Falar sobre cidades para alguns pode parecer tolo... já dizia Drummond em versos: 'Não cante tua cidade/deixe-a em paz', de todo jeito é errado ignorar que o lugar em que se vive transmite algo à alma. Talvez seja a disposição geral das pessoas, o modo de pensar e agir, talvez ainda sua idéia de civismo - virtude tão preciosa na vida em comum, o fato é que viver numa cidade é transpirar seu espírito. Deste modo, se pode-se amar seu país, porque não amar sua cidade, onde vive-se de fato?
Pois o melhor é viver num lugar que se ama, se for belo, melhor ainda. Juiz de Fora parece-me assim muitas das vezes. Logo nos meus primeiros meses sentia aquele frio matinal da avenida Rio Branco na janela do quarto e via as pessoas indo trabalhar tão calminhas, conversando muitas das vezes e amanhecendo um belo dia nessa avenida que explicaram-me uma vez como 'coluna vertebral' da Juiz de Fora antiga.
Do orgulho de ter sido a mais industrializada cidade da América Latina no início do século XX, sobrou a economia estagnada e voltada para a pequena e média indústria, sobretudo téxtil, seu comércio e setor de serviços diversificados. Apesar do aparente bem estar que é sentido por todo canto, Juiz de Fora une-se a Ouro Preto se investiga-se a coisa a fundo e vê-se que os tempos áureos já passaram. Os palácios da Avenida Rio Branco já foram quase todos demolidos para dar lugar a prédios de escritórios e estacionamentos, (uma antiga mansão abandonada, inclusive, foi há poucos dias ocupada pelos sem-teto), os complexos industriais foram convertidos em recintos culturais, o palacete dos Ferreira Lage, então pertencente à família mais rica do Brasil naquela época, foi convertido em museu e todo resplendor, pompa e riqueza daqueles tempos resta, assim, encrustado na frustração de não ser mais na sua versão moderna e isso sente-se facilmente quando se conhece Juiz de Fora.
Como coração pulsante do sudeste mineiro, entretanto, sua decadência fica amenizada nos detalhes tão típicos e tão decididos: as colônicas gêrmanicas com seus mestres cervejeiros e suas lavadeiras de roupa, o sábado à tarde na rua Halfeld, o olhar enigmático que o Paraibuna pede para si quando transpõe-se uma de suas pontes: Botanágua! Sim, Botanágua, bairro onde a polícia acostumou-se a ir buscar cadáveres nas segunda-feiras, devido ao remanso do rio que fica lá... No dito antigo que nomeou o bairro: 'morreu? Bota n'água!'
O fato de abrigar uma das melhores universidades do país também tem contribuído, desde os anos de 1960, para movimentar a economia e a vida social juizforana. A Universidade Federal de Juiz de Fora ajudou a construir esse caráter estudantil verdadeiramente e atrair mais estudantes do que seu vestibular admitia, de modo que também surgiram faculdades particulares e vê-se claramente a multidão de universitários na cidade que, rememorando agora sua fundação de fato no século XVIII, quando servia de pouso para as tropas que iam para o porto de Parati, percebe seu acaso sedutor, envolvente aos forasteiros e que acaba fazendo novos cidadãos (e não simplesmente moradores) e de fato esses 'tropeiros contemporâneos' conseguem ter de Juiz de Fora muito mais do que descanso.
Grande parte deles vindo de outros lugares, deixam seus lares para ir estudar numa cidade onde não têm nenhum amigo, mas é aqui que fica o maior segredo de Juiz de Fora: a hospitalidade e a discrição do povo. Nesse aspecto, tomo a defesa da cidade contra os que chamam os seus cidadãos de 'cariocas-do-brejo', na clara insinuação de que a cultura local é dependente do Rio de Janeiro. O próprio caráter do juizforano deixa claro que ele é muitíssimo mineiro: discreto, desconfiado, nunca um amigo ocasional, mas por vezes o amigo da vida inteira, emotivo e discreto, detesta gente presunçosa e folgada, gosta do trabalho e tem no futuro sua bandeira, sim, creio que é o traço marcante, ao menos de todos os meus queridos amigos juizforanos. Sendo tando, não precisam ser influenciados por ninguém, nem 'cariocas-do-brejo', nem 'mineiros-da-grota', apenas juizforanos.
Marcadamente se o povo reflete mesmo um caráter comum, um jeito comum de ver as coisas, de pensar e sentir a vida social, espero ter contribuído por esses anos para manter com minha conduta a fascinante vertente do espírito juizforano de simplicidade, discrição, verdade e amor com a qual me identifiquei à primeira brisa na manhã da avenida Rio Branco.