar as batalhas com os corsários que volta e meia tentavam saquear a cidade! Um cheirinho de mar para todo lado, o porto, a Praça da Pedra, a Rua do Príncipe, os Jardins de Portugal e o Parque Castro com sua vista estonteante para a baia... momentos docinhos e bons.
Levou-me o acaso até Santiago de Compostela, eu que era para ter ficado mais ao sul mas que sem querer quando dei por mim estava lá.
Na praça do Obradoiro conversei com os peregrinos que percorreram o Caminho de Santiago, a antiga rota de peregrinação da Idade Média cujo destino era aquela mágica cidade e sua catedral.
Gente com o coração pleno de esperança e fé, a contar suas estórias fantásticas, das curas que receberam, das dívidas que conseguiram pagar, dos amores que encontraram... E estavam todas lá para agradecer! Nada mais bonito que ser grato pelo bem que nos fazem... e assim, fiquei amigo dos peregrinos instantaneamente! Eu que tinha peregrinado da estação de comboio até a praça, não tendo feito assim grande esforço, mas que participei daquela beleza por também ter comigo esse sentimento de gratidão. Que Deus ilumine aquela boa gente.
Os galegos em si também, como dizer isso senão directamente, são pessoas doces e divertidas! Como foi boa a estada na residência universitária e os concertos no fim de semana, toda aquela boa gente, tão bem disposta a esvaziar seus copos da Estrella Galicia!
De volta a Coimbra, as lembranças da Galiza não me deixam um minuto sequer...
Maravilhoso acaso, desses que fazem a vida bela, deu-me a chance de conhecer a fabulosa Catedral, praças, ruas, largos, parques e jardins de Santiago... Em Vigo o doce encontro com o mar do norte e a vista da baía e do porto... uma terra feita de sonho, onde tudo guarda uma ordem perfeita e tudo tem bom aspecto, de uma doçura e brilho que engrandesse a Galiza e que fez-me imensa impressão e deixou no coração a vontade de um dia lá voltar.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Pela grandeza de Portugal

As salas de aula da Faculdade de Direito de Coimbra são dignas de serem frequentadas por príncipes. A decoração manuelina de forte traço ainda barroco dão ao lugar um ar de opulência que é impossível negar. Os edifícios do complexo que se tem após a passagem pela Porta Férrea são em si a assumpção material dessa grandeza: generosidade nos espaços, sobriedade nas formas, silêncio austero a imperar pelos lados todos e no pátio o busto de um benfeitor. A faculdade de direito incorpora sua autoridade sem nenhum pudor: faz e acontece, manda e pode.

Já há muitos séculos a Faculdade de Direito de Coimbra vem servindo a Portugal e ao mundo através de sua excelência de ensino, congregação da elite intelectual portuguesa e distinta produção científica que muitos agradecimentos deve a paz social e Justiça portuguesas, européias e ocidentais.

Eu, que frequento há pouco tempo esse ambiente, mas partilho do pensamento que cá impera há muitos anos, tenho aprendido muito e ficado sempre surpreendido com essa grandeza. São inspiradoras e plenas de certeza na missão fundamental do Direito enquanto instrumento da Justiça, as aulas do Doutor Gomes Canotilho. Este senhor que é um dos maiores vultos do Constitucionalismo mundial mas que trata seus alunos com uma humildade e gentilza que por vezes falta aos mestrandos da faculdade... Com mais propósito, mesmo porque é da minha área de especialização, são as aulas de Direito das Sociedades do Doutor Coutinho de Abreu, plenas de uma inteligência e racioncínios afiados, um enfoque prático e desafios jurídicos que todo o tempo colocam-nos numa posição delicada, mas sempre voltada a provocar uma resposta relevante, um pensamento de valor, alguma produção que vá dar a volta nas trafulices amplas e necessárias que o legislador nos deixa para fazer aplicar, próprias da amplitude do Direito Privado. Isso para citar apenas dois docentes de um universo privilegiado em termos de recursos humanos.

Talvez por essa opulência toda, vinda do passado para dar num presente de prestígio e excelência, exista no ar um certo “não saber o que fazer ou como fazer” e um desconforto pelas mundanças que o futuro vem impondo, a dizer: o processo de Bolonha e o sistemático corte das verbas públicas para manutenção da Faculdade de Direito.

Trata-se, primeiramente, de uma insanidade mal planejada e mal feita e, no segundo caso, de uma imbecilidade que não merece mais aprofundamento que sua própria constatação.

O processo de Bolonha alinha-se com as demais políticas de sistematização comum que vem tomando corpo na União Européia. Pensou-se, muito impulsivamente talvez, que calharia bem dar à Europa toda um mesmo sistema universitário voltado marcadamente para a produção de mercado e que proporcionasse aos discentes uma oportunidade de experimentar activamente o ambiente do mercado de trabalho. Fica, desde já, a academia subordinada às necessidades do mercado de consumo, ela que nunca teve de abaixar a cabeça a ninguém, vê-se dobrada frente a essas incongruências.

Seguindo esta linha, quis-se trucidar a licenciatura e o mestrado, fazendo de ambos "ensino profissionalizante". Licenciatura voltada para produção de mercado e mestrado profissionalizante: mas daí pergunta-se: qual o propósito dos cursos de especialização latu-sensu?

Não houve debates com a comunidade universitária (que era quem afinal cabia mesmo opinar da relevância disso tudo), não houve período de adaptação e nem tampouco planejamento para implantação. Foi imposto, tal qual quer e faz um ditador, sem se importar com consquências.

O resultado recente dessas políticas tem devastado a Universidade de Coimbra. Não apenas na Facultade de Direito, como também na Faculdade de Medicina e muitas outras faculdades e departamentos. Impera o “não saber para onde ir”, uma confusão que aborrece e prejudica os alunos e professores: horários que não se definem, entumpimento do curso de mestrado, erros que não tem fim por parte dos serviços administrativos das faculdades...

Lado outro, como se não bastassem as irresponsáveis políticas comunitárias adoptadas sem a devida reflexão quanto à utilidade e necessidade, também temos os sistemáticos cortes orçamentários para a manutenção das universidades públicas.

Essa questão realmente não faz nenhum sentido. Afinal pretende-se cortar recursos às instituições responsáveis pela geração da mais importante mais valia nacional: os seus recursos humanos. São as pessoas que vão querer trabalhar por Portugal, fazê-lo maior e melhor, mais próspero e grandioso. São portanto as universidades portuguesas o lugar onde essas pessoas vão se formar enquanto profissionais de suas áreas e vão se animar a se empenhar em fazer cá suas vidas. Essa política orçamentária, entretanto, parece apontar para outra idéia: paga-se caro pelo ensino superior e em troca recebe-se o mínimo possível.

Enquanto até os anos de 1970 viu-se uma emigração para outros países da Europa e para o Brasil, feita mesmo pelas pessoas das aldeias e com pouca ou nenhuma instrução intelectual, hoje sofre o país outra onda de emigração: a da sua população educada. Vão-se todos procurar em França, Inglaterra, Alemanha ou Suíça os empregos que cá não encontram... Mas não precisava ser assim.

Mais que investimentos, para a grandeza de Portugal depende uma inabalável fé no seu destino manifesto, na sua força enquanto nação, na coragem de acreditar no país começando por primeiro acreditar em si mesmo!

Talvez seja preciso vermos um pouco os exemplos que nos dão o pessoal que está à frende da Faculdade de Direito: mesmo com todas as adversidades possíveis e imagináveis, mesmo rodeados de más perspectivas e de impiedosos lobos a salivar, não seriam nunca capazes de capitular às dificuldades: sabem que a verdadeira grandeza não sede, não perece e não diminue, mas resiste, regenera e renasce por ser quem é.

terça-feira, setembro 30, 2008

A morte dos irmãos

Estávamos os três a brincar no rio que corta as terras do nosso pai. Eu devia ter uns 12 anos, o Fernão 9 e a pequenita uns 7, acho eu. Havia ali uma alegria e uma camaradagem como poucas vezes desfrutei na vida e como todo sonho que se faz lembrar, havia uma irresistível sensação de realidade.
Quando era miúdo costumava pedir insistentemente à minha mãe para ter uma irmãzinha. Aquilo de sermos só eu e meu irmão não tinha muita piada e eu sabia que uma menina traria mais leveza e suavidade à nossa casa dominada por homens. A mãe, entretanto, nunca me fez a vontade que no sonho realizou-se.
Chamava-se Lúcia, ao menos assim a tratou meu irmão e a mim pareceu natural e doce a existência dela. Tinha o mesmo sorriso da tia Joana e os lindos olhos da minha mãe. Notava-se calma nos seus gestos e candura nos seus pedidos de desculpas pelas brincadeiras... Tomava conta deles naquele dia de calor, atento aos mergulhos do Fernão e às brincadeiras da menina junto à margem.
Eis que de repente, entretanto, quando estava a lhe ensinar a nadar o meu irmão, a menina foi apanhada por uma correnteza. Atrás foi o Fernão e eu também, muito concentrado, meti-me n'água atrás deles.
Procurei-os nas profundezas. Meus dedos tocavam as folhas apodrecidas no fundo do rio e à minha alma comunicava aquele lôdo amargo e frio.
Voltei à tona, pensei em pedir ajuda. Era já tarde... haviam se afogado os dois.
As órbitas dos meus olhos voltaram-se para o céu, o meu corpo molhado tremia enrijecido. O sentimento do luto, real e devastador, fez-me a mais miserável das criaturas e a idéia de tê-los perdido foi tão esmagadora que o meu coração morreu um pouco, como da vez que perdemos o tio Roberto...
Aquela linda menina tão genuinamente da nossa raça, tão inocente nos meus braços, fruto do meu desejo de afecto... Meu irmão, meu querido e doce irmão que eu amo tanto e por quem arrisquei a vida para proteger sem nunca medir as consequências... Foi este um pensamento de percepção fácil quanto ao seu viez de nunca mais e por isso mesmo impossível de suportar.
Como nunca me tinha acontecido na vida, rompi em pranto ainda a dormir e acordei muito perturbado, sem compreender que aquilo não era real e ainda chorei um pouco.
Rezei pela alma do meu tio que já se foi e a quem eu devo tanto... Rezei pelo bem estar do meu mano. Mas ninguém lá em casa vai saber desse sonho. Nunca souberam de nenhuma vez que eu chorei.